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Plínio Melgaré: O Judiciário e a suspensão de mandatos eletivos

11 de janeiro de 2023, 17h11

Por Plínio Melgaré

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A tentativa fascista de golpe intentada em 8/1 exigiu respostas prontas das instituições responsáveis pela preservação da ordem democrática. Assim, foi a decretação da intervenção federal. Nessa linha, entre outras medidas, o ministro Alexandre de Moraes, provocado pela Advocacia Geral da União (AGU), afastou Ibaneis Rocha do cargo de governador do Distrito Federal pelo prazo inicial de 90 dias.

Não inova o ministro Alexandre de Moraes. Tão somente reforça jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) que, a partir do ano de 2016, estabelece um entendimento que permite a suspensão de mandatos eletivos. O fato que originou essa medida foi um pedido da Procuradoria Geral da República para o afastamento cautelar do então deputado federal Eduardo Cunha. De acordo com a ação movida pelo Ministério Público Federal, Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, criava obstáculos às investigações da operação "lava jato", na qual, inclusive, figurava como réu. À época, a decisão do STF [1] destacava o reconhecimento da excepcionalidade da medida. Eram tempos lavajatistas, em que exceções justificavam quebras de garantias e princípios basilares da ordem democrática. Tristes tempos de um negacionismo jurídico.

A decisão de o poder judiciário suspender o mandato de autoridades eleitas é demasiada e contrária ao sentido da normatividade constitucional. Sobressai a ausência de previsão constitucional da medida. O Poder Judiciário não tem legitimidade para suspender a representação popular, salvo diante de expressa previsão legal. Daí o exercício argumentativo do STF para estender uma punição prevista no processo penal — suspensão da função pública, quando houver receio de sua utilização para praticar crimes — para suspender o mandato de quem tenha cargo eletivo.

A partir da Lei nº 12.403/2011, o inciso VI do caput do artigo 319 do Código de Processo Penal (CPP) prevê, entre as medidas cautelares alternativas à prisão, a "suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais". Acaso essa medida seria aplicável diante de funções públicas decorrentes de mandatos eletivos? Erra quem entende que sim. A investidura popular deve ser excluída dessa disposição legal [2]. A suspensão do exercício da função pública prevista na legislação processual penal não alcança governadores ou autoridades eleitas pelo voto popular. Há uma distinção entre o exercício de funções públicas e cargos políticos – sobretudo se tais cargos são resultado de um pleito eleitoral.

A constituição federal prevê os casos em que a representação política e o seu respectivo mandato podem ser afetados. Há previsão de perda de mandato, cassação ou afastamento do cargo, como nos casos do processo de impeachment. Não há regra jurídica para esse tipo de medida, a suspensão do mandato. O princípio democrático impede o alargamento da norma prevista no CPP para aqueles que conquistam um mandato eletivo. A suspensão de mandatos, ainda que pelo STF, fere o sistema de freios e contrapesos. Revela um juízo político que extrapola a atividade jurisdicional, pois não contém previsão normativa.

Nada obstante as claras evidências de uma (i)responsabilidade do governador do DF, que por sua (in)ação colaborou com a tentativa de assalto à democracia, há de se preservar as competências estabelecidas na própria constituição federal e, sobretudo, o devido processo legal. A responsabilização do governador do DF deve ocorrer na esfera penal, por meio de um processo penal, ou por um processo de impeachment, diante da prática de crimes de responsabilidade a serem apurados pelo Poder Legislativo do DF.

Os regimes democráticos são dotados de elementos normativos que os protegem e instituições responsáveis também por defendê-los. E há uma constituição que os sustenta. E à violência fascista e suas tentativas de golpe deve-se responder com a autonomia própria do Direito que, ao fim e ao cabo, é a garantia da própria democracia constitucional.

 


[2] Semelhante discussão ocorreu em Portugal. E o Tribunal Constitucional deliberou que "Admitir a suspensão preventiva do exercício das funções electivas, ainda que por decisão judicial, traduzir-se-ia necessariamente no perigo de impedir o cumprimento de um mandato político por factos que no final podem provar-se inconcluentes ou irrelevantes para fundamentar uma pena de perda de mandato". Decisão disponível em https://dre.pt/pesquisa/-/search/3639216/details/maximized.