Opinião

Um evidente caso de insurreição, crime político por excelência

Autor

  • Diego Nunes

    é professor adjunto 2 de Teoria e História do Direito na UFSC doutor em Ciências Jurídicas membro do Instituto de Memória e Direitos Humanos (IMDH) co-líder do Ius Commune (UFSC/CNPq) e tutor do PET Direito UFSC.

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9 de janeiro de 2023, 16h16

Neste domingo, 8 de janeiro de 2023, ocorreu o maior atentado às instituições políticas da história do Brasil. Em nenhum momento da monarquia e da república, em períodos de democracia ou autoritarismo, houve algo parecido. As sedes dos três Poderes foram simultaneamente depredadas e inutilizadas por tempo indeterminado. Trata-se de um evidente caso de insurreição, crime político por excelência. Hoje esse delito está previsto no novo artigo 359-L do Código Penal, denominado "Abolição violenta do Estado Democrático de Direito" enquanto Crimes contra as Instituições Democráticas: "Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena — reclusão, de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência".

De fato, tentou-se com violência (por exemplo, agressão efetiva dos manifestantes contra os policiais) abolir o Estado Democrático (pois queriam a "intervenção militar") criando restrição ao exercício dos Poderes constitucionais (Executivo e Judiciário tiveram seus palácios completamente inutilizados no espaço interno, e o Legislativo, em particular o Senado, bastante danificado).

Dogmaticamente, há quem discuta se uma ação como esta seria uma tentativa idônea para "abolir" (exterminar por completo) o Estado de Direito. A jurisprudência do STF, a partir do caso Daniel Silveira, tem dado interpretação mais flexível, sob pena de inutilidade do tipo penal. Há uma série de crimes que complementam o quadro dos fatos ocorridos na Praça dos Três Poderes.

Àqueles que estavam "apenas" ostentando cartazes ou bradando dizeres favoráveis à tal "intervenção militar" cometeriam o delito de incitação previsto no parágrafo único do artigo 286, também do CP. Não me parece caber o delito de "golpe de estado" (artigo 359-M do CP), visto que nenhum membro do governo (presidente, ministros etc.) foi efetivamente ameaçado (não houve, por exemplo, tentativa de invasão do Ministério da Justiça, onde o ministro estava preparando a contraofensiva). Restam ainda os crimes de dano ao patrimônio público em geral (artigo 163, CP) e também patrimônio cultural (artigo 62 e seguintes da lei de crimes ambientais), tendo em vista a depredação de obras de arte, mobília histórica e mesmo os edifícios projetados por Oscar Niemeyer. 

Também caberia o crime de organização criminosa (artigo 288, CP) mesmo para quem estava à distância, o que inclui financiadores, apoiadores etc. Lembre-se que alguns desses crimes podem ser cometidos não apenas por ações, mas por omissão dolosa, quando se atua de modo conivente (como no caso de alguns policiais que em vez de barrar os manifestantes, permitiam que eles tivessem acesso aos locais), sem falar no crime específico de prevaricação (artigo 319, CP).

Pelo fato de o delito de "insurreição" ser crime político, há uma série de questões especiais previstas na Constituição e nas leis. A investigação fica a cargo da Polícia Federal. Serão julgados pela Justiça Federal de primeira instância, mas eventuais apelações, analisadas diretamente pelo STF. Se cometidos por grupos armados, são insuscetíveis de anistia, graça e indulto (verificou-se furto de armas no gabinete do GSI, mas não se viu por ora a constituição de milícias — artigo 288-A, CP). E algo importante para o caso: não são passíveis de extradição.

Ainda que por ora, parece incerta a participação direta do ex-presidente Bolsonaro, também se encontra em férias nos EUA o ex-ministro da Justiça e até então secretário de segurança do DF, Anderson Torres, que deveria ter organizado a segurança da manifestação, impedindo o resultado ocorrido. Nesse caso, parece difícil escapar do caráter político do crime e conseguir efetivar a extradição: seja pela regra da preponderância (cláusula suíça) como do tratamento humanitária (cláusula francesa), apenas afastando completamente os crimes trazidos pela Lei nº 14.197/2021 poderia se pedir ao governo norte-americano a entrega para processamento no Brasil. O que pode acontecer seria a expulsão dessas pessoas daquele país, o que é uma questão de Direito Público, não Penal.

Importante, não se fale de terrorismo, o que possibilitaria a extradição. Neste e em casos semelhantes tal enquadramento é incabível, pois no nosso país não existe mais a modalidade de terrorismo político: a lei prevê tal denominação apenas para casos de xenofobia, fundamentalismo religioso e racismo. Além disso, outras consequências: o Código Penal impede a reincidência geral, e a Lei de Execução Penal desobriga os condenados por tais crimes ao trabalho.

Enfim, esse caso parece ser o limiar para se decidir sobre a viabilidade de se ter um conjunto tão enxuto de crimes contra o Estado em tempos de grande polarização política. A opção da lei de defesa do estado democrático é diferente da tradição liberal dos códigos penais do império e da república, e da tradição autoritária das leis de segurança nacional de Vargas e da ditadura militar. Em ambos os casos havia muitos tipos penais bem detalhados. Talvez parecesse muito trabalho para uma democracia, ou então um resquício de autoritarismo ter muitos crimes desta natureza.

Por outro lado, uma lei mais detalhada permitiria um enquadramento mais preciso e uma punição mais adequada para as várias gradações de atos antidemocráticos cometidos em uma situação extrema como a vivida neste domingo de vandalismo verde-amarelo. A esperar se os três Poderes, cada um dentro de sua funções, proporão melhorias ao sistema de proteção de nossa democracia e suas instituições.

Autores

  • é professor adjunto de Teoria e História do Direito nos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu da UFSC e professor convidado de diversos cursos de pós-graduação lato sensu no Brasil. Doutor em Ciências Jurídicas e advogado membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC.

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