Processo Familiar

Na pele das palavras, a identidade familiar significante

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

12 de fevereiro de 2023, 8h00

A vida põe o direito a seu serviço e as palavras dizem ao direito como a vida deve ser servida. A lei não contém palavras ociosas e quando vinculadas ao universo de família, na pele das palavras há uma perfeita identidade familiar significante. A linguagem tem essa arte, combina com a vida; os vocábulos assumem intimidade histórica com a sua própria origem.

Nessa linguagem, o universo familiar constela as suas palavras, fazendo-se cheio de estrelas com luz própria, clarificadas pela lei, doutrina e julgados. Um observatório de palavras e expressões legais, conduz-nos, portanto, a muitas reflexões.

1. A força dos étimos. Todas as famílias possuem os seus idosos, na escala ancestral de suas histórias existenciais. É significante essa identidade, quando "IDOSo" tem na palavra o próprio passado. São os IDOS do tempo que simbolizam, no tempo remoto, o existir da pessoa idosa. Essa constatação nos revela uma linguagem onde o étimo e a realidade subjacente fornecem a melhor tradução que se busca comunicar. Étimo (étumon), como a palavra em sua base, radical, verdadeira; linguagem que "manifesta a realidade em seu sentido, mundo e verdade".

A propósito, o jurista Rodolfo Pamplona Filho, em seu Instagram (@rpamplonafilho), tem dedicado, às quartas feiras, a coluna Étimo, discorrendo sobre a origem histórica e etimológica das palavras ou das expressões, sob o interesse jurídico que elas conduzem.

Nesse ser assim, ganham importância jurídico-etimológica diversos vocábulos e determinadas expressões, valendo referir:

(i) Padrinho. o vocábulo "padrinho", do latim patrinus, diminutivo de pater, destinado a designar aquele que foi escolhido para proteger alguém, com uma força existencial de benção e amparo, a tanto que nas cerimonias religiosas (batismo, crisma ou casamento) são apresentados a testemunhar o ato perante o protegido.

A legislação tem a seu turno emprestado devida importância à figura do padrinho, como símbolo de proteção. As formas especificas de apadrinhamento, como as do apadrinhamento civil, constante na legislação portuguesa (Lei nº 103, de 11.09.2009) e dos apadrinhamentos afetivo e financeiro (artigos 2º e 3º do Provimento nº 36, de 11.12.2014, da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo) são exemplos que exaltam uma identidade familiar significante.

(ii) Matrimônio. O vocábulo "matrimônio", do latim matrimonium, tem no casamento religioso a referência-base da instituição milenar, estando então, em nosso país, o casamento regulamentado no Brasil Colônia pelas Ordenações Filipinas (29/1/1643) atribuindo-se à autoridade eclesiástica a celebração do casamento, sob as regras do direito canônico. Somente pós-República, com a separação formal entre Igreja e Estado, o casamento passa a ser regulamentado no país, pelo Decreto nº 18 (24.91.1890), de autoria de Rui Barbosa, antecedendo o Código Civil de 1916.

A sacramentalidade do matrimônio foi muito discutida a partir dos séculos XI-XIII, diante de concepções dicotômicas sobre o seu elemento essencial, a romana (o do consentimento) e a judaica (o da união carnal e o da procriação).

Ensina-nos D. Borobio, em reconstrução histórica e de solução adequada que "a síntese é alcançada no século XIII, quando se afirma que o Matrimônio é um sacramento verdadeiro e válido só e formalmente em virtude do consentimento, mas, enquanto esse sacramento não tiver sido consumado pelo ato carnal, pode ser dissolvido". A sua sacralidade foi reafirmada no Concilio de Trento, como sinal da aliança entre Cristo e Igreja, significada pela relação do casal. Esta que se baseia na unidade, na entrega, no amor, tudo conduz ao matrimônio; elevado, por isso, à dignidade de sacramento e à uma comunhão plena de vida. (01). Bem de ver que o seu ritual de celebração tem no amor conjugal "o centro da relação interpessoal e base da sacralidade", como enfatizou o Concilio Vaticano II.

Certo que, antigamente, a mulher somente pelo casamento adquiria direitos e deveres legais de mãe de família, tem-se o "Matrimonium" como a junção de "mater" (mãe) e "monium", sufixo a indicar estado, ação, condição; ou seja, a condição de mãe. Há que se dizer, por isso, que o matrimônio é a proteção da mãe.

(iv) Casamento. O vocábulo “casamento”, deriva de casa, pelo que tem sido inerente o dever de coabitação, disposto no dever de vida em comum, no domicílio conjugal (artigo 1.566, II, do Código Civil/2002), diversamente da união estável, onde esse dever não figura referido no artigo 1.724 do CC.

O casamento difere do casamento religioso (dito matrimônio e sacramento), por sua natureza jurídica, em esfera civil, colocar-se como um contrato de direito de família e, por sua dimensão existencial, ao lado do canônico, como instituição. De toda sorte, ambos não são hierárquicos, inexistindo qualquer preponderância entre um e outro.

Convém lembrar, porém, que o Decreto n. 521, de 1890, vindo aditar-se ao Decreto nº 181, do mesmo ano, impôs o poder do Estado proibindo o casamento religioso antes do civil. Em outras palavras, o vínculo estatal servia como pressuposto necessário ao vínculo matrimonial.

(iii) Viuvez. O vocábulo da "viuvez" tem, a seu turno, um inexorável liame com a visão sacramental do casamento, quando o seu vínculo jurídico termina com a morte de um dos cônjuges, porém o vínculo do amor permanece, quando a Igreja explica o significado escatológico da viuvez, para uma sua dimensão de espiritualidade. (02).

É um especial cuidado refletido no encontro de Cristo com a viúva de Naim (Lucas, 7, 11-17). Com devida propriedade histórica, segundo Christiana Hip-Flores, "o instituto jurídico da viuvez consagrada tem profundas raízes na Tradição Católica, remontando à era apostólica e aos primeiros séculos do cristianismo". Consagra-se à viuvez, durante quatro séculos, uma vida ascética feminina, ensejando a formação de ordem monásticas, como continuidade sacramental do matrimônio.

Diz-nos Elsa Tamez, em interessante estudo, que "o ministério para as viúvas pobres nas origens do cristianismo era um verdadeiro serviço, assumido com seriedade, seguindo tradição judaico-cristã. Os problemas que surgem no entorno desse ministério permitem ver que é algo que ocorre na história humana, contra a qual há que se lutar sempre, buscando a integridade, a coerência e a pureza de coração" (03).

2. Nesses vieses relacionais, impõe-se observar, lado outro, situações identitárias familiares, em determinadas expressões de conteúdos indeterminados, quando a lei as menciona, não obstante necessitadas de seu preenchimento por construções doutrinárias e de julgados atinentes. Elencam-se três, por enquanto, diante da brevidade do texto:

(I) Comunhão plena de vida. A cláusula geral de "comunhão plena de vida", como norma-princípio que remete as relações familiares a seus valores éticos e afetivos aparece, de logo, inserida no primeiro artigo do Livro de Direito de Família (artigo 1.511 do Código Civil), a dizer que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges".

Adiante, a cláusula é repetida no artigo 1.513, quando dispõe o estatuto civil que "é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família".

A adoção da técnica de tal cláusula ganha uma ampla dimensão, com repercussões notáveis, quando flagrada a contradição interna entre os mencionados dispositivos (artigos 1.511 e 1.513, CC).

Afinal, "quem estabelece a comunhão plena de vida? O casamento (art. 1.511) ou a família (art. 1.513)?" — pergunta o jurista Eduardo Silva (2002), identificando, em seu estudo, os erros técnicos do legislador que confunde as instituições entre si, introduzindo, daí, as atecnias no texto normativo.

Ele oferece a melhor resposta, pronta e adequada, ao indicar que "o erro técnico em que incidiu o legislador levaria a crer que a comunhão de vida é instituída pela família, e não de que a família é, ela própria, uma comunhão de vida". Bem é certo assim refletir.

"Aliás, essa a verdadeira evolução em Direito de Família: uma família que se torna comunhão plena de vida entre seus membros e deixa de ser uma mera unidade econômica agregada pelo poder do homem" — acentuou. Sublinha-se, então, que a cláusula geral da comunhão plena é de conceito aberto, tanto na hipótese (prótase) quanto na consequência jurídica (apódose).

Pergunta-se o que vem a ser a cláusula "comunhão plena de vida", enquanto cláusula geral na estrutura do sistema jurídico de família. E mais ainda: como ela repercute e deve repercutir no direito de família, em compreensão do seu próprio significado.

A sua especificidade está ínsita do fenômeno familiar, como fato e valor; ou seja, a cláusula de comunhão representa um conceito ético e operativo, contribuindo para o aperfeiçoamento das relações familiares, a partir dos deveres mútuos de cônjuges ou de companheiros (artigo 1.573 CC).

A comunhão plena de vida significa compartilhar a família nos seus atributos determinantes, onde para além da norma, estão as pessoas comprometidas entre si, comungando interesses comuns e resultados construídos. Efetivamente, figura como uma cláusula diretiva da existência da comunidade familiar. Essa comunhão é intrínseca, como "unidade valorativa e conceitual" e serve, convenhamos, como estrutura dignificante de cada um dos integrantes do núcleo familiar.

Noutro ponto, a comunhão implica uma constatação de vida, "não só com o outro, mas para o outro". Ou seja, a constituição do próprio ser, em sua vida pessoal, como vida destinada para o outro (amar para ser amado, etc.) e não bastando, também o "ser com o outro", em realização de solidariedade plena (Octávio Manuel Gomes Alberto, Lisboa, 2012).

O civilista português situa que "a comunhão de vida pressupõe que cada um dos cônjuges esteja permanentemente disponível para dialogar com o outro, auxiliá-lo em todos os aspectos morais e materiais da existência, colaborar na educação dos filhos, etc."

De notar que o chamado "dever de comunhão de leito, de mesa e de habitação", denominado "dever de coabitação", em nada significa mais que somente isso. Não necessariamente a comunhão de vida que constituirá a essência da união conjugal ou entre conviventes. Pode haver coabitação, sim, sem que, todavia, os que coabitam comunguem as suas próprias existências em prol de uma existência única e una. Esta existência substancial constitui, a toda evidência, o dever-ser do direito de família, onde homens e mulheres, por auxílio mútuo, integração fisiopsíquica, de interesses e de afetos, destinam-se a formar uma comunidade de vida, na clássica lição de Portalis.

Certo, então, pensar que deverá haver uma personalidade moral e jurídica da própria instituição familiar enquanto arrimada na comunhão plena de vida; o que transcende a personalidade de cada um dos partícipes.

Assim, a família que como tal se expressa por essa comunhão de plenitudes, é um dos maiores bens jurídicos que a sociedade pode obter: pessoas que comungam vidas e celebram os seus vínculos. Repita-se: A vida põe o direito a seu serviço.

(ii) Tempo de convívio. A expressão "tempo de convívio" na guarda compartilhada assume relevante expressão jurídica, com seu novo significado (art. 1.583, parágrafo 2º, do Código Civil, conforme a Lei nº 13.058, de 22.12.2014). Mais precisamente, está escrito: "Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos".

Anota-se, necessária uma contribuição do Direito das Famílias à gestão do tempo familiar, como gestão responsável e instituída para um investimento afetivo adequado. Este desafio, a nosso sentir, exige notáveis esforços da doutrina e da legislação, aptos a produzirem casais, filhos e demais familiares melhor realizados pessoalmente por amor, assistência e respeito mútuos.

No ponto, a VII Jornada de Direito Civil, do Conselho de Justiça Federal (Brasília, 28-29/09/2015), ofereceu valioso contributo, com três Enunciados direcionados à gestão do tempo familiar. Vejamos:

(i) Enunciado nº 603 – A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve atender precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma equilibrada, a que alude o parágrafo 2º do artigo 1.583 do Código Civil, representar convivência livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente igualitária entre os pais.

(ii) Enunciado nº 604 – A divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos com a mãe ou com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo parágrafo 2º do art. 1.583 do Código, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas a divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo genitor que se encontra na companhia do filho.

(iii) Enunciado nº 606 – O tempo de convívio com os filhos "de forma equilibrada com a mãe e com o pai" deve ser entendido como divisão proporcional de tempo, da forma que cada genitor possa se ocupar dos cuidados pertinentes ao filho, em razão das peculiaridades da vida privada de cada um.

Como se observa, todos os tempos de família precisam ser bem gerenciados. Quando o tempo livre decresce por sobrecargas da vida, é tempo de conceder à família o nosso melhor tempo, com técnicas de gestão para empreender maior efetividade às relações familiares.

(iii) União Estável Putativa. Uma nova figura de união estável está em permanente discussão nos tribunais. É a situação de fato de alguém assumir convivência com duas pessoas, ao mesmo tempo, onde a estabilidade de união aparenta uma entidade familiar verdadeira. A união estável putativa decorre de os(as) companheiros(as) acreditarem na exclusividade dessa convivência. Precedentes, os da Apelação nº 2003.001.33248, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e dos Embargos infringentes nº 599.469.202, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, determinaram a partilha igualitária dos bens disputados pelas companheiras. A expressão conceitua uma entidade familiar a merecer o exame do caso concreto para que venha receber o devido enquadramento fático.

Posto isto, indispensável que a etimologia das palavras, a origem das expressões, e a criação de conceitos, sejam recepcionadas, com maior desenvoltura, no direito de família, para a sua melhor dinâmica.

Essa identidade familiar significante deve ser extraída, com sensibilidade, das palavras e expressões reveladoras de vida que o direito oferece.

Afinal, não se confundirão, por certo, com a exclamação feita por Alzira Vargas, filha de Getúlio Vargas, a respeito do seu casamento: "Fui casada em regime de comunhão de dívidas e separação de ideias".

 


Referências:

(01) BOROBIO, D. Matrimônio. A celebração na Igreja. Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993.

(02) REES, Elisbeth. Christian Widowhood, p. 400.

(03) TAMEZ, Elsa. O ministério para as viúvas e das viúvas. Web: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/Ribla/article/view/7284/5589

Autores

  • é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco, membro da Academia Brasileira de Direito Civil e Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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