Aplicação do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 a casos de pagamento de propina
28 de fevereiro de 2023, 16h18
Não poderíamos deixar de mencionar o modo equivocado como o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 vem sendo interpretado e aplicado, especialmente quando se trata de casos em que as autoridades fiscais têm trazido da esfera criminal — a partir da ocorrência de investigações, condenações e acordos de leniência e delação premiada —, fatos jurídicos penais que envolvam a apuração de práticas de corrupção para a seara tributária para fins de "tributar" (ou melhor dizer sancionar) um dos envolvidos, nesse caso aquele que paga a propina.
Referido cenário tem sido objeto para inúmeros questionamentos acerca da usualmente denominada tributação de atos ilícitos, tal como inclui-se a tributação na fonte sobre pagamento sem causa e a beneficiários não identificados, a discussão acerca da dedução de despesas decorrentes de atos ilícitos, a incidência sobre rendas omitidas etc.
Esse ponto do estudo não tratará de todas essas questões, mas, em especial, da regra contida no artigo 61 da Lei nº 8.981/95 que prevê a incidência do imposto de renda fonte sobre pagamento sem causa e a beneficiários não identificados aplicando-se alíquota mais gravosa prevista na legislação (35%), o que, como já suscitamos, se trata de regra de natureza sancionatória.
Além de consistir estruturalmente em regra de natureza sancionatória importa assinalar, então, como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem aplicado o artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 para alcançar fatos jurídicos apurados em processos penais em que o suposto responsável figuraria como denunciado, no caso, utilizando-se de depoimentos prestados no âmbito do acordo de acordos de leniência e delação premiada celebrados com o Ministério Público Federal [1].
A subsunção do referido dispositivo sobre fatos ilícitos com intento de punir (sancionar) pela prática de corrupção, a propósito, vem sendo chancelada pelos órgãos julgadores administrativos (Carf), o que, reafirma, agora sob o prisma da pragmática, a natureza sancionatória da regra, vejamos:
"[…]
IRRF. PAGAMENTOS SEM CAUSA OU A BENEFICIÁRIOS NÃO IDENTIFICADOS. EXIGÊNCIA CUMULADA COM IRPJ E CSSL APURADOS EM FACE DA GLOSA DE CUSTOS E DESPESAS CONSIDERADAS INIDÔNEAS. CABIMENTO.
O art. 61 da Lei n.º 8.981/1995, alcança todos os pagamentos efetuados a beneficiários não identificados ou cuja operação ou causa não é comprovada, independente de quem seja o real beneficiário dele (sócios/acionistas ou terceiros, contabilizados ou não), elegendo a pessoa jurídica responsável pelo pagamento efetivamente comprovado com responsável pelo recolhimento do imposto de renda devido pelo beneficiário, presumindo-se que assumiu o ônus pelo referido pagamento.
DENÚNCIA ESPONTÂNEA. APRESENTAÇÃO DE CONFISSÃO EM TERMO DE COLABORAÇÃO PREMIADA OU ACORDO DE LENIÊNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 138 DO CTN. AUSÊNCIA DE PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS.
O instituto da denúncia espontânea, como o próprio nome revela, depende exclusivamente da ação do sujeito passivo, tanto no que se refere à confissão do tributo quanto ao seu pagamento ou depósito, quando este dependa de apuração. Cabe ao contribuinte retificar suas declarações de rendimentos, refazer suas apurações e efetuar o pagamento dos tributos devidos, ou o seu depósito, caso haja dúvida quanto ao montante total devido. Verificando-se, tão somente, a confissão dos crimes praticados ao Ministério Público Federal e à Justiça Federal que, posteriormente, ensejaram apurações por parte do Fisco Federal dos tributos devidos em face das irregularidades a ele comunicadas pelos órgão de investigação e da Justiça, sem que o contribuinte tenha se antecipado a qualquer procedimento fiscal e adotado as medidas necessárias para a denúncia espontânea das obrigações tributárias perante o Fisco, esta não se configura.
[…]
IRRF. PAGAMENTOS SEM CAUSA. RECURSOS DESVIADOS MEDIANTE INTERPOSIÇÃO DE TERCEIROS COM FINALIDADE ILÍCITA DE PAGAMENTO DE VANTAGENS INDEVIDAS.
Os pagamentos a diversas empresas por serviços que não foram efetivamente prestados, efetuados como meios preparatórios para o desvio dos recursos que seriam posteriormente empregados nos pagamentos de vantagens indevidas a terceiros, embora identifique sua finalidade não validam sua causa primária. Estes pagamentos não tem causa (no sentido econômico), pois não correspondem a serviços efetivamente prestados. Além disso, os reais beneficiários de tais recursos não são identificados nestas operações, pois estão encobertos por documentos que apontavam outros beneficiários (as emitentes das notas fiscais) dos pagamentos" [2].
Extrai-se desse julgado — e dos demais relacionados — que a fiscalização tem constituído o crédito tributário, com fundamento no artigo 61, em face das empresas e responsáveis pelos pagamentos de propinas ainda que os beneficiários estejam identificados nas peças investigatórias que serviram de motivação para constituição do crédito tributário. Isso porque as confissões trazidas dão conta de pagamento de vantagens indevidas a diversas empresas por serviços que não foram "efetivamente prestados", razão pela qual as autoridades fazendárias têm interpretado esses pagamentos como sem causa e, portanto, os tem subsumido a hipótese do artigo 61 da Lei nº 8.981/1995.
Nos casos destacados, não se questiona o fato de a prestação dos serviços ter sido efetiva ou não, uma vez que isto já foi reconhecido por ocasião do próprio acordo ou termo de leniência. Contudo, a natureza — real causa do pagamento (ainda que ilícita) — e o beneficiário, quando conhecidos pelo fisco, excluem a hipótese de aplicação do artigo 61, visto que, nessa situação, é possível tributar os beneficiários dos pagamentos.
É o que, a propósito, enfatiza Ricardo Mariz de Oliveira quando trata da incidência deste dispositivo nos casos em que a causa é ilícita ou irreal, porém, se tem conhecimento da verdadeira razão da entrega de valores, assim como de seu beneficiário:
"[…] especialmente perante o contexto finalístico e teleológico da norma do art. 61, o fato de o objeto, a causa ou o motivo do contrato ser ilícito ou irreal é irrelevante e não determina a incidência dessa norma, desde que a competência tributária possa ser exercida sobre o beneficiário do pagamento comprovado, e também sobre a fonte se houver imposto devido por este regime."
"De fato, neste último caso, a verdadeira razão da entrega do dinheiro foi descoberta (ainda que ilícita) assim como o verdadeiro beneficiário é conhecido, desaparecendo, portanto, as circunstâncias que poderiam caracterizar uma das hipóteses de incidência daquele dispositivo legal" [3].
Infere-se que, nos julgados colacionados, a causa era de conhecimento do Fisco (pagamento de propina) ainda que acobertadas, inicialmente, por contratos fictícios que foram revelados por ocasião da instrução criminal. Logo, a ilicitude ou inveracidade dos contratos que inicialmente ampararam os pagamentos, por si só, não enseja a incidência do imposto de renda retido na fonte com supedâneo no art. 61 da Lei 8.981/95: "a falsidade da documentação empregada quando do acontecimento real não autoriza o fisco a, com base nela, efetuar lançamento (s) diferentes dos (s) legalmente devidos (s) […]" [4].
Extrai-se das decisões administrativas em exame que o "primeiro beneficiário" foi identificado (não se trata, no caso, de empresas inidôneas ou de fachada), bem como o pagamento é alcançável pela tributação pelo IRPF ou IRPJ, entretanto, a argumentação do Fisco limita-se a justificar a incidência da regra do imposto de renda retido na fonte (artigo 61) pelo fato de a destinação desses recursos, em tese, dirigir-se a "segundos beneficiários" não identificados ("os reais recebedores da propina"). Ora, se "o primeiro beneficiário" (intermediário) identificado vier a destinar os recursos recebidos a "segundos beneficiários" potencialmente não identificados caberá a autoridade fazendária apurar a operação seguinte, porém não lhe cabe — utilizando-se dessa regra com o fim sancionatório — exigir o imposto de renda retido na fonte daquele que realizou pagamento ao suposto "primeiro beneficiário".
Ressaltamos, contudo, que não se trata de legitimar a possibilidade desses valores não serem tributados. O que se defende, outrossim, é que, a partir da constatação de tais pagamentos (propinas), a fiscalização deve investigar os beneficiários dos valores para fins de verificar se foram oferecidos à tributação e, eventualmente, apurar se houve, por parte do beneficiário, a omissão de receitas. Aliás, não se tem garantia de que o fisco não irá exigir o IR- Fonte também do beneficiário (intermediário), o que, por sua vez, submeteria esses valores a uma dupla "tributação" (sanção).
Entretanto, a despeito da jurisprudência — até então dominante no Carf — posicionar-se pela aplicação da regra do artigo 61 em casos em que os beneficiários estavam devidamente identificados a 1ª Turma Ordinária da 1ª Seção de Julgamento do Carf já se manifestou de modo diverso, qual seja no sentido de afastar a aplicação deste dispositivo nas operações em que há identificação do beneficiário:
"ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA RETIDO NA FONTE (IRRF)
Ano-calendário: 2001, 2002
IR-FONTE. BENEFICIÁRIO IDENTIFICADO. SUPOSTO PAGAMENTO SEM CAUSA. NÃO INCIDÊNCIA.
Somente estão sujeitos à incidência do imposto de renda exclusivamente na fonte, à alíquota de trinta e cinco por cento, os pagamentos efetuados pelas pessoas jurídicas a beneficiário não identificado, trata-se de pressuposto legal constante do caput do artigo 61, da Lei nº 8.981/1995. Quando identificados os beneficiários, deve ser afastada a incidência do IR-Fonte.
Com a identificação dos beneficiários é possível rastear os pagamentos de forma a permitir que a autoridade fiscal averigue se os receptores declararam corretamente tais pagamentos e se os valores foram oferecidos à tributação, autuando eventual omissão de receitas. O legislador incluiu a hipótese de pagamento sem causa para determinar se os valores recebidos pelo beneficiário estão sujeito à tributação ou se configuram mera transferência patrimonial, sendo irrelevante ser a causa do pagamento lícita ou ilícita" [5].
Dessa forma, de acordo com os apontamentos trazidos, vislumbra-se que a aplicação do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 vem sendo utilizada para fins sancionatórios, uma vez que as autoridades fiscais têm se limitado a trazer os procedimentos internos do Ministério Público (acordo de acordos de leniência e delação premiada), nos quais são apuradas práticas de ilícitos penais, para o âmbito tributário sem, contudo, verificar se (1) os beneficiários foram identificados; (2) se houve recolhimento de imposto de renda sobre esses valores, (3) se não está sendo exigido o imposto de renda retido na fonte também do beneficiário (intermediário) relativamente ao pagamento ao real recebedores de propina; e ainda (4) se esses valores não foram objeto de confisco ou devolução as autoridades no âmbito penal.
Queremos enfatizar, em vista disso, que o artigo 61 não se presta como instrumento punitivo na esfera tributária para fins de sancionar e combater a corrupção, porque vulnera o artigo 3º do CTN. Ademais, cabe ao direito penal o papel de coibir e punir a prática da corrupção não competindo, por sua vez, ao direito tributário essa função. Aliás, cumpre ressaltar que, diferentemente da esfera penal na qual há punição de todos os envolvidos, a "punição" (tributação) por meio da aplicação do artigo 61 penaliza, apenas, um dos infratores (aquele que realizou o pagamento).
Ao tratar a imprestabilidade de se utilizar o tributo como instrumento penal, especialmente por sancionar apenas um dos infratores, destaca Luís Eduardo Schoueri ao rechaçar a vedação de dedutibilidade da propina:
"O uso do tributo como instrumento penal, embora reprovável, poderia ser aclamado por ser efetivo. Ainda que já se tenha visto que vedar dedutibilidade de despesas operacionais não incentiva condutas ilícitas, utilizar o tributo como sanção implica consequências problemáticas. Como ele não se presta a punir, não é proporcional à gravidade do ilícito e pode ser arbitrário por escolher um só criminoso" [6].
No mesmo sentido, sustenta Humberto Ávila:
"Ademais, a prática de atos ilícitos autoriza a aplicação das penalidades estabelecidas na respectiva legislação, mas não justifica a tributação mais onerosa do contribuinte. Em outras palavras o contribuinte não pode ser onerado de modo mais oneroso apenas porque a despesa paga ou incorrida decorre de ilícito" [7].
Em suma, a tributação não deve ser manejada como instrumento sancionatório, dado que não foi instituída para tanto. Além disso, tem-se que o imposto sobre a renda deve estreita relação, apenas, com as manifestações de capacidade contributiva (artigo 145, §1º, da CF), o que, nos casos analisados, pela aplicação do artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 não é observada.
Assim, por todos os ângulos analisados, tanto no que se refere à compatibilidade do artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 com o sistema jurídico, bem como o modo que vem sendo aplicado, exprime a natureza sancionatória (punitiva) e não tributária dessa norma [8].
[1] Não se discute, no presente artigo, a possibilidade ou não fiscalização tributária utilizar-se de prova emprestada, no entanto, deve-se ter em mente que as conclusões do processo penal não podem ser transportadas automaticamente para o processo administrativo. Isso porque compete à fiscalização o exercício da atividade instrutória necessária e indispensável para a valoração dessas provas para fins de verificar se são suficientes a constituição do crédito tributário, nos termos do artigo 29, da Lei nº 9.784/9913.
[2] Acórdão 1302-002.549. 2ª T.O 3ª C. 1ª S. S. 20/02/2018. Nesse mesmo sentido: Acórdão 1201-003.614. 1º T.O. 2ª C.1ª S.S.10/3/2020. Acórdão 9101-004.543. CSRF.1ª T. S. 7/11/2019.
[3] OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Tributação ilícito…op.cit., p.129.
[4] Id.Ibid., p.129.
[5] Acórdão 1201-004.560. 1ª T.O 2ª C. 1ª S. S. 19/01/2021.
[6] SCHOUERI, Luís Eduardo, Dedutibilidade de despesas com atividades ilícitas . Tributação do ilícito: estudos em comemoração aos 25 anos do Instituto de Estudos Tributário -IET. Coordenadores Pedro Agustin Adamy. Arthur M. Ferreira Neto, André Folloni…[et al.] São Paulo: Malheiros, 2018, p.205 -208.
[7] ÁVILA, Humberto. Dedutibilidade de despesas com o pagamento de indenização decorrente de ilícitos praticados por ex-funcionários.Tributação do ilícito: estudos em comemoração aos 25 anos do Instituto de Estudos Tributário -IET. Coordenadores Pedro Agustin Adamy. Arthur M. Ferreira Neto, André Folloni…[et al.] São Paulo: Malheiros, 2018, p.97.
[8] GOULART, Paula Jacques. IR-Fonte sobre pagamento sem causa e a beneficiários não identificados: Antijuridicidade da regra frente à natureza sancionatória da alíquota de 35%. In: LINS, Robson Maia (coord). Direito tributário sancionatório. São Paulo: Noeses, 2021.
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