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Piso de Investimentos, o futuro da governança fiscal e o Fibe

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

28 de fevereiro de 2023, 8h00

Foi realizado semana passada em Lisboa (Portugal) um encontro do Fibe (Fórum de Integração Brasil Europa), coordenado pelo economista José Roberto Afonso, com a presença de representantes do FMI, OCDE, União Europeia e autoridades brasileiras e portuguesas discutindo o Futuro da Governança Fiscal, sob três painéisenvolvendo federalismo, transformações digitais e políticas fiscais.

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Fruto da generosidade dos organizadores, fui convidado a participar de um painel e apresentei cinco pontos sobre a realidade financeira do Brasil, que exponho em resumidas linhas.

O primeiro ponto que expus dizia respeito ao federalismo brasileiro. Organismos internacionais possuem cartilhas básicas com regras que devem ser aplicadas em geral, muitas vezes sem atentar para as peculiaridades de cada país, e isso gera incontáveis problemas. No âmbito do federalismo, por exemplo, o Brasil possui uma realidade jurídica bastante diferente de outros países, pois o nosso é em três níveis, e se constitui em uma cláusula pétrea constitucional, o que é ímpar no mundo. Houve alguma dificuldade em traduzir o que é uma "cláusula pétrea", havendo dentre os participantes estrangeiros quem perguntasse se uma emenda constitucional poderia alterá-la, o que gerou alguma perplexidade dentre os brasileiros que estavam na plateia, que bem conhecem a expressão, e dentre os estrangeiros, surpreendidos com esse aspecto do nosso país. Isso resume a importância de se analisar as diversas características jurídicas de cada país antes de aplicar as regras de governança fiscal apresentadas em cartilhas pré estabelecidas.

Por outro lado, nosso federalismo deve necessariamente ser assimétrico, em face da imensa diversidade existente em nosso país. Um exemplo esclarece: atualmente, de forma simétrica, os estados podem se endividar até 2 vezes sua receita corrente líquida, e os municípios estão limitados a 1,2 vezes sua receita corrente líquida. Essa simetria é aplicada independente da população que habita aquele território, o que acarreta um tratamento formalmente igual e injusto para os grandes municípios, como São Paulo, com mais de 12 milhões de habitantes, em face de diversos estados, como o do Amapá, que possui menos de 1 milhão de habitantes. Esse aspecto é importante em face da enorme diferença que existe dentro de cada estado ou município, sendo igualmente errado afirmar que só existam pobres no Nordeste e a riqueza esteja concentrada no Sul-Sudeste brasileiro — basta ver o PIB da orla de Maceió e contrastá-la com o do bairro de Vila Maria, em São Paulo, para que esse preconceito caia por terra. Do mesmo modo não se pode acreditar que na Amazônia só vivam indígenas e que a região é coberta de florestas — o estado de Roraima é pleno de campos naturais e montanhas, com escassa cobertura vegetal, e as cidades de Manaus e de Belém tem população superior à de Lisboa, e problemas de trânsito muito maiores. Dessa forma, é necessário tratar desigualmente os desiguais, para se buscar fazer justiça. Logo, para mitigar as enormes desigualdades existentes no Brasil, nosso federalismo necessita ser mais assimétrico.

O segundo ponto abordado foi acerca do recém anunciado Fórum de Governadores como uma instância de articulação federativa. Trata-se de uma iniciativa positiva, mas que deve ser implementada com muita cautela, em face das competências que nossa Constituição atribui ao Senado, sendo este um ponto de tensão que pode acarretar conflitos, pois, a despeito de teoricamente o Senado ser a Casa da Federação, em concreto, um senador acaba sendo um deputado com mandato em dobro, e pode ocorrer de um estado ter os três senadores eleitos por partidos de oposição ao governador. Daí a recomendação de cautela com a regulamentação desse Fórum de Governadores. Existem sistemas políticos em que os senadores são eleitos em chapa com o governador, o que permite maior alinhamento de propósitos, o que poderia ser pensado para o Brasil.

No terceiro ponto destaquei algumas ideias que tem se tornado comuns no Brasil, de que o Legislativo interfere excessivamente no orçamento. Trata-se de um erro de análise, pois o local adequado para se discutir o orçamento é no Legislativo, logo, não se pode falar de interferência excessiva desse Poder, no pouco que lhe cabe decidir em face dos gastos obrigatórios. O problema é outro, de falta de planejamento, pois a diferença entre o que é aprovado e o que é executado é muito grande. É usual que, logo após a aprovação da lei orçamentária, sejam aprovadas novas leis flexibilizando o que havia sido aprovado, durante sua execução. É comum ocorrer até mesmo a alteração da alteração da lei orçamentária ao longo do ano. Isso denota falta de planejamento e não interferência excessiva. Isso ocorre em todos os níveis federativos.

O quarto ponto foi sobre receitas públicas, em face da gigantesca alteração que se propõe fazer com a reforma constitucional tributária. É possível acabar com a competência tributária de estados e municípios em face de nossa cláusula pétrea do federalismo? Trata-se de um candente debate jurídico que está sendo colocado de lado pelos condutores da reforma, como se isso fosse irrelevante — e não é, havendo candente risco de judicialização. Sem falar na extorsiva alíquota única de 25%, quando se constata que em Portugal existem (pelo menos) três alíquotas, sendo a básica de 13%, outra de 6% e a de 23%, como a plateia poderia conferir nas notas fiscais de consumo que recebiam todos os dias. Federalismo significa melhor coordenação para o atendimento das necessidades da população em cada localidade, e não aumento de carga tributária.

O quinto ponto diz respeito ao título dessa coluna: o piso de investimentos como um contraponto ao falido teto de gastos. Já tive a oportunidade de expor a ideia em outros textos nesta Conjur (aqui e aqui), com repercussão na Folha de S.Paulo, na coluna de Marcos de Vasconcellos e é de simples compreensão. Para alavancar nosso desenvolvimento é necessário que exista investimento público, seja em capital (tijolos, asfalto, cimento), seja em capital humano (treinamento, capacitação). Ao invés de controlarmos o gasto corrente (que, de certa forma, se confunde com o conceito de gasto primário), que é o cerne do teto de gastos, deve-se estabelecer um piso de investimentos, em todos os níveis federativos, preservando um mínimo de investimentos públicos. Sei que isso vai comprimir os demais gastos, mas a ideia é essa — reservar espaço orçamentário para a realização dos investimentos necessários ao desenvolvimento, e não frear os gastos correntes. Claro que isso demanda a criação de uma espécie de banco de projetos que os governos devem priorizar de acordo com sua política e a compreensão da realidade local, sendo que cada governo federado deve estabelecer metas quadrienais para esse piso.

Tal piso de investimentos não afasta outras medidas de controle orçamentário, seja no gasto, seja na dívida, mas preserva o papel de desenvolvimento que os governos devem protagonizar, em conjunto com o setor privado da economia. A mão invisível do mercado pode muito, mas não pode tudo, em especial no que se refere aos investimentos públicos, seja em capital-capital, seja em capital humano. Um exemplo no âmbito do capital humano: em face da digitalização dos processos judiciais, uma grande quantidade de oficiais de justiça perdeu sua função e devem ser recapacitados para desenvolver outras funções dentro do aparelho judiciário até sua aposentadoria — isso é um pingo d'água no oceano, mas resolveria um sem-número de engasgos que emperram o bom funcionamento do Judiciário. Essa recapacitação deve se inserir no piso de investimentos aqui proposto.

Enfim, foram estas as ideias expostas naquela ocasião, em que muito aprendi com colegas do Brasil e do exterior. Recomendo a todos que assistam as palestras que foram gravadas e serão disponibilizadas no site do Fibe, que, desta forma, cumpre com qualidade seu papel de integração de conhecimentos, seja no âmbito Brasil-Europa, seja no da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), novo horizonte a ser descortinado.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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