Opinião

Lei nº 12.527, documentos tarjados e a publicidade constitucional

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27 de fevereiro de 2023, 13h12

Muitas vezes o cidadão solicita informações ao poder público com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, mas a autoridade administrativa informa de forma sucinta e direta a impossibilidade parcial de atender o pleito e faz diversos tarjamentos em documentos públicos com base em suposto sigilo pessoal ou empresarial, ou até mesmo sigilo decorrente de risco à competitividade e à governança empresarial.

No ponto, em regra, o agente público, para defender o segredo, enquadra o caso na hipótese legal de que trata o artigo 22 da LAI, que regula o acesso à informações previsto constitucionalmente, a saber: "O disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público".

Assim sendo, diversos pontos dos documentos são tarjados, por terem sido considerados protegidos pelo sigilo com fundamentação parca e citação legalmente equivocada do artigo 22 da LAI, pois o tarjamento, por exemplo, do nome das empresas citadas no documento visaria em tese preservar o sigilo dos envolvidos.

Decerto, a construção dos princípios da transparência e da publicidade têm origem no texto constitucional, in verbis: "a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" (artigo 5º, LX) e "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade" (artigo 37, caput).

Logo, a Constituição Federal de 1988 traz um marco destacado ao processo de civilização democrática, conforme previsão expressa, e, consequentemente, amplia o conceito de público para além dos confins estatais. Neste contexto, a publicidade e a transparência configuram valores fundamentais para a democracia brasileira e pela busca da tutela de direitos fundamentais. Diz, nesse sentido, o próprio artigo 21 da LAI que não "poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais".

Nessa senda, além da publicidade ser um direito fundamental do cidadão, também se impõe legalmente como norma jurídica para tutela de outros direitos fundamentais sob pena de inviabilização do conhecimento pela sociedade de como está sendo efetivado o funcionamento da máquina estatal e o desenvolvimento da cidadania, devendo-se remodelar a necessidade imperativa de expansão dos julgamentos administrativos e das prestações de contas.

Não há outro sentido no atual ordenamento jurídico para que se permita o pleno conhecimento dos cidadãos sobre o que é feito pelo Estado e se preserve a impessoalidade e a legalidade. Em outras palavras, a publicidade também se impõe para, no mínimo, possibilitar o acesso à tutela jurisdicional no sentido da verificação de lesão de direito individual ou coletivo pelo uso dos critérios interpretativos pelos órgãos administrativos.

Portanto, não cabe a órgãos estatais negar informações comuns, sob invocação do sigilo empresarial ou pessoal, em se tratando de requisição de informações e documentos para dar conhecimento a população, por exemplo, de decisões de órgãos administrativos colegiados, especialmente quando se trata de verificação de interesse público e violação ou não a livre iniciativa e a livre concorrência.

Desse modo, norteia a administração pública o princípio da publicidade no que desemboca na busca da impessoalidade e da legalidade das suas decisões, ante o acompanhamento pela sociedade. Ou seja, há de ser observado o coletivo para que se permita o controle da atuação do agente público e, por sua vez, da sua atuação no âmbito privado logo após o exercício de cargo público. Sem sombra de dúvidas, a democracia instaurada pela Constituição de 1988 impõe a publicidade como regra das informações referentes às atividades públicas, prescrevendo o sigilo como exceção da exceção, ou seja, em última ratio, apenas quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Diz o STF: "Quanto maior for o sigilo, mais completas devem ser as justificativas para que, em nome da proteção da sociedade e do Estado, tais movimentações se realizem. Os tratados internacionais e a própria Constituição Federal convergem no sentido de se reconhecer não apenas a ampla liberdade de acesso às informações públicas, corolário, como visto, do direito à liberdade de expressão, mas também a possibilidade de restringir o acesso, desde de que (i) haja previsão legal; (ii) destine-se a proteger a intimidade e a segurança nacional; e (iii) seja necessária e proporcional" (ADPF 129, DJE de 9/12/2019).

Desse modo, na cidade de Herédia (Costa Rica), juristas de diversas nacionalidades "se reuniram no seminário 'Sistema Judicial e Internet', cujas discussões centraram-se, prioritariamente, na difusão de informação judicial na internet. A partir daí, foram estabelecidas algumas diretrizes sobre transparência e proteção de dados pessoais, conhecidas como as 'Regras de Herédia'. Essas regras têm por objetivo nortear a divulgação de informações judiciais na América Latina, muito embora não sejam de observância obrigatória. Segundo as Regras de Herédia, são dados pessoais aqueles concernentes a uma pessoa física ou moral, identificada ou identificável, capaz de revelar informações sobre sua personalidade, sua origem étnica ou racial, ou que se refiram às características físicas, morais ou emocionais, à sua vida afetiva e familiar, domicílio físico e eletrônico, número nacional de identificação de pessoas, número telefônico, patrimônio, ideologia e opiniões políticas, crenças ou convicções religiosas ou filosóficas, estados de saúde físicos ou mentais, preferências sexuais ou outras análogas que afetem sua intimidade ou sua autodeterminação informativa. Segundo as Regras de Herédia, ainda: • prevalecem os direitos de privacidade e intimidade quando se tratar de dados pessoais que se refiram a crianças, adolescentes (menores) ou incapazes, assuntos familiares ou que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a participação em sindicatos; assim como o tratamento dos dados relativos à saúde ou à sexualidade; ou vítimas de violência sexual ou doméstica; ou quando se trate de dados sensíveis ou de publicação restrita segundo cada legislação nacional aplicável ou que tenham sido considerados na jurisprudência emanada dos órgãos encarregados da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais; • prevalecem a transparência e o direito de acesso à informação pública quando a pessoa concernente tenha alcançado voluntariamente o caráter de pública e o processo esteja relacionado com as razões de sua notoriedade" [1].

Nesse rumo, não se deve restringir documentos públicos com o fundamento de sigilo pessoal ou empresarial, salvo se extremamente necessário e de forma bem fundamentada os argumentos jurídicos e as questões de fato apresentadas justifiquem o processamento de tarjas e segredos. Por exemplo, em regra, afeta-se o sigilo empresarial se se expõe técnicas de expertise e know how desenvolvidas pelas pessoas envolvidas e protegidas no prazo estipulado em lei.

Logo, considerando os princípios da impessoalidade, transparência e legalidade, e entendendo que as solicitações feitas pelo cidadão se referem a instituições comuns, deve-se revelar essas comunicações ao público, atendendo-se às solicitações dos cidadãos em sua integralidade, ressaltando-se que o sigilo é exceção da exceção, sendo necessária fundamentação bem robusta da autoridade administrativa para tarjar documentos e ocorrer apenas quando puder verdadeiramente revelar algum segredo protegido legalmente, sob pena de violação frontal a publicidade constitucional.

 


[1] Aplicação da Lei de Acesso à Informação na Administração Pública Federal. Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/bitstream/1/46641/1/aplicacao_da_lai_2019.pdf. Acesso em 17/2/2023.

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