Opinião

Saúde mental: direito fundamental e compromisso do Judiciário

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24 de fevereiro de 2023, 14h16

No início dos anos 2000, o Brasil experienciou mudanças paradigmáticas na abordagem normativa da saúde mental enquanto política pública e direito humano fundamental. Em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica assegurou a proteção, os direitos e o tratamento mais humanizado de pessoas em sofrimento mental, vedou a internação em instituições como manicômios e hospícios, e priorizou serviços comunitários de saúde mental.

Nelson Jr./STF
Nelson Jr./STF

Cinco anos depois, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizaria o Estado brasileiro pela morte, em 1999, de um homem durante passagem por clínica psiquiátrica então credenciada ao Sistema Único de Saúde, com marcas evidentes de tortura e maus-tratos. Entre as consequências de sua primeira condenação internacional, o Brasil deveria promover a capacitação de profissionais com atuação na saúde mental de forma a não repetir o que ocorreu a Damião Ximenes Lopes, de 30 anos.

Em 2009, internalizamos a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que compreende a deficiência psicossocial de forma não discriminatória, inclusive no campo do conflito com a lei. Era de se esperar, portanto, que os anos seguintes colhessem os frutos das importantes transformações normativas e jurídicas, mas, duas décadas depois, ainda temos muito a caminhar.

É frente a esse cenário que agiu o Conselho Nacional de Justiça ao aprovar, na última semana, a Política Antimanicomial do Poder Judiciário.

A Política é resultado do trabalho da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões e Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que integra o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ, enquanto resposta do Judiciário às determinações impostas pela condenação do Brasil no caso Ximenes Lopes.

O texto foi desenhado por um grupo de trabalho que se criou no Conselho Nacional de Justiça e reuniu autoridades dos diversos ramos de Justiça do país, além do Poder Executivo, sociedade civil, organismos internacionais e especialistas, inclusive o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, além de técnicos do programa Fazendo Justiça.

O objetivo da Política Antimanicomial do Poder Judiciário é municiar magistradas, magistrados e operadores do sistema de justiça para o encaminhamento adequado dos casos de pessoas com transtornos mentais envolvidas em processos criminais e socioeducativos, priorizando o acesso à rede de saúde pública de base territorial e comunitária.

Busca, ainda, enfrentar a questão dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, que seguem operando em contrariedade ao ordenamento jurídico nacional e internacional ao dificultarem tratamentos com foco na cidadania. Por fim, reduzir a aplicação de medidas de segurança em unidades prisionais, que carecem de atendimento especializado em saúde a essas pessoas com elevado risco para episódios de tortura e maus-tratos. Cito como exemplo caso ocorrido em 2015 na Penitenciária de Bangu, quando uma mulher com transtornos mentais teve parto em uma solitária.

Se por um lado ainda é preciso priorizar o financiamento público para a política de atenção em saúde mental adequada e efetiva, diversas unidades da federação já buscam se adequar à perspectiva antimanicomial. Enquanto o número de medidas de segurança em unidades prisionais está em queda segundo dados do Poder Executivo, estados como Rio de Janeiro e Piauí fecharam Hospitais de Custódia, enquanto Goiás nunca teve esse tipo de estabelecimento. Adicionalmente, diversos tribunais desenvolveram fluxos próprios para encaminhamentos, e vimos multiplicar os grupos de trabalho e ações interinstitucionais para a discussão do tema em pelo menos 11 estados.

Nos próximos meses, o CNJ irá realizar um seminário internacional sobre o tema, além de lançar manual e cursos de qualificação para o Judiciário sobre a temática.

Organismos internacionais especializados em saúde apontam a relação indissociável entre saúde mental e saúde pública, direitos humanos e desenvolvimento socioeconômico, o que demanda a transformação de práticas e políticas com o intuito de trazer benefícios para as pessoas e suas comunidades.

Ao apresentar medidas concretas para a assimilação da Política Antimanicomial pelo Poder Judiciário, o CNJ dá continuidade ao compromisso assumido com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e sua jurisprudência em prol da promoção dos direitos humanos e, especialmente nesta agenda temática, o direito de todos e todas à saúde.

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