Consentimento e inviolabilidade domiciliar: os votos de Mudrovitsch e Schietti Cruz
20 de fevereiro de 2023, 6h09
A doutrina trata o direito à inviolabilidade domiciliar como um dos mais elementares ao ser humano, de modo que ele está previsto em tratados internacionais de direitos humanos, constituições e legislações infraconstitucionais.
Tamanha sua importância que, "ainda em 1886, assim afirmou a Suprema Corte Americana: 'Our law holds the property of every man so sacred, that no man can set his foot upon his neighbour's close without his leave" (Machado, 2014).
A inviolabilidade domiciliar é um direito meio, que resguarda a plena intimidade da pessoa e o desenvolvimento integral do ser humano:
"A difundida proteção garantida ao direito, revela-o, portanto, como manifestação básica da liberdade civil, sem a qual o ser humano não poderia exercer sua privatividade de forma plena, sem a qual não poderia, enfim, afirmar-se como indivíduo diante da sociedade e do Estado" (Machado, 2014).
Apesar das inúmeras críticas doutrinárias às práticas dos órgãos de persecução penal, que raramente se preocupavam em proteger o direito à inviolabilidade domiciliar, somente no ano de 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que fosse realizado um controle judicial à posteriori sobre os fundamentos que levassem à busca em domicílio quando ausente mandado judicial. Da ementa consta:
"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. STF. Plenário. RE 603.616/RO, relator ministro Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806)."
Desde a decisão do STF, o Poder Judiciário brasileiro voltou os olhos à questão e desenvolveu a jurisprudência voltada à proteção ao domicílio. Em especial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem criado ao longo dos últimos anos inúmeros critérios para que a entrada em domicílio possa ser considerada lícita, dentre eles cabe destacar: quando existe justa causa prévia ou não; quando o consentimento é válido ou não; quando ocorre pescaria predatória.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por sua vez, possui alguns julgados tratando do tema de forma tangencial, mas, no caso em exame, reconheceu a violação dos artigos 11.2 e 17 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, destacou que "A limitação das incursões noturnas é uma forma de garantir o direito à vida privada, à proteção da família e do domicílio, no âmbito das competências estatais de detenção no exercício do poder punitivo" (sentença, parágrafo 151), assim condenou o Estado pelas buscas realizadas sem mandado judicial, fora das hipóteses legais e sem o consentimento dos moradores, o que "constituiu uma intromissão arbitrária e abusiva nestes lares" (sentença, parágrafo 156).
Em concordância com a decisão da Corte IDH, Mudrovitsch proferiu voto concorrente sobre a inviolabilidade domiciliar e analisou diversas questões que lhe são pertinentes.
Este artigo pretende analisar o consentimento do morador para realização da busca domiciliar, realizando um comparativo entre o voto concorrente do juiz Rodrigo Mudrovitsch e o voto do ministro Schietti Cruz proferido no precedente qualificado do STJ, Habeas Corpus nº 762.932.
Ao iniciar a análise sobre o consentimento, Mudrovitsch demonstrou sua preocupação com a desigualdade de forças que existe entre o cidadão e o agente público, "especialmente nessa situação em que o agente pretende tomar medida para restringir a garantia da inviolabilidade do domicílio" (voto concorrente, parágrafo 58). Exemplificou a necessidade de se desconfiar do consentimento com base em dois julgados da Suprema Corte estadunidense (Scotus): Amos vs. EUA (1921) e McCaleb vs. EUA (1977). Do primeiro, constata-se que o consentimento para busca domiciliar sem mandado não é uma renúncia ao direito constitucional; no segundo, Mudrovitsch apontou que "a Suprema Corte determinou que o consentimento do residente deve ser 'inequívoco, específico e informado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção'" (voto concorrente, parágrafo 59).
O ministro Schietti Cruz da mesma forma que Mudrovitsch, apontou a necessidade de examinar o consentimento na jurisprudência da Suprema Corte estadunidense:
"Faço lembrar, por oportuno, que, na doutrina e na jurisprudência norte-americanas, dedicadas há décadas a analisar o tema do consentimento do morador, a compreensão geral é a de que, para ser válido, ele “deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção ('consent, to be valid, 'must be unequivocal, specific and intelligently given, uncontaminated by any duress or coercion'") (United States v McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citing Simmons v Bomar, 349 F2d 365, 366 (6th Cir 1965)."
O destaque para jurisprudência estadunidense é importante (senão crucial), pois o desenvolvimento da matéria, que diz respeito à 4ª emenda, ocorre há muitas décadas. Além dos casos já citados pelo juiz e pelo ministro, temos, dentre inúmeros outros:
1º) Bumper v. North Carolina, 391 U.S. 543 (1968), caso em que a Scotus decidiu que o ônus de provar a voluntariedade do consentimento e a consciência do direito de escolha recai sobre a acusação;
2º) U.S. v. Rich. United States Court of Appeals, Fifth Circuit (1993), caso em que o pedido do réu foi concedido para suprimir as provas, porque foi baseado na determinação errônea de que o consentimento para revistar seu veículo não incluía consentimento para revistar sua bagagem, que estava dentro do veículo;
3º) U.S. v. Miller (M.D.N.C. 1996), que tratou do procedimento "knock and talk", que consiste em bater na porta de um suspeito para iniciar uma conversa sobre possível traficância ocorrendo na residência do suspeito e, em seguida, obter o consentimento (viciado) do morador para revistar.
Após destacar a necessidade de desconfiar do consentimento, Mudrovitsch apontou que "o consentimento não deve ser considerado arbitrariamente para permitir a busca domiciliar quando não houver suspeita razoável de que a situação seja de flagrante" (voto concorrente, parágrafo 60) e que a busca sem mandado judicial, ainda que com consentimento, só pode ser realizada quando existir prévia e fundamentada constatação de flagrante, corroborada por elementos objetivos. Segundo Mudrovitsch, para que o consentimento seja válido, ele dever ser voluntário e livre de qualquer coação.
Quanto à necessidade de o consentimento ser dado livre de qualquer espécie de coação, o ministro Schietti Cruz destacou que coação indireta torna a prova ilícita:
"Saliento ainda que, mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho — sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos —, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimar a diligência policial, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade."
Outro ponto importante do voto concorrente diz respeito à averiguação do livre consentimento ou não pelo Poder Judiciário. O juiz brasileiro afirmou que o julgador deve averiguar a validade do consentimento dado, destacando ser ônus do Estado demonstrar que existiam elementos prévios que justificassem a abordagem policial e que o consentimento se deu livre de vícios, sejam internos (como capacidade de consentir), sejam externos (como promessas de policiais):
"62. Embora não se negue a possibilidade de prever expressamente a referida exceção, mesmo com as ressalvas apresentadas, o consentimento, como o flagrante delito, também requer cuidadosa análise judicial posterior. Nesse caso, o juiz deve primeiro verificar quais elementos os agentes de segurança pública tinham para poder adotar essa medida e, posteriormente, quais as evidências de que o morador consentiu livre e espontaneamente com a entrada. Em caso de dúvida, por exemplo, se as versões dos agentes e dos moradores forem diferentes, deve prevalecer a versão da pessoa cujo direito foi violado: o cidadão. Isso porque cabe ao Estado o ônus de provar que o consentimento foi realmente livre e voluntário. […]
63. No entanto, ainda que haja declaração expressa de consentimento, é necessário que o Estado prove que foi dado livremente, sem que haja indícios de que tenha sido obtido sob coação. Esse requisito é essencial para evitar arbitrariedades e abusos de autoridade na realização de busca domiciliar."
Da mesma forma que o juiz brasileiro, o ministro Schietti Cruz apontou em seu voto que a dúvida quanto ao consentimento ou não deve ser resolvida em favor do acusado, uma vez que é ônus estatal demonstrar que aquele se deu livre de vícios:
"Se, de um lado, se deve, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que o senso comum e as regras de experiência merecem ser considerados quando tudo indica não ser crível a versão oficial apresentada, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota indisfarçável desejo de se criar narrativa amparadora de uma versão que confira plena legalidade à ação estatal.
Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas — avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos —, ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio libertas). Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado."
Quanto ao ônus da prova, denota-se que nem o ministro, nem o juiz especificaram se ele diz respeito ao ônus de persuasão ou ônus de produção ou mesmo a ambos. A diferença entre tais espécies de ônus, de acordo com Rebouças, está no fato de que no primeiro a parte tem o "encargo de persuadir o juízo acerca da veracidade da prova produzida", enquanto o segundo é "compreendido como o encargo da parte de produzir e de apresentar provas para a demonstração de suas alegações" (2022, p. 666).
Entende-se que ambos os ônus cabem aos órgãos de persecução penal, porquanto é dever do Estado demonstrar que produziu a prova de acordo com os ditames legais, bem como é seu dever demonstrar que a prova é verdadeira e capaz de persuadir o juízo. Ou seja, cabe ao Ministério Público demonstrar que a violação ao domicílio foi feito com consentimento expresso e que havia justa causa prévia, devendo, ainda, convencer/persuadir o juízo de que o consentimento seria dado por qualquer pessoa em situações similares e que a prova o pode favorecer.
Ainda quanto ao ônus da prova sobre o consentimento, possível fazer um paralelo com o ônus da prova no processo internacional, quando, por exemplo, se está diante do crime de desaparecimento de pessoas, no qual o meio probatório está à disposição (quase que) exclusiva do Estado (Paiva; Heemann, 2020, p. 59). Salienta-se, "não se pode exigir do titular do domicílio que demonstre a ausência de seu consentimento" (Rebouças, 2022, p. 841).
Concluindo seu voto, Mudrovitsch destacou que "se pretende regular e parametrizar a atuação dos agentes públicos relacionados à invasão de domicílio, buscando coibir os abusos especialmente praticados em operações policiais" (voto concorrente, parágrafo 68).
Do mesmo modo, o ministro Schietti Cruz destacou que "conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem, com prioridade, em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição da República".
A preocupação do juiz e do ministro são legítimas e necessárias porquanto diversos estudos apontam que a violência policial no Brasil é epidêmica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos "destaca que as consequências sociais dos efeitos da violência institucional são devastadoras para as famílias e afetam profundamente o tecido social das comunidades" (2021, p. 119).
Apesar de o voto do ministro Schietti Cruz ter sido proferida em Habeas Corpus, ele é considerado um precedente qualificado, conforme afirmou o ministro em evento organizado pelo STJ e STF: "É questão de construirmos uma normatização que corresponda à evolução e importância desse remédio heroico". Assim, o Poder Judiciário brasileiro deve "observar" o voto proferido pelo ministro, conforme preceitua o artigo 315, §2º, do Código de Processo Penal.
Outrossim, o voto concorrente de Rodrigo Mudrovitsch é de observância obrigatória, pois, conforme lecionam Leticia de Andrade Porto e Eduardo Cambi, "as sentenças da Corte IDH devem servir como standards interpretativos a todos os países signatários, a fim de nortear a máxima efetividade dos direitos humanos, inclusive como precedentes a serem seguidos nos sistemas de justiça locais" (2021, p. 46).
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Referências
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 762.932/SP, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 30/11/2022.
CAMBI, Eduardo; PORTO, Leticia Andrade. Ministério Público resolutivo e a proteção dos direitos humanos. Coleção Ministério Público Resolutivo. Belo Horizonte: D'Plácido, 2021.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil: Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021 / Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Valencia Campos y otros vs. Bolivia. Sentença de 18 de outubro de 2022.
VITAL, Danilo. Teses firmadas em HC são desafio à cultura de precedentes na seara penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-05/teses-hc-sao-desafio-cultura-precedentes-seara-penal. Acesso em 1/2/2023.
MACHADO, Iuri Victor Romero. Inviolabilidade domiciliar: novas perspectivas a partir do direito comparado. In: Revista Justiça e Sistema Criminal. v. 6, nº 10 (2014)
REBOUÇAS, Sergio. Curso de direito processual penal. Vol. 1. 2ª ed. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido, 2022.
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