Protocolos e coletâneas incentivam uso de produção teórica de mulheres no Judiciário
19 de fevereiro de 2023, 9h47
A presença de mulheres na advocacia e no sistema de Justiça no Brasil segue em franca ascensão. Em 2021, o Conselho Federal da OAB informou que pela primeira vez na história o número de advogadas superou o de advogados no Brasil. Na ocasião, o número de advogadas era de 610.369 e de advogados 610.207.

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Dados do levantamento "Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário", publicado pelo CNJ em 2019, apontam que desde a Constituinte de 1988 para cá, o número de mulheres aumentou na Justiça Estadual. Na Justiça Federal, no entanto, o percentual diminuiu.
Considerando o número total de magistrados em exercício em todo o Brasil (Justiça Estadual, Federal, tribunais superiores, entre outros), a participação feminina cresceu quase 60% de 1988 até 2018, indo de 24,6% para 38,8%.
A presença feminina também é marcante no corpo docente das universidades e na produção científica, mas não se reflete na jurisprudência adotada pelos tribunais brasileiros.
Por isso, a iniciativa do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, de citar apenas juristas mulheres para fundamentar sua decisão, chamou a atenção da comunidade jurídica para a invisibilidade dessas estudiosas.
Pesquisa feita pela advogada Daniela Urtado e pelo bacharel em Direito Diego Kubis Jesus, divulgada em 2021, demonstrou que entre 2013 e 2020, dos 114 juristas mais citados pelo STF, apenas 13 são mulheres.
Iniciativas de destaque
Essa sub-representação das mulheres na jurisprudência brasileira já vem sendo combatida pelo próprio STF e também pelo CNJ. Em março de 2022, o então presidente do STF, ministro Luiz Fux, anunciou o lançamento de mais uma edição da coletânea "Bibliografia, Legislação e Jurisprudência Temática".
Na ocasião, o tema foi "Produção de Mulheres em Direito Constitucional", iniciativa que representou oprimeiro passo para a criação de um repositório da produção intelectual das mulheres, que será alimentado periodicamente.
Esses repositórios têm se espalhado por alguns tribunais do país e aumentado a oferta da produção científica feminina para consulta dos tribunais.
O CNJ, por sua vez, implementou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (documento aqui), iniciado durante a presidência do ministro Luiz Fux.
A iniciativa atendeu a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em decorrência da condenação do Brasil por omissão quanto ao assassinato de Márcia Barbosa de Souza, em 1988.
Problema estrutural
Para Maíra Zapater, professora de Direito Penal e Processual penal do curso de Direito da Unifesp, a invisibilidade das juristas nos tribunais brasileiros é um problema estrutural que não está restrito apenas à esfera criminal.
"O que acontece no Sistema de Justiça nada mais é do que um reflexo do que acontece na sociedade. Mulheres têm menos espaço de fala nos espaços de poder. Ainda que tenhamos hoje mais autoras mulheres do que há cinquenta anos, ainda não se criou o hábito de citar juristas mulheres. Se a gente pensar em autores e autoras negras, trans e descendentes de povos originários também teremos uma representação menor", explica.
A criminalista Flávia Rahal tem entendimento parecido. "Há muitas mulheres juristas altamente competentes e que são menos citadas que homens. Penso que isso é resultado de uma questão histórica, fruto de um universo tradicional e machista, no qual a repetição automatizada de certos comportamentos acaba evitando que se abram espaços para o que é diferente. Se, no passado, a Justiça criminal era tida como ambiente masculino, hoje isso mudou radicalmente. Não temos, no entanto, o reflexo dessa mudança retratada na jurisprudência, nos Tribunais, na ocupação de cargos de poder. As mulheres estão em todos os espaços, são extremamente qualificadas e precisam ser reconhecidas por isso", sustenta.
A advogada Valentina Jungman lembra que nossa sociedade é marcada por uma cultura de repressão que faz com que a opinião das juristas mulheres seja menos considerada e lembrada pelos leitores e operadores do direito.
Valentina é autora da proposta da paridade de gênero para registro de chapa nas eleições da OAB. Segundo ela, iniciativas como as do ministro Gilmar Mendes, do STF e do CNJ são bem-vindas para sanar a distorção da sub-representação feminina na jurisprudência dos tribunais brasileiros.
"É importante que sejam adotadas políticas e ações afirmativas buscando dar visibilidade à produção das juristas mulheres, possibilitando uma maior divulgação e conhecimento da produção científica feminina", defende.
Hiato acadêmico
Mariana Chiesa, sócia da Manesco Advogados, afirma que na academia a sub-representação feminina ainda persiste. "De um ponto de vista histórico, a conquista das mulheres de estarem nesses espaços é bastante recente — basta lembrar que a Faculdade de Direito da USP, por exemplo, demorou mais de meio século para receber em seus bancos a primeira estudante mulher — e só em 1998 teve sua primeira diretora mulher."

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Mariana também lembra que 2023 marca os 20 anos da promulgação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) pelo Brasil.
"O artigo 7º da CEDAW é claro em estabelecer que os estados tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres na vida política e pública do país, devendo, em particular, garantir que elas possam, em igualdade de condições com os homens, participar na formulação de políticas governamentais e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais", diz.
Helena Najjar Abdo, sócia nas áreas de Contencioso e Arbitragem e Mediação do Cescon Barrieu, por sua vez, sustenta que distribuição desigual de docentes do gênero feminino nada mais é do que um reflexo do que ocorre com todas as carreiras jurídicas. "É o conhecido 'teto de vidro', que inibe sistemática e estruturalmente o acesso de mulheres aos cargos mais altos da carreira profissional. Existem hoje alguns trabalhos acadêmicos sérios tratando do assunto, assim como o tema passou a ser pensado e debatido na mídia e na sociedade, em especial depois do agravamento das adversidades sofridas por mulheres em sua carreira acadêmica e docente durante a pandemia de Covid-19", afirma.
Uma das iniciativas mais relevantes na academia para fomentar a produção acadêmica e o olhar feminino é o "Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas", coordenado pela professora Fabiana Cristina Severi da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto.
O projeto busca construir um novo tipo de diálogo sobre gênero e decisões judiciais no país e acompanha experiências desenvolvidas em diversos países, como uma colaboração criativa entre acadêmicas jurídicas feministas que começaram a reescrever decisões judiciais em casos significativos a partir de uma perspectiva feminista.
Passos necessários
A doutora em Direito Civil pela PUC-SP e sócio do Costa Tavares Paes Advogados, Carolina Xavier da Silveira Moreira, afirma que o Brasil tem mulheres juristas, magistradas, procuradoras, defensoras, advogadas e professoras de grande relevância, e a elas não é dado o mesmo espaço conferido aos homens.
"Basta olhar uma foto oficial de qualquer desses órgãos, escritórios de advocacia ou universidades. É fácil perceber que a maioria esmagadora é formada por homens brancos. Urge mudar esse cenário. Sabe-se que a mudança de uma cultura leva tempo, mas o processo de mudança efetiva de mentalidade e atitude em relação à diversidade não pode ser ignorado", diz.
Carolina acredita que é a falta de diversidade que faz com que um acórdão como o do ministro Gilmar Mendes chame tanto a atenção. "Nesse sentido, a iniciativa do Poder Judiciário (e das cortes arbitrais), ao dar voz e vez às mulheres, é absolutamente louvável e merece aplausos. Espera-se, agora, que os demais atores do Direito também cedam espaço às mulheres e as apoiem em sua ascensão profissional, especialmente durante a maternidade."
A advogada, especialista em direito constitucional e mestre em direito público administrativo pela FGV, Vera Chemim, também vê com bons olhos as recentes movimentações para dar visibilidade à produção acadêmica feminina. "Trata-se de uma iniciativa extremamente válida e oportuna, especialmente na atual conjuntura social brasileira, em que as mulheres estão conseguindo, mesmo que lentamente, criar o seu espaço e delimitarem o seu território, independentemente de qualquer obstáculo de natureza discriminativa."
Para Maíra Zapater, a questão levantada pela decisão do ministro Gilmar Mendes não deve ser "por que só citar mulheres?", e sim "por que citar apenas homens em tantas outras decisões?".
"Por outro lado, a natureza e tema da decisão chama atenção. A questão é a decisão tratar de uma mãe e do encarceramento feminino, mas gostaria de ver decisões de Direito Tributário em que apenas mulheres fossem citadas, por exemplo. Eu acho importante a iniciativa do ministro, mas também é igualmente importante desconstruir essa noção de que mulheres tratam de assuntos de mulheres."
Perspectiva de gênero
Na decisão do ministro Gilmar Mendes que levantou o debate, o magistrado acolheu pedido de reconsideração e concedeu, de forma monocrática, prisão domiciliar a uma mulher denunciada por tráfico de drogas.
Uma das pesquisadoras mencionadas pelo magistrado foi a professora Janaina Matida, mencionada pelo artigo "Precisamos fortalecer a defesa criminal com perspectiva de gênero", publicado na coluna Limite Penal, da revista eletrônica Consultor Jurídico.
Outra mulher mencionada pelo ministro foi Marina Pinhão Coelho Araújo, por seu artigo publicado na Folha de S.Paulo com o título "No direito, o humano não é feminino: Juristas estruturam respostas a partir do que é vivenciado pelo masculino".
"Ao construir seu conceito de liberdade, Hannah Arendt propôs que só seria realmente livre quem pudesse, em espaços públicos garantidos, desenvolver toda sua personalidade e capacidade como ser humano", afirma Coelho Araújo. "O sistema jurídico ainda exclui do espaço público a perspectiva de gênero."
Gilmar também abordou o conceito de "in dubio pro stereotypo", desenvolvido por Valéria Pandjarjian, Angélica de Maria Mello de Almeida e Wânia Pasinato Izumino. Segundo ele, a perspectiva de gênero deve ser aplicada tanto à condição de vítima, quanto à condição de investigada ou de acusada, para que seja possível superar as limitações dos estereótipos a que as mulheres estão sujeitas.
Ana Luisa Schmidt Ramos foi citada para destacar a importância de adotar a perspectiva de gênero no Judiciário para não reproduzir desigualdades estruturais. Marli Canello Modesti, por suas reflexões sobre prisões de mães envolvidas no tráfico de drogas.
Os trabalhos acadêmicos de Thais Zanetti de Mello Moretto e Bárbara da Silveira também foram citados pelo ministro em sua fundamentação. A decisão ainda lista uma bibliografia básica sobre a questão de gênero, citando autoras como Djamila Ribeiro, Françoise Vergès, Grada Kilomba, bell hooks, Angela Davis, Kimberlé Williams Crenshaw, entre outras.
Arremata a decisão a fala das professoras Silvia Pimentel e Alice Biachini, de seu livro Feminismo(s) (editora Matrioska): "Pretendemos ter conseguido ressaltar o quanto o feminismo e linguagem e ação. É discurso político que se baseia nos ideais de justiça social e igualdade material e é prática revolucionária, que busca concretizar esses ideais, por meio da transformação de valores, estruturas, atitudes e comportamentos."
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