Opinião

Sentimentos e reflexões no divino divã tributário

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18 de fevereiro de 2023, 15h32

Apesar da recente virada de ano, caminhava agasalhado pelas ruas atipicamente vazias de Copacabana. Era um fim de tarde frio e chuvoso, bem diferente do estereótipo do verão carioca. Na presunçosa cabeça, até mesmo o Divino se curvara e resolvera acompanhá-lo na sua mais importante promessa de Ano Novo. Afinal, nada mais "natural" que na primeira ida à analista até mesmo a Princesinha do Mar lhe abrisse passagem, colorindo de cinza todo o entorno, mera extensão do vazio que era ele próprio.

Nervoso como nunca, encontrou o prédio: "sobreloja". Escolheu as escadas, em opção misto de maiores "gasto de tempo" e "consumo de adrenalina". Subiu. Virou à esquerda. Andou vagaroso à última porta, no fim do longo e sombrio corredor. Inspirou fundo. Expirou raso… Dedo na campainha. Tocou. Antes de terminar o movimento de reerguida dos olhos, a porta se abrira. Com o cantinho dos finos lábios, uma jovem e bela senhora lhe sorriu suave:

— Entre, senhor Tributo. Há anos o espero.

***

A sala era simples e organizada. Escrivaninha ao fundo, estante branca logo atrás, preenchida por alguns livros e plantas. Luzes fracas do crepúsculo invadindo o restante do pequeno ambiente, iluminando levemente as costas de uma modesta cadeira de madeira, onde se acomodara a Doutora. À frente, meio que na penumbra, um sofá com jeito de divã, de não mais que dois lugares. Justamente em direção a esse móvel, ela estendera o braço, com a mão espalmada para cima:

— Por favor, senhor, venha tranquilo. Acomode-se.

Não que tivesse dúvidas de que chegara ali por (aparente) livre e espontânea vontade. Porém, ainda assim, Tributo desconfiou. Esquecera-se do que era gentileza. Há anos se acostumara com críticas vindas de todos os lados. "Complexo", "obscuro", "irracional" eram algumas das palavras mais afetuosas que lhe eram dirigidas por aqueles que deveriam ser sua razão de existir. Convite para conversas não era parte frequente de sua vida social.

Seja como for, mesmo que uma âncora o puxasse pelas duas pernas, Tributo se sentou lentamente na ponta do divã. Mãos unidas em posição de reza, pescoço curvado, olhar baixo. Sensação de arrependimento pela promessa de Ano Novo, ao ter decidido deixar o Olimpo e caminhado até ali. Até porque estava confortável e fechado em seu palácio de tipicidades, regras matrizes e estritas subsunções à norma. Ou seja, desnecessária exposição.

Enquanto ainda ponderava se sairia dali correndo, quebrando a promessa e tudo mais que visse pela frente, a voz doce da Doutora cortou o silêncio:

— Como o senhor se sente?

"Como me sinto?!", chacoalhou-se Tributo no sofá-divã, quase que recuperando a confiança perdida. Nunca na sua milenar história alguém ousara perguntar-lhe algo parecido. Estava acima de emoções e sentimentos. Fosse de forma mais rústica, como meio de dominação, fosse de maneira mais sofisticada, como preço da liberdade, seu propósito sempre fora executar a ordem de pagamento. Sempre. Se houvesse qualquer sentimento nisso, no máximo seria o da dor no bolso alheio.

— Não existo para sentir, mas para arrecadar. Arrecadar para Faraós, Cézares, Príncipes, Déspotas, Presidentes. Todos esses que sempre contaram comigo. Nunca os decepcionei. Nun-ca!

Doutora o observava fixamente. Por trás dos largos óculos, olhos verdes, miúdos e penetrantes. Aparentemente convencidos da honestidade da crença, mas nem um pouco de que o objeto da crença era ele próprio honesto. Tanto que, com suavidade, emendou nova questão:

— Mas ainda que entenda que nunca os tenha decepcionado, já decepcionou a si mesmo?

A reflexão invadira Tributo. Até ali, acreditava que sua história havia sido escrita no propósito de servir. Mero instrumento que se imaginava, ele apenas servia àqueles que detinham o poder e que, exatamente por isso, o arrecadavam para o fim que julgassem mais apropriado. Se o contexto fosse de manutenção de domínio, seria arrecadado para tal. Se fosse de pagamento de preço pela liberdade, lá estaria ele, fiel, sendo arrecadado como moeda dessa ilusão. Sempre entre os limites da cobrança e do pagamento. O que vinha antes e o que vinha depois não lhe dizia respeito. Portanto, até então nunca cogitara pensar nele próprio fora desse intervalo, muito menos se "decepcionou a si mesmo". Sem emoção. Sem sentimento. Sem reflexão.

Contudo, como ensinara o gênio da comuna de Vinci que "simplicidade é o último grau de sofisticação", a singela pergunta da Doutora fizera Tributo irrigar todos os cantos do corpo em estrondoso dilúvio de pensamentos. Semelhante às perigosíssimas chuvas do verão carioca, em contraste com aquele dia frio e de fina garoa. Se do lado de fora da aconchegante salinha o clima era atípico para a época do ano, por dentro de Tributo um furacão se formava e crescia, alimentado, ao mesmo tempo, por uma mistura de tudo que ele imaginara não possuir: sentimentos e reflexões.

Ainda com a boca entreaberta, na busca interna por libertar as palavras que ofereceria de volta à Doutora, Tributo seguia no uso da força da pergunta para compreender por que nascera a promessa de Ano Novo. Para encontrar a origem do lhe fizera deixar a segurança do seu palácio, caminhar pelas sorrateiras ruas de Copa e arrastar a âncora corredor adentro da escondida sobreloja. Incrivelmente, até aquele instante não havia compreendido qual a razão primeira que o impulsionara ao toque na campainha. Porém, agora, ao ser inundado por reflexões e lembranças sobre a sua jornada e o sorriso da Doutora — que "há anos" o esperava —, era, enfim, capaz de cuspir o seu "porquê", que quase o afogava:

"Decepcionei a mim mesmo", disse Tributo, voz fraca, ainda com pouco ar, buscando fôlego. "Eu me mantive por gerações fechado e cerrado. No limite das fronteiras da cobrança e do pagamento, vendo a realidade, a história, as decisões… enfim… as pessoas passarem pela minha janela e me dizendo que 'aquilo não era comigo. Estava errado. Era comigo sim."

Embora não surpresa, Doutora estava genuinamente atenta e interessada às recém-nascidas reflexões do outrora insensível semideus da regra-matriz. Não à toa, assumira o papel de Virgílio e, com nova pergunta, guiava aquele Dante tributário pelo círculo do Inferno que pode ser o percurso do autoconhecimento.

— E por que pensa isso agora, senhor Tributo?

A resposta lhe caíra da boca:

— É por causa da vida…

"Por causa da vida", repetiu mentalmente para si. Após existência quase abstrata, que remontava já não sabia a quantos séculos, Tributo finalmente vivenciava seus sentidos. Sentidos esses não apenas físicos — que àquela altura lhe queimavam a pele —, mas principalmente espirituais, definidores e redefinidores de propósito.

Assim, com a sabedoria e a experiência dos mestres que bem compreendem que nem toda ação necessita de uma reação, Doutora se valeu do silêncio e apenas aguardou a sequência da reflexão tributária. E, como não seria diferente, essa seguiu o trajeto Purgatório de purificação, novamente jorrando de seus lábios:

— Doutora, meu propósito é servir, sim. Sou um servidor. Mas agora vejo que não apenas de quem detém o poder. Não apenas de quem define que devo ser arrecadado ou de quem decide se minha cobrança é constitucional ou não. Sirvo a todos. É o que a vida me mostra.

"Por que agora acredita nisso?", quis saber a Doutora, sutilmente curiosa.

Não mais ofegante, Tributo se desprendeu da âncora, abriu o peito, impostou a voz e a olhou fixamente:

— Porque em meu nome se defende a segurança jurídica, mas não a justa segurança. Porque se discute o voto de qualidade, mas não a qualidade do voto. Porque se decide com base nas consequências para os cofres públicos, mas não para os cofres do público, que são os ovos de ouro daqueles. Porque se lembra de 'apostas tributárias', mas se esquece que o bilhete lotérico era chamado 'decisão judicial transitada em julgado'. Porque se fala dos 'ventos que ventam lá e cá', mas sem nunca ter colocado a sua vela para navegar nos tortuosos mares das restituições. Porque se advoga contra a 'absoluta inconstitucionalidade', mas a favor do primeiro interesse que relativize a Constituição. Porque se brada pela 'simples defesa da livre concorrência', mas se sussurra quando a complexidade do sistema é arma para matar o concorrente. Porque se diz lecionar a 'defesa incondicional da coisa julgada', mas ao se julgar assombra o país ressuscitando 'impostos-fantasma'. Porque se modula por interesses que jamais são modulados.

Sob olhar mais expressivo que mil palavras da Doutora, Tributo finalizou, chegando ao epicentro de suas reflexões e emoções:

— Sem certos e errados, justos e injustos, fato é que todos esses "porquês" vão além dos limites do cobrar e do pagar. Sou mais do que essas artificiais divisas, pois precisam de mim para construir a Sociedade que evolui em questões como sustentabilidade, preconceitos de raça e gênero, saúde pública, inclusão social e tudo mais de que Estados livres necessitem para também serem mais iguais e fraternos. Isso é vida. E se é vida, eu sirvo a todos.

Após um ou dois minutos de silêncio, Doutora conferiu o relógio: fim da sessão. Como que já ciente, Tributo agradeceu a ela e ao sofazinho-divã, que mereceu último afago e dois carinhosos tapinhas, dados enquanto se levantava. Elegante e tranquila, Doutora o acompanhou à saída, abrindo-lhe a porta. Despediram-se, certos de que não haveria uma próxima conversa, ao menos não em breve. Se Tributo sabia ser mais, era hora de ganhar o mundo e transformar as reflexões em atitudes. De ajudar na construção da melhor vida possível à Sociedade.

Já do lado de fora, sem mais a âncora que arrastara na chegada, percebeu que Doutora permanecia ao lado da porta, como que em último aguardo. Mistura ainda pulsante de sentimentos e reflexões, foi a vez de Tributo partilhar simples, sofisticada e óbvia pergunta:

— Por que há anos me esperava?

Com a mesma firme doçura que lhe fizera questões, Doutora ofereceu sua resposta:

— Porque como Sociedade sempre fui eu quem contei com o senhor.

Sorriu, entrou e fechou a porta.

***

Já era noite fechada. A chuva cessara e o frio não era mais tão intenso. As ruas de Copa começavam a se agitar, animadas pelos contrastes da vida do mais brasileiro dos bairros. Pelas calçadas, Tributo a todo instante tomava pequenos esbarrões, meio que lembretes de que a vida real encosta em todos, sem fáceis aberturas de passagem. No caminho da construção, não havia retas, mas sim curvas e obstáculos, como as ondas da Princesa do Mar.

Enquanto seguia seu retorno ao palácio, reparou que, em um quiosque do calçadão da Atlântica, um pequeno grupo acompanhava com o olhar quase que invasivamente seus passos. Um Menino, de camiseta gasta, mas bela, de listras verticais verdes e vermelhas (na realidade, grenás); um rapaz, nitidamente Aprendiz, cabelinho liso e fino e nariz avantajado; e uma bela moça, Fiscal de ambos, de vestido e peles negros e vivos olhos escuros[1].

Ao passar ao lado dos três, Tributo intuitivamente parou. Como um velho conhecido, o Menino a ele se dirigiu:

— Agora temos que desenhar o senhor para que todos também saibam quem é.

Exato. Não se esconderia mais no palácio. Sem antes saber, isso também fazia parte da promessa de Ano Novo. Afinal, como Doutora o havia ajudado a enxergar, a existência não era típica, nem fechada. Era muito mais do que esses limites. Assim como ele próprio, Tributo, que era – e é – também mais do que ‘cobrar’ e ‘pagar’. Por isso, precisava ficar e não mais permitir lhe creditarem a advocacia faz-de-conta das “absolutas inconstitucionalidades”, ou as restituições “preferenciais e imediatas” nunca restituídas, ou os julgamentos inconsequentes das “apostas tributárias”, cujo bilhete era decisão judicial transitada em julgado.

Portanto, refletindo uma última vez, Tributo concluiu que "talvez nunca venha a existir um Paraíso, mas se houver tentativa de desenhá-lo e construí-lo, vai ser aqui, nesta imperfeita e preciosa Realidade".

Misturados à multidão, os Quatro Improváveis caminharam em frente pelas ondulosas, desafiadoras e belíssimas calçadas da Vida.

 


[1] ALVES, Fabio Silva. "O Menino, o Aprendiz e a Fiscal". In ALVES, Fabio Silva. MURAYAMA, Janssen. COSTA, José Guilherme. RODRIGUES FILHO, Mozart. O Hoje e o Amanhã na Tributação dos Combustíveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

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