Opinião

Pena ao crime de injúria racial pode ser superior aos de lesão corporal gravíssima

Autor

  • Gustavo Roberto Costa

    é promotor de Justiça em São Paulo membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.

16 de fevereiro de 2023, 14h14

A promulgação da Lei nº 14.532/2023, pelo presidente Lula, durante a posse de novas ministras, foi encarada por alguns como um passo à frente no combate ao racismo.

Uma das principais inovações da lei foi tipificar como "crime de racismo" a chamada "injúria racial", agora presente na lei que "define os crimes de preconceito de raça ou cor" (Lei nº 7.716/1989). Com a alteração, para a conduta de injuriar alguém, "em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional", é prevista pena de dois a cinco anos de reclusão, aumentando-se a pena de metade se o crime for praticado em concurso de pessoas (artigo 2º e parágrafo 1º).

As penas previstas na Lei nº 7.716/1989 serão de reclusão de dois a cinco anos se os crimes forem cometidos em "contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público" (artigo 20, parágrafo 2º-A, I). Devem ser "aumentadas de 1/3 até a metade" se os crimes "ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação" (artigo 20-A) e de "um terço à metade" quando praticados por funcionário público (artigo 20-B). Houve outras alterações, as quais, pela brevidade desta reflexão, ficarão para outra oportunidade.

Chama a atenção, inicialmente, a desproporção das penas cominadas pela nova lei com relação àquelas dos demais crimes contra a honra. Para a calúnia, a pena é de detenção, de seis meses a dois anos, para a difamação, detenção de três meses a um ano, e para a injúria comum, detenção de um a seis meses (artigos 138, 139 e 140 do Código Penal).

Veja-se que tendo o crime de injúria racial pena mínima de dois anos  podendo ser aumentada quando praticada em concurso de pessoas, em locais públicos ou por funcionário público , a pena ao caso concreto poderá ser superior àquela aplicada para casos de lesão corporal gravíssima (artigo 129, parágrafo 2º, CP).

A mensagem que o legislador passa é a seguinte: se você não gosta de um negro, arranque a perna dele (lesão corporal gravíssima  artigo 129, parágrafo 2º, III, do CP) ao invés de injuriá-lo, que sua pena será inferior. Não espere coerência da legislação penal.

Caso o juiz tenha dúvidas na interpretação da lei, deverá "considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência" (artigo 20-C).

O que "pode causar constrangimento, humilhação, vergonha ou exposição indevida"? O que é que "não se dispensaria a outros grupos em razão de cor, etnia, religião ou procedência"? É impossível se ter uma resposta minimante coerente. Provavelmente, haverá uma miríade de interpretações, não raro díspares umas das outras, sobre o que esse dispositivo quer dizer. Como esperar segurança jurídica de expressões tão subjetivas?

A meu ver, trata-se de uma violação ao princípio da legalidade, em sua vertente da taxatividade penal. Para o professor Juarez Cirino dos Santos, "o princípio da legalidade pressupõe um mínimo de determinação das proibições ou comandos da lei penal  em geral conhecido como princípio da taxatividade, mas indissociável do princípio da legalidade, como exigência da certeza da lei" [1]. Dar poder em demasia ao intérprete é abrir caminho para arbitrariedades  algo nada incomum para o judiciário brasileiro.

Mas o que chama mesmo a atenção é a euforia de grupos que se colocam no chamado "campo progressista", que comemoram uma lei que vem para "endurecer o sistema penal". A promulgação da lei na posse das ministras da "igualdade racial" e dos "povos originários" dá bem a dimensão da crença que (infelizmente) ainda se tem na efetividade do sistema penal para a solução de problemas sociais.

Já tive a oportunidade de manifestar, neste espaço, a incoerência de se defenderem pautas populares e, ao mesmo, defender o endurecimento penal [2]. No interior de uma sociedade capitalista (de dominação de classes), o sistema penal atua como uma engrenagem da superestrutura que assegura o funcionamento das relações sociais. É tão somente um instrumento de controle das classes subalternas, notadamente dos mais desfavorecidos (aqueles que nem para a reprodução do capital servem) [3]. Não há como esperar outra função do direito penal.

Lamentavelmente, não foram levadas a sério as preciosas lições da professora Maria Lúcia Karam, juíza aposentada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual, mais de 25 anos atrás, publicou memorável artigo intitulado A esquerda punitiva [4], escrito que deve ser eternamente lembrado por aqueles que se colocam como defensores das causas populares e dizem lutar por diretos de grupos desfavorecidos.

A professora, no trabalho, conceitua como ingenuidade a pretensão de que mecanismos extremamente opressores da classe trabalhadora sejam dirigidas a outro tipo de criminalidade (como a de colarinho branco, por exemplo). Critica ela a posição de setores da esquerda (talvez órfãos do stalinismo e de suas incontáveis arbitrariedades) que, abandonando sua visão garantista, passam a construir a imagem de "bons magistrados" àqueles que impõem "rigorosas penas" a determinados tipos de crimes, e que passam a apropriar-se de um "generalizado e inconsequente clamor persecutório".

Destaca a digna jurista que a pena é pura e simples "manifestação de poder" (no caso do capitalismo, poder de classe), razão pela qual será sempre dirigida aos excluídos, àqueles que recebem o status de criminoso. A imposição de pena criminal para um ou outro membro das camadas superiores da sociedade serve "tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação". A defesa dos direitos das mulheres, dos negros e do público LGBT, nesta seara, servirá para mascarar ainda mais a opressão operada pelo sistema penal.

Maria Lúcia Karam relembra que a reação punitiva, ao identificar o inimigo, o mau, o perigoso, sempre de forma arbitrária e com viés classista, acaba por dispensar a investigação das verdadeiras razões dos problemas sociais e de condutas consideradas negativas; torna invisíveis as fontes geradoras da criminalidade, além de fomentar e incentivar a crença em "desvios pessoais", encobrindo e deixando "intocados os desvios estruturais que os alimentam". Racista, portanto, seria o indivíduo, e não o sistema.

Como é que forças políticas voltadas (ao menos no discurso) à luta por transformações sociais podem fornecer sua completa adesão a um instrumento tão eficaz de manutenção de interesses e valores dominantes da sociedade que pretendem "transformar", é a indagação principal da professora Maria Lúcia. Fortalecer o sistema penal é fortalecer o sistema capitalista neoliberal, excludente, individualista, concentrador e insensível. Nada mais que isso.

A causa da exclusão da maioria do povo negro no Brasil é a pobreza. O dinheiro que poderia ser investido em inclusão social é desviado para a rolagem e amortização da dívida pública. O sistema penal, então, aparece como instância apta a controlar a enorme população excluída do mercado de trabalho e de consumo (os negros são a grande maioria nos estabelecimentos prisionais e dos mortos pelas forças policiais).

É exatamente assim que funciona a "guerra às drogas": a fim de combater a população pobre, criou-se a ideologia de que o "traficante" (invariavelmente negro e morador de favelas) é o maior inimigo da sociedade, a quem devem ser negados os mais elementares direitos fundamentais. A fim de "combater as drogas", o Estado é dotado de um poder supremo sobre a vida dos cidadãos. O resultado: as drogas estão mais disponíveis que nunca, mas, ao mesmo tempo, a população pobre sofre um verdadeiro estado de exceção.

O poder continuará nas mãos daqueles que sempre o detiveram. Não é porque se promulgou uma lei que o poder de decisão passará aos desfavorecidos. Conceder mais poder aos responsáveis pela repressão da população não é conquistar direitos; é fortalecer mecanismos que impedem a população de se emancipar. O sistema penal não funcionará como querem os ativistas pelas causas populares; funcionará como sempre funcionou e como continuará funcionando enquanto o modelo social e econômico for o que vivemos neste momento.

Crer que esse sistema "combaterá o racismo" é uma ilusão total e completa. Difícil acreditar que a esquerda do espectro político, alimentada há tantos anos com as importantes reflexões da criminologia crítica, ainda comemore a expansão da tutela penal pelo Estado. O direito penal não entregou nenhuma de suas promessas. Em regra, só causou injustiças, encarceramento massivo, exclusão social, mortes e violência. Como acreditar que será capaz de "avançar" na luta contra o racismo?

Em suma, a criação de novos crimes e o aumento das penas surge como uma cortina de fumaça para as verdadeiras causas do racismo. O Estado dá uma suposta satisfação e fica autorizado a não investir em políticas públicas verdadeiramente eficazes de enfrentamento a essa mazela social. Entrementes, os principais atingidos pela ação do sistema penal serão os mesmos de sempre: os pobres, os negros, os favelados, os descartáveis.

O professor Juarez Cirino dos Santos comenta:

"(…) direito penal simbólico não teria função instrumental  ou seja, não existiria para ser efetivo , mas teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos  o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial. O conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado" [5].

Enquanto a luta pela afirmação de direitos for a luta pelo aumento da repressão penal contra o povo, estaremos cada vez mais longe de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preconiza a Constituição (artigo 3º, I). A pauta dos setores populares deve ser o enfraquecimento do sistema penal, a diminuição do número de crimes e do tamanho das penas. E nunca o contrário.


[1] SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 6. ed.  Curitiba: ICPC, 2014, p. 23-24.

[2] A defesa da democracia como justificativa para o estado de exceção. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/gustavo-costa-defesa-democracia-estado-excecao. Acesso em 27 jan. 2023.

Na oportunidade, defendemos:

"Por fim, questão que sempre retorna à pauta é sobre a chamada 'esquerda punitiva' — aquela que acredita no Direito Penal como instrumento para a luta por liberdades democráticas. É assim com parte do movimento feminista, que crê no Direito Penal e na supressão de direitos para combater a violência contra a mulher, com alguns antirracistas e defensores da causa LGBT, que creem que processando criminalmente e prendendo pessoas por atos racistas e homofóbicos se pode avançar na conquista de direitos.

O Direito Penal, desde sua fundação como o conhecemos hoje, jamais cumpriu qualquer função para a qual se propôs. Prometeu acabar com a violência, mas só fomentou a violência. Prometeu acabar com as drogas, mas as drogas estão mais disponíveis que nunca. Prometeu acabar com a corrupção, e nem é preciso dizer em que estágio se encontra a corrupção no país e no mundo. Por que acreditar que ele é capaz de 'defender a democracia'?

A única coisa que o Direito Penal é capaz de trazer são injustiças. Mais e mais pobres e negros sendo presos, acusados e condenados injustamente. O Direito Penal foi 'inventado' para a perseguição das classes subalternas e de inimigos políticos. É incapaz, portanto, de exercer qualquer outra finalidade. É triste ver, até hoje, pessoas que se dizem progressistas que não tenham enxergado essa realidade. Para um Roberto Jefferson que é preso, milhares de desvalidos são jogados em masmorras muito piores".

[3] Os abusos judiciais estão ficando cada vez piores: os casos da boate Kiss e de Ciro Gomes. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-30/gustavo-costa-abusos-judiciais-cada-vez-piores. Acesso em 27 jan. 2023.

"Engels e Kautsky, na obra 'O socialismo jurídico', expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.

Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas".

[4] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In Discursos sediciosos: crime direito e sociedade. Ano 1. Número 1. 1996, p. 79/81.

[5] SANTOS, Juarez Cirino. Política Criminal. Instituto de Criminologia e Política Criminal. Acesso em 27 jan. 2023.

Autores

  • é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

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