Direito Civil Atual

Lei 14.478/22 protege consumidores de ativos virtuais ilícitos

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13 de fevereiro de 2023, 11h20

A elevada quantidade de fraudes envolvendo a prestação de serviços de ativos virtuais conduziu o Brasil, em 21 de dezembro de 2022, a editar a Lei Federal nº 14.478, com o objetivo de prevenir e debelar os ilícitos que se intensificam, causando prejuízos para milhares de cidadãos. Trata-se de diploma normativo que engendra importantes impactos nas searas cível, administrativa e criminal, eis que, respectivamente, regulamenta a atuação das empresas executoras dessas atividades, impõe a fiscalização por parte do poder público e tipifica condutas como infrações penais. A novel legislação terá a sua vigência iniciada a partir de 21 de junho de 2023, mas é fundamental que os operadores do Direito, os órgãos e as entidades, incumbidos da defesa dos consumidores, inteirem-se do seu teor e se aparelhem satisfatoriamente em busca da sua efetividade.

ConJur
A estrutura legal, em epígrafe, encontra-se composta por cinco conjuntos de disposições que versam sobre: 1) a definição dos ativos virtuais e quais os itens excluídos do conceito normativo [1]; 2) a identificação dos agentes econômicos que podem atuar no campo em análise [2]; 3) a necessária autorização por parte do poder público [3]; 3) as diretrizes e os parâmetros a serem obedecidos; 4) os tipos penais instituídos; e 5) a incidência do microssistema consumerista. Ao serem abordados os mencionados prismas, serão também tecidas críticas acerca dos possíveis avanços que deixaram de ser colimados, mormente quanto à necessária proteção dos destinatários finais. Ressalte-se que grande quantidade de brasileiros, sobretudo os que integram as classes menos abastadas e sem acesso a níveis de instrução, têm sido ludibriados quanto à oferta enganosa de negócios envolvendo moedas virtuais, principalmente diante das "pirâmides financeiras".

Ativo virtual consiste na representação digital de valor que poderá ser negociado, transferido ou utilizado para a realização de pagamentos, por meio de instrumentos eletrônicos, com o propósito de investimento, conforme disposto pelo artigo 3º, incisos I a IV, da nº 14.478/22. As moedas nacional e estrangeiras foram excluídas desta definição e, ipso facto, da incidência da sobredita lei. Do mesmo modo, não se aplica à moeda eletrônica, mencionada pela Lei nº 12.865/13 [4], nem a quaisquer instrumentos vinculados aos produtos ou serviços ou benefícios provenientes, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade. Situação similar nota-se com representações de ativos, cuja emissão, escrituração, negociação e/ou liquidação estejam previstas em lei ou regulamento, como se observa com os valores mobiliários.

A perfunctória interpretação do caput do citado artigo 3º acarreta a conclusão de que todos os demais ativos virtuais seriam regidos pelo atual conjunto normativo, exceto aqueles, acima, aludidos. Contudo, o seu parágrafo único prevê que o órgão ou a entidade competente expedirá ato que estabelecerá quais serão regulados; o que desvela o possível caráter restritivo da lei. O ideal seria que o seu campo de incidência fosse mais abrangente, com o fito de resguardar os interesses e os direitos dos consumidores no ambiente virtual. Ademais, não incidirá sobre os valores mobiliários instituídos pela Lei nº 6.385/76, razão pela qual também não implicará a alteração das atribuições da Comissão de Valores Mobiliários, na condição de autarquia reguladora do setor [5].

Apenas as pessoas jurídicas poderão prestar serviços vinculados a ativos virtuais, executando, em nome de terceiros, pelo menos uma das atividades enumeradas nos incisos I a V do artigo 5º. A coibição de que pessoas naturais desenvolvam atividades é relevante medida para se tentar assegurar a estabilidade e a segurança do empreendimento, evitando-se o encerramento indevido e inesperado, causando surpresa para os consumidores e danos. As tarefas podem englobar a custódia, a administração e a transferência de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem o seu controle, mas também será viável a participação em serviços financeiros relacionados. Previu-se ainda a possibilidade de troca entre estes e/ou com moedas nacional e estrangeiras. Outras diligências poderão ser autorizadas, desde que se denotem relacionadas com o setor, quer seja de forma direta ou indireta [6].

O princípio da intervenção estatal encontra-se sedimentado no artigo 2º da Lei 14.478/22, posto que nenhuma prestadora de serviços de ativos virtuais poderá funcionar, no país, sem a prévia autorização do poder público [7]. Omitiu-se o legislador em indicar, de logo, a quem competirá o múnus de fiscalizar o setor, prevendo-se, no artigo 6º, que o Poder Executivo, por meio de ato específico, poderá atribui-lo a um ou mais órgãos ou entidades da administração pública federal. A disciplina do funcionamento e a supervisão das prestadoras são providências precípuas para a efetiva salvaguarda dos consumidores em consonância com o vetor da presença governamental no mercado [8]. Quedou-se ainda inerte em definir se a assunção do mister incumbirá à estrutura existente ou se haverá uma nova configuração. Note-se que adrede permanece obscura a figura daqueles que deterão o poder de autorizar o funcionamento e acompanhar as atividades desenvolvidas, aplicando as sanções cominadas pela Lei nº 13.506/217, em caso de infrações e procedendo, inclusive, de ofício, ao cancelamento da anuência para a atuação. A existência de órgão e/ou entidade encarregados da missão de aplicar as determinações legais, em análise, é requisito crucial para a sua efetividade e a imprescindível tutela dos destinatários finais, cuja vulnerabilidade é consagrada no artigo 4º, inciso I, da Lei nº 8.078/90. Existem também prestadoras de ativos virtuais que, nos termos do artigo 9º da Lei nº 14.478/22, terão que se adequar no prazo não inferior a seis, configurando-se fundamental a presença de autoridade competente, com recursos materiais e humanos satisfatórios, para o cumprimento da missão. Além do aval para que pessoas jurídicas empreendam neste campo, o poder público restou incumbido de aprovar a transferência de controle, fusão, cisão e incorporação das prestadoras [9]. Outrossim, deverá definir os aspectos da regulamentação com o desiderato de que possam lidar com capitais brasileiros no exterior e montantes estrangeiros no país.

 Com o intento de reger o universo dos ativos virtuais de modo a contemplar o desenvolvimento econômico, em cotejo com as metas empresariais, harmonizando-o com as pretensões dos que contratam a prestação de serviços, o artigo 4º, incisos I a VII, estatuiu diretrizes a serem atendidas. Os parâmetros, que necessariamente devem ser observados, podem ser acoplados em três conjuntos concernentes às seguintes vertentes: 1) constitucional; 2); criminal; e 3) operacional. Almejou o legislador atender ao fundamento da livre iniciativa e concorrência, previsto no artigo 1º, inciso IV, da Carta Maior. Primou-se pela promoção do direito dos consumidores, que apresenta matriz fundamental e constitui-se pilar da ordem econômica brasileira, conforme dispõem, respectivamente, os artigos 5º, XXXII, e 170, V [10]. Vislumbra-se preocupação não somente com a proteção dos destinatários finais, nomeadamente com a poupança popular, mas também de outros usuários que sejam empreendedores, de acordo com o inciso IV daquele mesmo dispositivo.

Na esfera penal, o inciso VII, do multicitado artigo 4º, preconiza a prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, inclusive propondo o alinhamento com os padrões internacionais. Ademais, foram criados novos tipos penais, alterando-se o Decreto-Lei nº 2.848/40, bem como as Leis 7.492/86 e 9.613/98, com o propósito de punir, com maior rigor, as pessoas físicas envolvidas nas práticas delituosas. O Código Penal foi atualizado mediante a inserção do artigo 171-A, instituindo-se a fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros. Tornou-se crime a organização, gestão, oferta, distribuição ou intermediação de carteiras envolvendo-os, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, com o fim de se obter vantagem ilícita, induzindo ou mantendo o sujeito passivo em erro, prejudicando-o. Com a nova Lei, as pessoas jurídicas que lidam com os ativos virtuais, realizando operações, negociações ou custódia, foram equiparadas às instituições financeiras e caso cometam delitos contra o sistema nacional, serão punidas nos termos da Lei nº 7.492/86. Na hipótese de os empresários do ramo cometerem lavagem de dinheiro, a pena, prevista no artigo 1º, § 4º, da Lei nº 9.613/98, será aumentada de um terço a dois terços [11].

Quanto ao fator operacional, foram enfocadas as boas práticas de governança, a transparência nas operações e a abordagem baseada em riscos [12], priorizando-se a segurança da informação e proteção de dados pessoais [13]. A solidez e eficiência das operações encontram-se sedimentadas como inquestionáveis deveres das prestadoras de serviços de ativos virtuais [14]. O mundo financeiro digital é uma realidade contemporânea interessante e produtiva, cujas transações, se executadas em conformidade com a legislação vigente, poderão engendrar consequências positivas para o mercado, os empreendedores e os consumidores. Sem embargo, urge que o aparato estatal competente esteja atento às manobras ilícitas, em especial para a prevenção e o combate de práticas deletérias em prejuízo dos investidores de exíguo porte, ou seja, os destinatários finais, que não atuem como agentes econômicos e/ou intermediadores negociais.

 

– Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

[1] NAKAMOTO, S. Bitcoin: a peer-to-peer electronic cash system. 2008. Disponível em: https://Bitcoin.org/» https://Bitcoin.org/. Acesso em: 01 dez. 2022.

[2] Examinar: ANDERSON, Andreas Criptocurrencies. Wisconsin: Pubish Drive, 2017, p. 56-60.

[3] Cf. PETERS, Gareth; PANAYI, Efstathios; CHAPELLE, Ariane. Trends in cryptocurrencies and blockchain technologies: a monetary theory and regulation perspective. 2015.

[4] Cf.: A referida Lei trata da subvenção econômica aos produtores de cana-de-açúcar e de etanol, da soja e de seus subprodutos; da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE); do crédito rural; da gestão de recursos para o atendimento da mulher em situação de violência; e da utilização privada de área pública por equipamentos urbanos do tipo quiosque, trailer, feira e banca de venda de jornais e de revistas.

[5] Conforme disposto pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei 14.478/22.

[6] AMMOUS, Saifedean. Economics beyond financial intermediation: digital currencies possibilities for growth. The Journal of Private Enterprise, v. 30, p. 19-50, 2015.

[7] Sobre o tema, cf.: ANTONOPOULOS, Andreas M. Mastering Bitcoin. Unlock digital cripto-currencies. O’Reilly, 2014. BOURI, Elie; GUPTA, Rangan; TIWARI, Aviral Kumar; ROUBAUD, David. Does Bitcoin hedge global uncertainty? Evidence from wavelet-based quantile-in-quantile regressions. Finance Research Letters, v.23, p. 87-95, 2017.

[8] Cf.: HENDRICKSON, Joshua; HOGAN, Thomas; LUTHER, William. The political economy of bitcoin. Economic Inquiry, v. 54(2), p. 925-939, 2016. BOURI, Elie; GUPTA, Rangan; LAU, Chi Keung Marco; ROUBAUD, David; WANG, Shixuan. Bitcoin and global financial stress: a copula-based approach to dependence and causality in the quantiles. Quarterly Review of Economics and Finance, v. 69, p. 297-307, 2018. DYHBERG, Anne Haubo; FOLEY, Sean; SVEC, Jiri. How investible is bitcoin? Analyzing the liquidity and transaction costs of bitcoin markets. Economics Letters, v.171, p.140-143, out. 2018.

[9] As condições necessárias para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais nestas empresas, bem como a posse e o início do exercício dependem de prévio assentimento estatal.

[10] Dispõe o art. 13 da Lei: "Aplicam-se às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor)".

[11] Foram alterados os arts. 9º, parágrafo único, inciso XIX, e 10, II, da Lei que trata da lavagem de dinheiro.

[12] Cf.: HAYES, Adam. Bitcoin price and its marginal cost of production: support for a fundamental value. Applied Economics Letters, v. n. esp., p.1-7, 2018.

[13] TIWARI, Aviral Kumar; JANA, Ronald; DAS, Debojyoti; ROUBAUD, David. Informational efficiency of bitcoin – an extension. Economics Letters, v. 163, p. 106-109, fev. 2018.

[14] Cf.: CIAIAN, Pavel; RAJCANIOVA, Miroslava; KANCS, D'Artis. The digital agenda of virtual currencies: can bitcoin become a global currency? Information Systems and e-Business Management, v. 14, p. 883-919, 2016.

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