Legislação sobre fundações deve ser atualizada para aprimorar atuação social
11 de fevereiro de 2023, 11h22
O Brasil precisa de uma atualização da legislação sobre as fundações, de forma que elas voltem a ser atrativas para empresas e indivíduos interessados em combater a desigualdade social e proteger o meio ambiente. Para isso, é necessário reduzir a burocracia, limitar as atribuições do Ministério Público na área e aumentar as isenções ficais para essas entidades.

FGV Rio
Foi o que afirmaram os participantes de um encontro promovido nesta sexta-feira (10/2), no Rio de Janeiro, pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento para debater a responsabilidade social e o papel das fundações na promoção e desenvolvimento de políticas que aproximem as empresas do interesse público.
Esses encontros visam a discutir a reforma da legislação e a implementação de práticas de governança corporativa no terceiro setor para atender melhor à população e viabilizar uma gestão transparente dos recursos de entidades sem fins lucrativos. Participaram do debate ministros de tribunais superiores, desembargadores, representantes do Ministério Público e do Poder Executivo, advogados e executivos de empresas, além de diretores da FGV.
A reunião foi presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça. O magistrado pediu que os participantes respondessem a três perguntas: qual é a sua responsabilidade na instituição em que você atua? Quais são os seus sonhos e ideais? Quais são as dificuldades internas e externas que você enfrenta?
Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor de Direito Civil da Universidade de São Paulo e conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público, comanda o grupo de trabalho da instituição para desenvolver um anteprojeto de lei que produza uma regulamentação nacional sobre fundações.
Ele apresentou no evento uma visão história das fundações, destacando que elas nascem com um sentimento de vulnerabilidade jurídica e financeira. Afinal, quem as criou um dia vai morrer, e, com isso, o capital investido nas entidades pode ser desvirtuado. Para evitar que isso ocorra, atribuiu-se ao Ministério Público o papel de fiscalização dessas instituições.
A partir da década de 1970, as fundações, na Europa e na América Latina, passaram a sofrer um processo de esvaziamento, uma vez que os Estados assumiram muitas de suas funções em setores como saúde, educação e assistência social. Além disso, houve uma queda no número de pessoas que dedicavam parte de seu patrimônio para tais entidades. Com isso, o modelo das fundações entrou em crise, segundo o professor.
Para tornar as fundações novamente atrativas, disse Rodrigues Junior, o CNMP criou um grupo de trabalho com dois objetivos principais. O primeiro é modernizar o regramento legal sobre fundações. Há duas opções: reformular a parte do Código Civil que trata do assunto ou retirar a matéria da norma e colocá-la em uma lei específica. No fim do primeiro semestre deste ano, o grupo de trabalho do CNMP decidirá se enviará ou não anteprojeto de lei sobre o tema ao Congresso Nacional.
Já o segundo objetivo, conforme o conselheiro, é editar uma regulamentação nacional para as fundações no âmbito do CNMP. Uma vez que a regulação dessas entidades se dá por meio de leis estaduais, o objetivo é evitar discrepâncias.
De qualquer forma, é preciso promover mudanças, caso contrário, o modelo de fundações vai desaparecer, alertou Rodrigues Junior. Isso porque a burocracia é tão grande que pessoas e empresas acabam optando por agir por meio de institutos.
Inclusão social
O ministro do Superior Tribunal de Justiça Marco Aurelio Bellizze afirmou que há muito "discurso bonito" sobre fundações, mas "pouca prática". De acordo com o magistrado, é preciso parar de apenas discutir desigualdade social em tese e passar a agir, sem deixar toda a tarefa para o Estado.
Para enfrentar o tema da inclusão social, é preciso mapear o que está sendo feito e, a partir daí, cada um deve contribuir um pouco com seu bolso e experiência, disse o também ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro. Ele ressaltou que é necessário analisar as peculiaridades de cada área.
"Não podemos tratar situações diferentes com os mesmos critérios. O Ministério Público é fundamental para separar o joio do trigo", declarou Saldanha.
Paulo Dias de Moura Ribeiro, outro ministro do STJ, destacou que os propósitos das fundações em discussão têm respaldo constitucional. Afinal, a Constituição Federal já colocou a erradicação da pobreza como objetivo fundamental antes de compromissos da Organização das Nações Unidas, como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, e a Agenda 2030. Porém, é preciso colocar em prática tais princípios, alertou o magistrado.
Exigência de projetos
O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Elton Leme mencionou que o Direito não muda a realidade, somente atua quando ela já está posta. Dessa maneira, ele disse ser preciso fugir dos debates abstratos, da inércia, e agir. Como exemplo de atuação social, ele citou o programa da corte de ressocialização de ex-presos.
Por sua vez, o desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) Marcus Abraham contou que, há anos, acompanha as isenções fiscais concedidas pelo estado do Rio de Janeiro a empresas. As companhias apresentam justificativas para os benefícios, como geração de empregos. Contudo, não há métricas precisas para avaliar a efetividade das medidas, afirmou o magistrado.
Com o objetivo de aumentar a eficiência das isenções tributárias, Abraham sugeriu incluir na legislação a obrigação, para as empresas que visam a obter o benefício, de apresentar projeto de responsabilidade social ao Estado. O programa poderia prever iniciativas sociais ou ambientais, como criar creches, financiar reformas de hospitais ou implementar projetos esportivos ou culturais. Assim, a administração pública levaria em conta tais propostas na decisão de conceder ou não isenção fiscal, ressaltou o desembargador.
Desoneração de investimentos
O advogado tributarista Luiz Gustavo Bichara, sócio do Bichara Advogados, afirmou que a Lei 13.800/2019, que regulamentou fundos patrimoniais para destinar doações para programas de interesse público, deveria ter tratado das isenções para os investimentos feitos por tais fundos e fundações.
Como exemplo, Bichara mencionou o caso de uma fundação que compra participação em uma empresa e a vende cinco anos depois. O ganho que a entidade obteve na operação deveria ser isento de tributação, desde que aplicado integralmente no caixa da fundação e que não houvesse nenhuma distribuição de lucro, declarou ele.
A ideia do advogado é tratar os ganhos eventuais que a fundação tenha no dia a dia com a mesma regra fiscal dos aportes (dotações). Na visão de Bichara, apenas isso pode garantir que as fundações não fiquem para sempre implorando por recursos e sejam autossustentáveis.
O advogado Décio Freire, sócio do Décio Freire Advogados, citou dados para demonstrar a importância do grupo de trabalho do CNMP de reforma da legislação sobre fundações. Ele mencionou que, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, em 2016 havia no Brasil 820 mil organizações do terceiro setor — sendo 237 mil sem fins lucrativos —, que empregavam 2,3 milhões de pessoas.
Freire também disse que há diversas regulamentações estaduais conflitantes sobre fundações, e isso acaba chegando aos Ministérios Públicos. No Rio, os promotores fiscalizam cerca de 300 fundações, segundo o advogado, para quem é preciso excluir os gargalos legais para permitir que empresas possam investir mais no terceiro setor.
Antonio Cláudio Ferreira Netto, diretor jurídico das Organizações Globo — que têm a fundação Roberto Marinho e são criadoras do Instituto Innovare, que premia inciativas transformadoras do sistema de Justiça —, opinou que as lutas contra a desigualdade social e pela proteção do meio ambiente devem ter proteção complementar do setor público, de empresas e do terceiro setor.
Ferreira Netto também defendeu um aprimoramento da cultura da doação no Brasil. Atualmente, afirmou, é quase impossível doar recursos para universidade públicas, como é de praxe nos Estados Unidos.
Do lado do Ministério Público do Rio, o ex-procurador-geral de Justiça Marfan Martins Vieira disse que o aprofundamento do debate sobre fundações pode ajudar nas alterações legislativas. Já o promotor José Marinho Paulo Junior afirmou que é necessário criar planos mais eficazes de fiscalização de tais instituições.
O promotor David Francisco de Faria, por sua vez, citou que o Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020) fez com que o MP-RJ revisse sua fiscalização do terceiro setor. Afinal, antes a promotoria questionava o estado pelas irregularidades no serviço, e depois teve de controlar a atuação das concessionárias responsáveis por água e esgoto.
Roberto Góes Vieira, igualmente promotor, declarou que o trabalho de aprimoramento da legislação do CNMP pode equilibrar a disputa entre fundações e institutos — que vem sendo vencida por estes últimos.
Educação e cultura
Renan Ferreirinha, secretário de Educação da Prefeitura do Rio de Janeiro, destacou que é preciso reduzir a burocracia para que o terceiro setor possa apoiar o ensino público, especialmente na área da tecnologia.
Paulo Herkenhoff, curador e coordenador da FGV Conhecimento, opinou que os entes fiscalizadores deveriam ter menos rigor com entidades da periferia. A seu ver, é preferível tolerar pequenos desvios e irregularidades na prestação de contas a não ter projetos sociais em comunidades carentes. Ele também defendeu a desoneração da importação de obras de arte.
Braço social
Rogério de Paula Tavares, vice-presidente de Relações Institucionais da Aegea — concessionária de saneamento básico do Rio —, afirmou que cabe à empresa atender às camadas mais pobres da população.
Anselmo Leal, diretor institucional da Aegea, mencionou os danos causados pelas intensas chuvas dos últimos dias como exemplo de como é importante investir no saneamento básico.
Fernanda Rocha, diretora jurídica da Energina, destacou que questões tributárias fizeram com que a atividade social do grupo passasse a ser promovida por institutos, e não fundações.
Por sua vez, Marcia Hirota, presidente do conselho da SOS Mata Atlântica, ressaltou que a natureza pode ser indutora do desenvolvimento.
Já Maria Rita Drummond, diretora jurídica da Cosan, afirmou que o grupo — cuja principal atividade é a produção de álcool etanol — sonha com a universalização da energia limpa.
Marta Volpi, diretora de Relacões Institucionais e Governamentais da Abrinq, declarou que a integração entre os três setores pela inclusão social está sintetizada no artigo 227 da Constituiçao.
O dispositivo estabelece que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
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