1. A notícia sobre o acordo de não persecução para o deputado "Barroso homologa acordo para Silas Câmara pagar R$ 242 mil", dizem as manchetes. Vamos à notícia.
Segue a matéria, na reportagem deste ConJur — e destaco:
"O ministro destacou que entende não ser cabível acordo nesses moldes após o recebimento da denúncia, mas que, a um dia da prescrição, o procedimento 'se apresenta como a via mais adequada para minimizar os prejuízos ao erário'."
2. O que é distinguishing? Critério pessoal se enquadra?
A primeira coisa: precedentes só não se aplicam quando se faz distinguishing. Eventual questão econômica, subjetivismos ou coisas do gênero como pragmatismos ou utilitarismos, não "fazem" a distinguishing. Caso contrário, teríamos algo como "mesmo que exista farta jurisprudência em um determinado sentido, o critério pessoal do julgador poderá valer mais".
Isto é: no caso acima, o resultado só poderia ser um: não aplicação do benefício. Custo: prescrição. Que, frise-se, é uma garantia e faz parte do jogo jus democrático.
Claro: isso se existisse uma "cultura de precedentes" paradoxalmente reclamada pelos tribunais e não respeitada. As razões? Expliquei-as neste texto: Equívocos sobre a cultura de precedentes no Brasil. Texto longo, confesso. Para a comunidade jurídica, muito extenso.
3. Quando uma fundamentação vem acompanhada de um "mas"
Sigo. Juízos pragmatistas sempre (me) preocupam. Quando uma fundamentação vem com um "mas", e segue esse "mas" justificando com juízos consequencialistas, dou um passo atrás. E vou verificar a decisão.
Repito a decisão na especificidade: "Embora entenda pelo não cabimento do acordo de não persecução penal após o recebimento da denúncia, as peculiaridades do caso concreto me levam a admiti-lo, em caráter excepcional".
Com todo o respeito que o ministro Barroso sabe que tenho por ele, discordo. Faço por amor ao debate jurídico, com a lhaneza de quem vê no ministro um aliado pela integridade do direito. Ao trabalho.
Começando com uma observação: eu não quero discutir o ANPP. Porque sou a favor do acordo. É uma espécie de garantia do réu. Sou garantista. Só que nem é esse o ponto. Afinal, o ministro erra na decisão, mas acerta na concepção de que ANPP é uma garantia e pode ser aplicada mesmo nessas hipóteses. Mas é a minha posição.
Portanto, quero discutir o problema à luz da teoria do direito.
A decisão, em resumo, foi: sou contra, mas dadas as peculiaridades do caso concreto, é preciso minimizar prejuízos.
Como já dizia o personagem Ben Stark, de Games of Thrones, tudo que vem antes do "mas" não tem valor. Fulano é um bom sujeito, mas é mau caráter… Tudo o que foi posto antes da adversativa se anula.
4. As necessárias inquietações
A primeira inquietação: decisões judiciais se dão por princípio. Não por argumentos utilitaristas. Não é um cálculo de "prejuízo ao erário" que admite "excepcionalidades". Contra a lei, por exemplo, sempre vai caber uma análise econômica. Por isso que AED é um paradoxo: ela pode ser análise econômica. Mas não é "do direito". Afinal, se é econômica, não é jurídica.
Justamente porque, como disse: sempre vai caber uma "análise econômica" para justificar juízos ad hoc. E o direito surge exatamente para evitar juízos ad hoc.
O que me leva ao ponto principal destas reflexões. O ministro é contra o acordo. Mas não é — a depender das "peculiaridades do caso concreto". Vejamos didaticamente, passo a passo.
Ponto um. Pergunto aos advogados de plantão: algum caso não é peculiar? Todo caso tem as suas peculiaridades, afinal. Todo hard case é um easy case ainda não compreendido. Todo easy case ainda não compreendido é um hard case.
Ponto dois. As "peculiaridades" de um caso permitiram que o ministro afastasse até mesmo seu entendimento sobre o acordo de não persecução. Mas então vejamos: temos um juízo da Suprema Corte dizendo que as peculiaridades de um caso permitem que se suspenda a correta aplicação do direito (no caso, aquilo que o próprio ministro acredita ser a correta aplicação do direito).
Pergunto: o que impede um tribunal, então, de reconhecer um precedente da corte como precedente, entender que não se trata de distinguishing, mas dizer que as peculiaridades do caso afastam sua aplicação em razão de suas consequências?
Porque, vejam, e faço uma pausa antes do ponto três — que decorre do ponto dois. Discutir o que significa um precedente, qual é seu alcance e sua força normativa, já é uma questão de teoria do direito. Se as "peculiaridades do caso" permitem que se afaste o entendimento (que se entende) correto sobre o ANPP, o que impede que as "peculiaridades do caso" sirvam para que um tribunal não aplique um precedente? Eis por que o raciocínio fragiliza o tribunal.
Ponto três. Eis também porque fragiliza o próprio direito. Porque chancela o juízo consequencialista que afasta (o que se entende por) um padrão jurídico a depender de "peculiaridades". Todo caso é um caso "excepcional". Que o diga aquele cujo direito está em jogo, pois não?
Na pirâmide do sistema, não podemos colocar "peculiaridades do caso concreto" no topo. Elas não podem valer mais do que a própria lei. Por uma questão de princípio.
5. Pena que o caso do meu cliente, apesar de ter peculiaridades, não as teve reconhecidas "como"
E sei que o ministro Barroso, democrata que é, entenderá minhas respeitosas inquietações. Só queria que esse julgamento tivesse ocorrido antes de um julgamento do qual participei há poucos dias e levei um 3×0 do TJ-RS. Observe-se: eu aleguei que a ANPP deveria ser aplicada a um caso em face de suas peculiaridades. Pois é. Um dos desembargadores disse mais ou menos assim: "ora, é obvio que não cabe". Pois então. Pensei: por que seria tão óbvio? É obvio? Pois não é que meu cliente preenchia os requisitos "peculiaridades concretas"? O problema foi que o TJ assim não entendeu… Como se faz, então?
É de se perguntar de novo: o que é isto — a cultura de precedentes? Pedir mais estabilidade? Com essa "cultura de precedentes" pela qual precedentes são feitos para o futuro?
Como já disse várias vezes, penso que o furo é mais em baixo. Enquanto pensarmos que precedentes são feitos para o futuro, teremos pela frente um imenso passado a desvelar.