Opinião

Devemos retroceder dos tribunais híbridos?

Autores

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

  • Hugo Malone

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça de Minas Gerais mestre e doutorando em Direito Processual na PUC Minas e professor de Direito Processual Civil da Anhanguera.

9 de fevereiro de 2023, 6h30

A famigerada pandemia gerou uma aceleração na virada tecnológica da Justiça brasileira, que naturalizou a utilização de uma série de ferramentas e plataformas, permitindo a mantença das atividades por advogados, juízes, membros do Ministério Público e, em especial, possibilitando que os cidadãos continuassem a dimensionar seus conflitos.

Tal propagação das novas tecnologias abriu desafios para o estudo do acesso à Justiça, de modo a discutir limitar de seu uso quando ausentes as condições de inclusão digital (letramento e infraestrutura), mas de modo concomitante fundando um modelo perene de acesso digital, com melhoria para parcela dos jurisdicionados e aumento da eficiência do serviço jurisdicional, que passou a ser ofertado de qualquer lugar onde o juiz e/ou serventuário se encontrem.

Em maio de 2020, publicamos texto aqui na ConJur [1] demonstrando como a pandemia causada pelo novo coronavírus acelerou a virada tecnológica no Direito Processual, forçando os tribunais a adotarem medidas para manutenção da atividade jurisdicional mesmo com as limitações de presença física impostas pelas quarentenas decretadas em diversos países.

Mais recentemente, em artigo também publicado aqui na ConJur [2] já havíamos defendido a necessidade e a tendência de adoção de tribunais híbridos, com possibilidade concomitante de atividades presenciais e remotas, nos quais todos os sujeitos processuais saberiam com clareza e transparência da possibilidade e do como praticá-las, consolidando-se o que vem sendo chamado de "Justiça 4.0".

Esse formato permite um aproveitamento melhor das capacidades técnicas dos profissionais envolvidos, pois possibilita o exercício de atividades altamente especializadas à distância, de modo a alcançar espaços geográficos que não seriam atingidos. A ideia é utilizar as tecnologias da informação e da comunicação para gerar ganhos de qualidade, o que parece ser a premissa dos recém-criados "Núcleos de Justiça 4.0". Por meio desses núcleos, os tribunais podem criar, por exemplo, unidades judiciárias especializadas em determinadas matérias para atuar não apenas em uma comarca, mas em todo o território do estado, tendo em vista que a tramitação dos procedimentos se dá(rá) de forma 100% digital [3].

No entanto, se essa é a tendência do Judiciário brasileiro conforme as Resoluções que tratam o tema [4], a nova regulamentação do Conselho Nacional de Justiça sobre o teletrabalho parece caminhar em sentido oposto.

Antes do estado de pandemia há pouco superado, a Resolução nº 227 de 15/6/2016 do CNJ previa que as atividades dos servidores dos órgãos do Poder Judiciário poderiam ser executadas fora de suas dependências, de forma remota, sob a denominação de teletrabalho. A Resolução de 2016 previa que a quantidade de servidores e as atividades que poderiam ser executadas em regime de teletrabalho deveriam ser definidas por proposta da Comissão de Gestão do Teletrabalho de cada órgão, devidamente justificada, e aprovada por ato de sua respectiva presidência. Logo, o quadro que se passou a desenhar foi de aumento na quantidade de servidores em teletrabalho, o que permitia cogitar que em um futuro não muito distante poderíamos ter tribunais 100% online, assim como o paradigmático Civil Resolution Tribunal canadense [5].

Contudo, em 22 de novembro de 2022, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n° 481, que modificou a regulamentação vigente para prever que a quantidade de servidores em trabalho remoto não pode exceder 30% do quadro permanente da vara, gabinete ou unidade administrativa. Diante da nova regulamentação, que vem sendo questionada pelos sindicatos, se antes era possível que setores inteiros exercessem suas funções à distância, agora haverá uma redução drástica deste formato de realização das atividades judiciais, pois se determinou que 70% dos servidores de cada unidade deverão exercer suas funções de modo presencial.

Ao que nos parece, a alteração regulamentar não leva em consideração as análises sobre o aumento da eficiência dos serviços judiciais na pandemia. De acordo com os dados apresentados pelo Relatório Justiça em Números 2021, referente ao ano de 2020, a Justiça brasileira se manteve ativa no primeiro ano da pandemia, com uma atuação eminentemente digital. Dos mais de 25,8 milhões de novos processos em 2020, foram baixados 27,9 milhões, gerando um acervo de 75,4 milhões de processos pendentes, o que representou um volume de 2,1 milhões de processos a menos do que os 77,4 milhões pendentes no final de 2019. Ademais, foi a maior redução de acervo desde o início da série histórica [6].

O levantamento também mostrou os efeitos da pandemia sobre as contas do Judiciário, pois se verificou uma queda de 4,5% nas despesas orçamentárias, gerando uma economia total de R$ 4,6 bilhões, descontada a inflação. Conforme noticiado pelo CNJ, a principal redução foi nas despesas de capital, que abrangem a aquisição de veículos, equipamentos e programas de informática, imóveis e outros bens permanentes, além de obras e bens móveis. Nessa rubrica, a retração foi de 38,78% no ano de 2020 quando comparado com 2019 [7].

Já no ano de 2021, ingressaram 27,7 milhões de processos nos órgãos judiciários brasileiros, e foram baixados 26,9 milhões, demonstrando que a atuação em um cenário de restrição de presença física não perdeu eficiência. Durante o ano de 2021, foram julgados 27 milhões processos, com aumento de 2,7 milhões de casos (11,3%) em relação a 2020 [8].

Merece ser destacado que antes mesmo da pandemia, a implementação do teletrabalho já revelava seus benefícios na eficiência dos tribunais, pois análise realizada em 2018 demonstrava que os tribunais que adotaram o teletrabalho obtiveram aumento de produtividade nas atividades administrativas [9].

Obviamente, deve ser considerada a dificuldade que o teletrabalho pode gerar para os jurisdicionados resolverem seus problemas diretamente com o magistrado. Isso, todavia, não significa dizer que um modelo predominantemente presencial seja o mais adequado, pois é perfeitamente possível conciliar as benesses do modelo digital e reduzir os problemas pontuais (ou abusos) que forem verificados.

Nesse cenário, impor o retorno de modo majoritariamente presencial pode reduzir os resultados que foram vistos com a digitalização. Não se pode esquecer que a experiência vivida de modo forçado nos mostrou que magistrados e servidores podem trabalhar com mais consistência, qualidade e tempo, pois a eliminação dos tempos gastos com deslocamento permitem um uso mais racional das 24 horas que cada ser humano dispõe por dia.

Por isso, nossa defesa por Tribunais Híbridos reconhece que deve haver o aproveitamento máximo das TIC’s, na proporção exata de sua necessidade [10], para aumentar a eficiência dos serviços judiciários, ao mesmo tempo em que é necessário um monitoramento dos problemas enfrentados, como dificuldades no atendimento às partes e advogados. A solução é mais adequada do que determinar o retorno predominantemente presencial dos servidores, que pode inibir o acesso à justiça em alguns aspectos.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth já diziam que a ciência jurídica sofre incursões de diversos ramos do conhecimento, como a política, a sociologia, a psicologia, a antropologia etc., o que não deve ser combatido, mas sim utilizado como forma de identificar e aprimorar os problemas jurídicos [11]. Essa invasão reflete, inclusive, na luta pelo acesso à Justiça, motivo pelo qual a normatização da prestação dos serviços judiciais pelo Conselho Nacional de Justiça e pelos regimentos dos tribunais deve ser colocada à crítica da comunidade jurídica, permitindo seu amadurecimento a partir do debate público.

A questão central que se coloca é: em pleno 2023, deve ser lida com muita cautela toda iniciativa de se reduzir o avanço do uso da tecnologia para tramitação de procedimentos judiciais, salvo quando seu uso coloque em risco a própria normatividade e atrapalhe os direitos de seu destinatário principal: o cidadão. É preciso avançar devagar, mas não retroceder. Reduzir a implementação de tribunais híbridos impactará no próprio avanço alcançado e que vem tornando o Judiciário brasileiro um exemplo mundial de inovação com sua postura receptiva às novas tecnologias, em prol do aprimoramento e democratização do acesso à Justiça.

 


[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n° 385 de 6/4/2021. DJe/CNJ nº 86/2021, de 7 de abril de 2021, p. 6-8.

[4] Cf. Resoluções n° 332, 335, 345, 349, 358, 370, 372, 385, 420, 446, 455 e 465, todas do Conselho Nacional de Justiça, editadas entre 2020 e 2022.

[5] Para uma análise mais profunda sobre o mencionado Tribunal online em funcionamento na Província da Colúmbia Britânica, Canadá, cf. MALONE, Hugo; NUNES, Dierle. Manual da Justiça Digital: compreendendo a Online Dispute Resolution e os Tribunais Online. São Paulo: Juspodivm, 2022.

[6] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2021. Brasília: CNJ, 2021.

[8] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2022. Brasília: CNJ, 2022.

[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Tribunais: o teletrabalho aumenta produtividade do judiciário. Notícias CNJ, abril de 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tribunais-o-teletrabalho-aumenta-produtividade-do-judiciario/ .

[10] Usando tecnologias com a complexidade necessária para dimensionar cada necessidade.

[11] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. The Florence Access-to-Justice Project. Milano: Giuffrè, 1978, v. 1-4.

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    é sócio do escritório do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e presidente da Comissão de Inteligência Artificial no Direito da OAB-MG.

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    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mestrando em Direito Processual na PUC Minas e especialista em Direito Público.

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