Opinião

Definição e modelos de privatização no direito administrativo alemão

Autor

  • Thiago Marrara

    é professor de Direito Administrativo da USP (FDRP) consultor parecerista árbitro e autor de manual de Direito Administrativo e coautor do manual de licitações e contratos.

8 de fevereiro de 2023, 17h19

O direito é fruto da cultura. Por mais que os conceitos fluam por meio dos ordenamentos mundo afora, repetindo-se em diferentes legislações que se inspiram reciprocamente, o posicionamento desses conceitos nas diferentes disciplinas jurídicas varia, assim como destoam as definições que cada realidade lhes confere. Exemplos disso se vislumbram em relação aos conceitos de concessão, de parceria público-privada e de privatização. Tomemos esse último como objeto de ilustração e como estímulo à reflexão sobre como tratamos o assunto no Brasil.

Na Alemanha, o direito administrativo econômico (Wirtschaftsverwaltungsrecht) convencionou tratar a privatização sob uma tríplice perspectiva: a formal, a institucional (ou funcional) e a material. Apesar de Jan Ziekow registrar a impossibilidade de se encontrar doutrinariamente uma definição precisa desse fenômeno em razão de suas inúmeras manifestações e de sua complexidade [1], em todas elas, entende haver, nuclearmente, um ponto comum de aproximação. Trata-se da transferência parcial ou completa de tarefas públicas ou apenas de sua execução ("öffentlichen Aufgaben") 1) para o campo privado ou 2) para sujeitos privados. A partir dessa base lógica se desdobram três manifestações do conceito.

A primeira delas é a denominada de "privatização formal". Segundo Hüttinger [2], trata-se da execução de atividades estatais em regime jurídico público por meio de formas organizacionais ou funcionais de direito privado, mas sujeitas ao cumprimento de exigências do direito público. Esse modelo é utilizado na medida em que oferece um regime jurídico mais flexível, afastando algumas amarras do direito administrativo. Seu emprego, explica Burgi, é bastante comum nos Municípios em áreas de energia, água, esgoto, serviços de transporte, saúde local e cultura [3].

Na prática, a privatização formal se dá pela instituição de empresas estatais sob titularidade exclusiva estatal ("Eigengesellschaft") em formato de sociedade anônima ou limitada. Como a tarefa continua sob responsabilidade e execução do Estado, mas por meio de uma entidade em regime privado, que a assume sem necessidade de licitação, o fenômeno também é denominado de "privatização organizacional" ou de "falsa privatização" ("unechte Privatisierung"). No Brasil, esse conceito se embutiria como parte da chamada "descentralização funcional", mas com a peculiaridade de sempre envolver um ente privado da Administração Indireta. 

No polo oposto à privatização formal, a material, também conhecida como "privatização de tarefa" ("Aufgabenprivatisierung") representa o tipo mais agressivo de abandono do direito público, já que ocasiona uma renúncia completa do titular estatal de executar certa função administrativa como responsabilidade própria. Opera-se uma transferência integral da atividade para o campo privado, restando ao Estado a responsabilidade pelas boas condições de funcionamento do mercado e, eventualmente, por tarefas regulatórias. Essa privatização se vislumbra na venda de certa empresa estatal ou de seu controle a agentes econômicos não estatais. Aqui entram as privatizações realizadas na Alemanha nos setores de ferrovias, serviço postal e telecomunicações.  Porém, ela não é aceita na Alemanha para as chamadas tarefas obrigatórias do Estado, nem se confunde com o conceito de "liberalização", que propriamente indica não a retirada do prestador público, mas sim a criação de um ambiente concorrencial em torno dele, como bem explica Burgi [4].

Situada entre a modalidade formal e a material, a "privatização institucional ou funcional" consiste em uma transferência parcial ou total da tarefa para um particular não estatal, mas mantida a responsabilidade pela tarefa nas mãos do ente concedente. A execução é particular, mas o Estado mantém uma responsabilidade pela garantia da prestação ao usuário. Tradicionalmente, esse modelo envolve as figuras: 1) da colaboração administrativa, em que particulares agem sem poder de autoridade e sob comando de agentes públicos em atividades executórias ou preparatórias, sem qualquer necessidade de lei autorizativa expressa; 2) da "Beleihung", que poderia ser traduzida como delegação, conceito forjado por Otto Mayer e segundo o qual uma pessoa física ou jurídica age em nome do Estado, mas com competências decisórias próprias e poderes de autoridade, daí a necessidade de que respeite a reserva legal; 3) a delegação de tarefas acessórias a particulares, por exemplo, mediante contratos de terceirização ("contracting out") e 4) as parcerias público-privadas, que, na Alemanha, envolvem um conjunto diferenciado de formas cooperativas de longo prazo em torno de um projeto concreto sustentado por contrato mediante compartilhamento de riscos, mas com preponderância da atuação particular [5]

Esse último ponto merece destaque pelas enormes diferenças em relação ao direito brasileiro. O conceito de PPP como técnica de privatização funcional do direito alemão é extremamente abrangente, não se limitando a subespécies de concessão como ocorre no Brasil. A fluidez da figura decorre em parte da ausência de uma lei nacional sobre o assunto. Porém, isso não impede sua sistematização doutrinária, sobretudo a partir do direito administrativo estadual. Segundo Ruthig e Storr [6], as parcerias alemãs abarcam quatro modelos principais:

— No de gestão empresarial ("Betriebesführungsmodell"), o particular assume a execução técnica e comercial do negócio, inclusive a conservação e a manutenção das instalações. Perante os particulares, porém, aparece apenas o Estado. Isso significa que o particular conduz o negócio para o ente público, que permanece proprietário das instalações e assume a responsabilidade pela execução da atividade;

— No modelo empresarial ("Betriebesmodell”), o particular assume atividades de planejamento, financiamento, construção, entrega, operação, manutenção e conservação. Figura, assim, como o proprietário dos bens ou recebe direito de construí-los. Ele também atende aos cidadãos, mas em nome do Poder Público. O dever de execução da tarefa pública continua nas mãos do Estado, que assume sua responsabilidade;

— No de concessão ("Konzession"), os particulares contratados atuam com maior protagonismo, porque executam deveres operacionais e se responsabilizam pela prestação frente a terceiros. Os usuários das tarefas estatais são atendidos pela concessionária em seu próprio nome. A responsabilidade de execução se transfere a ela, que sustenta o contrato pela exploração do serviço ou da obra. Sob essa lógica, portanto, não haverá concessão quando o contrato for sustentado unicamente mediante pagamentos ou contrapartida do contratante público. O traço imprescindível da concessão alemã é o refinanciamento pela exploração econômica da tarefa transferida ao particular; e

— No modelo de cooperação ("Kooperationsmodell"), o poder público e um particular se juntam para instituir uma empresa, que passa a executar as tarefas estatais, tendo o Estado como acionista predominante. Aqui se fala de uma "PPP institucionalizada" em uma sociedade de capital misto que atua de acordo com contratos administrativos instrumentais ou de concessão para executar determinadas tarefas. O particular assume participação ativa na execução da tarefa e/ou na condução da sociedade. Por isso, esse modelo não se confunde com o de empresas estatais com mera participação acionária privada e em que não há efetivo trabalho conjunto entre público e privado.

Apesar da multiplicidade de formas, a privatização funcional na Alemanha, sobretudo por concessões, não é tão comum quanto parece. Segundo Martin Burgi, nas últimas décadas, o país vivenciou um processo de reestatização, ou melhor, de "remunicipalização" (Rekommunalisierung), dado o protagonismo que os Municípios exercem na prestação de atividades de transporte urbano, saneamento, entre outras tarefas estratégicas para a vida da população. Explica Burgi que, em grande medida, essa retomada de serviços antes privatizados se deu quer por experiências ruins com a prestação indireta, quer por modificações das concepções políticas no contexto de crise financeira [7]. A isso se deve agregar o fato de que os Municípios alemães não dependem tanto de investimentos privados como os brasileiros, seja porque os recursos públicos são mais vultosos, seja porque há um bom estoque de infraestrutura.

A despeito dessas nuances práticas, o que importa notar, para fins dessa breve exposição do direito estrangeiro, é que a sistematização doutrinária alemã da privatização se desdobra numa tríplice perspectiva (a formal, a funcional e a material). A uma, essa construção viabiliza análises mais complexas do fenômeno da interação entre o Estado, a sociedade e o mercado. A duas, retira da privatização seu estigma de técnica destinada à transferência de tarefas estatais exclusivamente ao "mercado", revelando a riqueza dos arranjos possíveis. A três, gera estímulos à reflexão sobre o uso do conceito no direito brasileiro e sobre a necessidade de se atualizá-lo diante das práticas contemporâneas e da riqueza de modelos existentes na Administração Pública. 

 


[1] ZIEKOW, Jan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Munique: Beck, 2016, p. 151.

[2] HÜTTINGER, Stefan. §103. In: BURGI, Martin; DREHER, Meinrad; OPITZ, Marc (org.). Beck’scher Vergaberechtskommentar, volume 1: Gesetz gegen Wettbewerbsbeschränkungen GWB 4. Teil, 4ª ed. Munique: Beck, 2022, p. 339.

[3] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 180.

[4] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 284.

[5] ZIEKOW, Jan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Munique: Beck, 2016, p. 153 e 154.

[6] RUTHIG, Josef; STORR, Stefan. Öffentliches Wirtschaftsrecht, 4ª ed. Heidelberg: C.F. Müller, 2015, p. 329 e 330.

[7] BURGI, Martin. Kommunalrecht, 5ª ed. Munique: Beck, 2015, p. 275.

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