Opinião

Negociação de dívidas prévia à RJ e seus impactos sobre coobrigados

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8 de fevereiro de 2023, 20h24

Uma das alterações incorporadas à Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências), levada a cabo por meio da Lei nº 14.112/2020, diz respeito à possibilidade de o devedor instaurar conciliações e mediações antecedentes ou incidentais ao processo de recuperação judicial; ou seja, é possível renegociar dívidas sem que sequer haja processo judicial correndo. Nesse contexto de ampliação do ferramental à disposição do devedor em prol de seu soerguimento, logo vêm à tona questionamentos quanto ao impacto dessas medidas sobre os coobrigados, os quais oferecem collateral a dívidas a partir de garantias fidejussórias (aval e fiança).

Houve uma preocupação do legislador reformista em incentivar as medidas alternativas (ou adequadas) de resolução de conflitos, especialmente em relação às conciliações e mediações, no contexto do Direito da Insolvência. Procedeu-se, pois, à positivação de algumas recomendações que já vinham sendo propostas pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), conforme se depreende da Recomendação CNJ nº 58, de 22 de outubro de 2019, alterada pela Recomendação CNJ nº 112, de 20 de outubro de 2021, que já tratava da possibilidade das empresas devedoras e os seus credores chegarem a um acordo nos incidentes de verificação de crédito quanto ao valor do crédito, bem como ao critério legalmente aceito para atribuição de valores aos bens gravados com direito real de garantia. Ocorre que, tanto as recomendações difundidas pelo Conselho Nacional de Justiça quanto as recentes disposições da Lei nº 11.101/2005, incorporadas pela Lei nº 14.112/2020, não tratam dos efeitos de tais medidas em relação aos coobrigados, ou seja, àqueles que podem, igualmente, ser demandados para pagamento da dívida.

São três as principais facetas da problemática decorrente desse novo cenário legislativo. Primis, cumpre aferir se a instauração de uma conciliação ou mediação prévia ao procedimento de recuperação judicial teria o condão de suspender também os atos constritivos em face dos coobrigados (em oposição a apenas suspender os atos constritivos em face do devedor); secundus, há que se questionar se a novação no contexto de um método alternativo de resolução de disputas teria a mesma natureza  e mesmos efeitos  da novação que exsurge com a aprovação do plano de recuperação judicial; tertius, impõe-se examinar os limites subjetivos das garantias fidejussórias à luz das distinções existentes entre os institutos da fiança e do aval.

Acerca do primeiro ponto, cumpre ter presente a norma extraída do § 1º do artigo 20-B da LREF: trata-se de uma espécie de stay period reduzida, com duração de 60 dias, ao longo dos quais as execuções em face do devedor estariam suspensas (respeitado, é claro, o fato de que só viriam a ser suspensas as execuções atinentes a créditos passíveis de sujeição ao processo de reestruturação). Importante registrar que essa suspensão prevista no referido enunciado normativo constitui um expediente que busca dar fôlego ao devedor, a fim de que renegocie as suas dívidas sem as intempéries de eventuais execuções que estejam sendo promovidas em seu desfavor.

Nesse contexto, não há falar-se em extensão do período da suspensão das execuções, previsto no artigo 20-B da LREF, aos coobrigados, incluindo, aqui, os fiadores e avalistas que estão sendo demandados em ações de cobrança ou de execução. Quiçá poder-se-ia argumentar que, como forma de dar um maior estímulo ao acordo extrajudicial, haveria, igualmente, suspensão do prosseguimento de tais ações em face dos coobrigados; contudo, parece não ser essa conclusão retirada do §1º do artigo 20-B, acaso ponderada uma exegese literal da legislação falimentar, notadamente a partir do §1º do artigo 49, de onde se extrai que os credores conservam os seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. É dizer, não se coaduna à sistematicidade da LREF que a suspensão advinda de uma mediação ou conciliação prévia ao procedimento de recuperação judicial possa se estender a um obrigado que não se veria livre de sua obrigação mesmo no contexto de uma recuperação judicial.

Passando-se ao segundo ponto, indaga-se quanto à natureza e aos efeitos de eventual novação porventura decorrente de uma conciliação ou mediação prévia. Diferentemente do que ocorre na concessão da recuperação judicial, onde as novas condições de pagamento aprovadas em assembleia geral de credores aproveitam apenas ao devedor em recuperação judicial (e não aos coobrigados), na renegociação de dívida prévia ao ajuizamento de pedido de recuperação judicial, em sentido contrário, não é possível conceber a conservação do direito do credor em face do devedor coobrigado.

Afinal, a novação operada em razão da concessão da recuperação judicial, prevista no artigo 59 da LREF, distingue-se da novação prevista no artigo 360 do Código Civil. Nas palavras sempre precisas de Pontes de Miranda, "se alguém nova a dívida é porque extinguiu, com isso, a dívida que existia. Se não houvesse operado a novação estaria o devedor duplamente vinculado, pela primeira e pela outra dívida" [1]. Sucede que essa novação dita recuperacional, ou seja, que se opera em razão da aprovação e homologação do plano de recuperação judicial, apresenta algumas peculiaridades que a distingue da novação descrita nos artigos 360 e seguintes do Código Civil. Se por um lado, como já anteriormente abordado, na recuperação judicial, por força do artigo 49, §1º, da LREF, os credores mantêm intactos os seus direitos contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, por outro lado, na novação civilista, mais especificamente na parte inaugural do artigo 364 do Código Civil, está previsto que "a novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário".

De mais a mais, a novação que decorre da concessão da recuperação judicial possui condição resolutiva, visto que, no caso de descumprimento de quaisquer das obrigações previstas no plano antes de encerrada a recuperação judicial, poderá ser decretada a falência do devedor (artigo 61, §1º, da LREF), momento em que todos os credores retornam ao mesmo estado em que se encontrava antes, evidentemente com as deduções dos valores pagos no decurso do procedimento recuperatório (artigo 61, §2º, da LREF). Logo, em princípio, na renegociação de dívida em caráter antecedente ao pedido de recuperação judicial, eventual transação entre empresa devedora e seus credores não opera os mesmos efeitos da novação da dívida consubstanciada na aprovação do plano de recuperação judicial. Isso significa dizer que os acordos celebrados fora da recuperação judicial submetem-se às regras ordinárias, em especial, para discussão da fiança e do aval, às normas de Direito Civil.

Aliás, inaugura-se o terceiro ponto da problemática  indagar se as distinções entre a fiança e o aval admitiriam tratamento particularizado para cada qual. Em relação ao contrato garantido por fiança, não há, em regra, subsistência da garantia fidejussória diante de eventual acordo celebrado entre empresa devedora e seus credores. Isso porque, nos termos do artigo 844, § 1º, do Código Civil, eventual transação não aproveita nem prejudica aqueles que nela não interviram, de modo que, caso concluída apenas entre credor e devedor principal, os fiadores devem ficar desobrigados [2]. Não por outra razão, ainda que haja previsão da subsistência da garantia fidejussória no acordo entabulado entre credor e devedor principal, pode-se arguir que esta estará extinta, uma vez que as novas condições entabuladas produzem efeito apenas entre as próprias partes e quanto ao nexo de direito entre elas existente.

De fato, essa interpretação a respeito da renegociação da dívida (prevista no inciso IV do artigo 20-B da LREF) parece ser mais acertada se consideradas as características da fiança. Para tanto, importante registrar sua característica da acessoriedade, tendo em vista que pressupõe outro contrato, de cuja validade e existência depende: ou seja, nula a obrigação principal, nula será também a fiança.

Nesse sentido, levando-se em consideração os contornos peculiares do contrato de fiança, parece razoável concluir que, em sendo constituída uma nova obrigação, através de renegociação de dívida, para haver responsabilidade do terceiro garantidor, no caso do fiador, impreterível que haja anuência dele em figurar como garante deste novo compromisso. Ademais, trata-se de conclusão que, igualmente, encontra amparo no artigo 366 do Código Civil, que exclui qualquer responsabilidade do fiador de responder pela dívida novada.

De mais a mais, na hipótese do aval, muito embora as suas características sejam distintas da fiança, já que detém autonomia [3] em relação às obrigações assumidas pelo devedor do título, há de considerar os limites da autonomia, os quais permitem concluir que, tal como ocorre na fiança, há necessidade do avalista anuir com qualquer alteração das condições para pagamento do título avalizado. De fato, essa autonomia diz respeito estritamente à essência e não à forma [4], de modo que ao avalista caberá adimplir o título mesmo que nele esteja encartada obrigação nula, exceto se essa nulidade provier de algum vício de forma do título, conforme determinam os artigos 899, §1º, do Código Civil, e 32 da Lei Uniforme de Genebra.     

Portanto, no caso do aval, entende-se que sua autonomia em relação ao título não obsta que haja extinção da obrigação relativa ao avalista em razão da novação da dívida avalizada. Logo, caso haja renegociação de dívida em momento prévio ao ajuizamento do pedido de recuperação judicial, as garantias fidejussórias são, em regra, extintas, de modo que apenas haverá subsistência na hipótese de estarem previstas no acordo estipulado entre as partes e desde que conste anuência dos garantes em relação às novas condições entabuladas entre as partes.

Por derradeiro, destaca-se que as garantias precisam, igualmente, ser interpretadas a partir do artigo 20-C da LREF. Nessa toada, acaso seja requerida recuperação judicial ou extrajudicial em até trezentos e sessentas dias contados do acordo firmado no curso do período de conciliação ou de mediação pré-processual, os credores terão "reconstituídos seus direitos e garantias nas condições originalmente contratadas, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticadas" (parágrafo único do artigo 20-C). Ou seja, trata-se de previsão normativa que busca evitar que um acordo extrajudicial seja celebrado e, logo após homologado judicialmente, venha ser envolvido no procedimento recuperatório, partindo do valor que havia sido fixado na negociação entabulada entre as partes.

De toda sorte, deve-se atentar ao fato de que apenas haverá reconstituição do crédito se houver pedido de recuperação judicial no prazo de até trezentos e sessenta dias contados do acordo firmado. Contudo, decorrido referido prazo, os valores fixados no acordo extrajudicial devem prevalecer sobre os valores originários, ainda que seja ajuizado pedido de recuperação judicial pelo devedor [5]

Importante registrar: para que se opere essa condição resolutiva, ou seja, para que as condições originárias do crédito objeto de acordo extrajudicial sejam retomadas pelo credor na hipótese de pedido de recuperação judicial pelo devedor, faz-se necessário que esse acordo extrajudicial seja homologado pelo juízo competente [6]. Do contrário, esse acordo produz novação entre as partes, cuja consequência será se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial sem qualquer reconstituição das obrigações anteriores, ainda que requerida no prazo de até trezentos e sessenta dias contados do acordo firmado [7].

Em conclusão, a Lei nº 14.112/2020 trouxe consigo uma expressiva reforma no Direito da Insolvência pátrio, o que inclui a adição de ferramentas que antes não estavam à disposição do devedor em prol da equalização de seu passivo. Como é de se esperar, os novos institutos trazem à tona novas dúvidas, cabendo aos operadores do Direito manejar o ordenamento legal em prol da obtenção de soluções adequadas, sendo certo que persistirá em voga a constante construção jurisprudencial do regime restruturatório pátrio.


[1]  MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. t. XXV. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1959, p. 69.

[2] TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. v. II. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 664.

[3] Nesse sentido, leciona Newton de Lucca: "Diz-se que o aval dá lugar a um obrigação 'autônoma'. Tal significa que a sua validade não está condicionada à validade da obrigação garantida. Ainda que nula a obrigação garantida, subsiste o aval, a não ser que haja um vício de forma do título. Daí dizer-se que existe no instituto do aval tanto a autonomia substancial quanto a acessoriedade formal". (DE LUCCA, Newton. O aval. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 1, nº 53, pp. 41-71, jan./mar. 1984, p. 41).

[4] ALVES, Thiago Peixoto. O garantidor e a novação recuperacional. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 36. doi:10.11606/D.2.2016.tde-24022016-165231. Acesso em: 06 mar. 2021.

[5] ULHOA, Fábio Coelho. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 105.

[6] ULHOA, Fábio Coelho. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 104.

[7] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. In: TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas, pp. 123/165. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 164.

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