Opinião

"Imagens, apesar de tudo": o direito à memória dos atos de 8 de janeiro de 2023

Autor

  • Lucas Gabriel Pereira

    é advogado criminal e administrativo especialista em Direito Municipal (ética e efetivação de direitos fundamentais) pela FDRP/USP de Ribeirão Preto presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão) ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do estado de São Paulo (2019-2021).

8 de fevereiro de 2023, 15h17

Há um ditado japonês que diz: "o prego mais saliente é aquele leva mais martelada". Eis a metáfora para nossa meditação sobre os atos absurdos do fatídico dia 8 de janeiro de 2023.

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Busca-se aqui elucidar o direito à memória como passaporte para travessia rumo à construção de uma democracia participativa.

Da cidadania eleitoral à cidadania participativa, urge registrar os atos criminosos praticados contra os poderes da república, a fim de garantir o direito à memória das gerações vindouras.

Direito à memória: à iconografia do dia 8 de janeiro de 2023
"Imagens, apesar de tudo". Acorro-me as aspas parar tomar emprestado como título deste artigo o título de um livro de Georges Didi-Huberman, filósofo francês. Didi-Huberman nos fala que após a Segunda Guerra Mundial: "a imagem do homem é inseparável da câmara de gás" (Didi-Huberman, p. 45).

Diferentemente das armas nucelares lançadas pelos EUA contra Hiroshima e Nagasaki, no Japão, ceifando dezenas de milhares de vidas próximos a uma centena, num único ato em 1945, a lesividade das câmaras de gás utilizadas pelos nazistas, não levaram à morte instantânea; e sim a uma morte lenta e sofrida por asfixia.

Asfixia. Foram quatro longos anos que Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) esteve à frente da Presidência do Brasil, e durante todo este tempo, pouco a pouco a democracia brasileira foi gemendo e sendo asfixiada gritando por socorro, tal como vimos na voz do norte-americano George Floyd, em julho de 2020: "Eu não consigo respirar". Aos poucos, Bolsonaro e sua trupe asfixiavam a jovem democracia brasileira pós-1988, de forma a ceifá-la lentamente por inanição. O organismo social, a saber, nosso povo, de agonia em agonia presenciava achaques às instituições, ao meio-ambiente etc, enquanto assistia de camarote as marteladas sobre à democracia.

Dito isso, os atos presenciados dia 8 de janeiro não foram fortuitos, tampouco de força maior, e sim, uma construção dentro de um projeto de dominação e subjugação voltados a promoção da morte. Parafraseando Didi-Huberman, após o 8 de janeiro p.p., a imagem da democracia brasileira é e será para sempre inseparável do cenário de destruição dos atos perpetrados contra o Congresso, o Palácio do Planalto e contra o Supremo Tribunal Federal.

De frente à televisão, a cada F5 (tecla de atualização de um computador) daquela tarde dominical do dia 8, os vândalos cresciam e tomavam de assalto o centro do poder político e jurídico da nação, sem precedentes na nossa histórica. Nesse ponto, não nos serve de parâmetro a analogia com a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro de 2021, levada a cabos pela horda trompista.

Enquanto os EUA tiveram o centro político-legislativo atacado, no Brasil, a audácia foi maior, a ponto de invadirem os Três Poderes da República.

Dentre uma série de fatos, a crise da democracia brasileira é fruto de um continuum de crises que se sucedem nos últimos tempos.  É a crise da democracia liberal segundo retratado por Manuel Castels in Ruptura: A Crise da Democracia Liberal. É a crise que nasce da insuficiência do sistema capitalista dar a tempo e a contento as repostas que urgem da sociedade por mais direitos e qualidade de vida ante um modelo econômico rentista-financista que tem deixado um caminho de pobreza e miséria. Não por acaso o Brasil voltou a figurar no mapa da fome nos últimos meses.

Não é apenas a crise da representação política; antes, porém, passa pela crise gerada pela perda do poder de renda e emprego da classe trabalhadora; e, não obstante esses fatos e outros tantos que a potencializam, no caso brasileiro, trata-se da crise de uma sociedade que não acertou contas com seu passado sombrio-ditatorial (1964-1985).

O ufanismo bolsonarista se estabeleceu dentro de um projeto de ódio calcado na política do mais forte, fruto do autoritarismo enraizado na nossa sociedade. Bolsonaro: das sombras à substância. De agente do porão da ditadura à presidência da república. Não é acaso, é projeto.

As elites aliadas aos militares forjaram o discurso contra a corrupção da lava-jato para instrumentalizar o ódio como elemento eugenista da política a ser levado a cabo. Nisto, quem melhor que um ex-capitão para liderá-los?

O povo brasileiro, ungido pela constituinte democrática para ser sujeito histórico da transformação da sociedade (Boff, p. 246), quedou em assujeitar a democracia a ponto de fazer do patrimônio cultural do Brasil e do mundo que é Brasília  segundo a Unesco , palco de horror e ruínas.

Antes do Estatuto Político e Jurídico de 1988 que culminou na nossa Constituição, Brasília já era reconhecida como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco desde 1987. Possui a maior área tombada do mundo, com mais de 112 km, representados na arquitetura e nos projetos de Oscar Niemayer e Lúcio Costa.

De asfixia aqui e acolá, a democracia brasileira viveu o cenário de horror em Manaus diante da ausência de oxigênio para pacientes no pico da pandemia Covid-19. Presenciou a trupe bolsonarista assistir desfile de seu capitão-mor ao usar helicóptero militar em atos pró-governo durante quatro anos seguidos. E qual a punição para tamanho dispêndio público ilegal de recursos da União por isso?

Durante quatro anos caminhamos na contramão da civilidade, o que esperar? Da centralidade da vida como projeto político escorado na dignidade da pessoa humana como eixo central da política, descaminhamos. De um projeto voltado à vida conforme outorga do constituinte ao nosso povo, segundo registro de Leonardo Boff, erigimos culto aos algozes da democracia participativa.

"Somos forçados a abrir novo caminho, quer dizer, buscar um novo paradigma, que sempre deverá estar, o mais possível, livre da impregnação do velho paradigma (Boff, p. 246)."

E diante do absurdo do dia 8 de janeiro p.p., é imperioso que ergamos memoriais da democracia para registrar e eternizar os instrumentos e os bens objetos da vassalagem bolsonarista.

É preciso registrar o absurdo, para que nunca mais repita.

É preciso registrar o absurdo, para que sirva de instrumento de conscientização crítica.

Dito isso, faz-se necessário o registro iconográfico e por meio de meio de murais e/ou outras formas de proteção memorialística, para que no futuro, as próximas gerações herdem essa herança como a cultura de um tempo que abdicou da razão para dar voz aos instintos primitivos do ser. Não por acaso, o constituinte erigiu a "cultura" entre a "educação" e o "desporto" (Cap. III, Título VIII  da Ordem Social, CRFB/88). É que não se faz cultura sem educação; e que, cultura não é lazer.

Fazer dos atos do dia 8 de janeiro p.p. um memorial à democracia, é reconhecer as ruínas dos três poderes da república como matéria prima para à arte. Da construção de um projeto artístico das ruínas como instrumento (bens) de acesso à cultura  do tempo da razão à bancarrota.

É como àquela imagem do pico do Cauê que o poeta Carlos Drummond de Andrade via-se desfigurar pouco a pouco a cada uma das viagens que fazia a sua Itabira, em Minas Gerais, ante o avanço da ação de mineração da Vale do Rio Doce naquela montanha. A ponto de que na "Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração", José Miguel Wisnik nos contar da presença na ausência (Wisnik, p. 35). Eis o paradoxo da democracia sob os quatro anos do governo Bolsonaro: aquela democracia de outrora, padeceu; a que temos hoje das ruínas do dia 8, seria a sobrevivente. Da desconfiguração à reconstrução. Das ruínas à substantivação do pacto social libertário do nosso povo. Da democracia da deixa disso à democracia da responsabilização, tal como promete ser segundo a atuação escorreita e corajosa do Ministério Público [1].

O autor Hédi Fried,  judeu e psicólogo sueco-romeno, 1924-2022, no capítulo O Que Podemos Aprender com o Holocausto, p. 183, traz um relato de como sobreviveu ao período de horror sob as mãos dos nazistas. Entre seus afazeres, dar aulas, palestrar e escrever artigos de jornais, era uma constante como instrumento de memorialístico do nazismo.

Hédi Fried, segundo os relatos de:

"uma condessa alemã, filha do embaixador da Espanha cuja casa foi ponto de encontro dos opositores de Hitler em 1948, disse que o mundo não aprendeu nada com os assassinos, nem com as vítimas, nem com os espectadores. Nosso tempo é como uma dança com a morte, e poucos são aqueles que entendem seu ritmo estranho.
"As palavras soam verdadeiras hoje mais que nunca. Mas jamais devemos aceitar isso nem nos permitir ficar à vontade. Não podemos desistir de lutar (Fried, p. 183)."

O relato de Fried vem calhar com o direito à iconografia e à memória da democracia, sob pena de incorrer em apagamento e as novas gerações estarem sujeitas a novos autoritarismos, novos ufanistas.

O direito à iconografia do dia 8 é como espalhar centelhas de esperança no horizonte a fim de que os frutos da paz e da cidadania participativa possam ser colhidos no futuro.

Voltando-me à Didi-Huberman, assim como foi imprescindível erigir imagens a partir do absurdo do holocausto nazista, caso a democracia brasileira queira ser agente-em-mudança, é imprescindível a constituição de memorais à democracia com o espólio dos atos perpetrados no dia 08 de janeiro de 2023. Do direito à iconografia como passaporte desse tempo-em-mudança.

Considerações finais
Neste artigo, acorremos às metáforas e às lições de Didi-Huberman sobre o direito à iconografia sobre o espólio dos atos nazistas para destacar a necessidade de como erigir um memorial iconográfico à democracia. No dizer do ditado japonês, a democracia que resiste às adversidades do tempo é como um prego saliente após sucessivas marteladas.

Passado um mês do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, constitui-se necessário reconhecer o direito à iconografia para preservação da democracia, como fruto de um tempo em que a razão entrou em concordata.

Numa ode à Gramsci, a ultrapassada expressão "concordata" foi superada pela "falência" da lei vigente. Entre o velho e o novo, algo precisa nascer; está nascendo; e vai nascer!: é a democracia pós 08 de janeiro de 2023.

Que seja participativa!

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Referências bibliográficas

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens, apesar de tudo. 1ª Ed., São Paulo: Editora 34, 2020.

CASTELS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. 1ª Ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

FRIED, Hédi. Perguntas que me fazem sobre o Holocausto. 1ª Ed., São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020.


[1] No ultimo dia 27 de janeiro p.p. a Procuradoria-Geral da República apresentou mais 150 denúncias contra bolsonaristas envolvidos nos ataques antidemocráticos cometidos no último dia 8 à Praça dos Três Poderes, em Brasília. Com isso, o total de denúncias chegou a 254, segundo reportagem da ConJurhttps://www.conjur.com.br/2023-jan-27/pgr-faz-150-denuncias-bolsonaristas-envolvidos-81 , acessado em 07 de fevereiro de 2023.

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