Opinião

Importância da individualização da conduta nas ações de improbidade

Autor

  • Mayrluce Alves

    é advogada na Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados e pós-graduada em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Público (IDP).

7 de fevereiro de 2023, 11h16

Recentemente, por meio da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, a Lei nº 8.429/1992, denominada Lei de Improbidade Administrativa (LIA), sofreu grandes alterações, dentre as quais podemos citar a inclusão do §6º, inciso I, em seu artigo 17.

Mencionado dispositivo, impõe como requisito para o ajuizamento de ações que visem a aplicação das sanções previstas na Lei, o dever de individualização da conduta do réu e de indicação dos elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência do ato ímprobo.

O motivo para alteração da Lei nº 8.429/1992, conforme consta no texto de justificativa da proposta de alteração da norma, é que a Lei de Improbidade carecia de revisão para a sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade e de adaptações às construções hermenêuticas da própria jurisprudência.

No que se refere ao dever de individualização da conduta tida como ímproba, tal mudança se fez necessária, pois, antes da alteração da lei, os legitimados ao ajuizamento de ações de improbidade administrativa fundamentavam o seu pleito de maneira genérica, tratando muitas vezes meras irregularidades ou ilegalidades como improbidades, o que não se confunde com as condutas que a lei visa coibir.

Não são poucas as ações em que, apropriando-se de um vácuo legal, a conduta dos réus era fundamentada de forma abstrata e tão somente na antiga redação do artigo 9º da Lei nº 8.429/92, dispositivo este que trata do enriquecimento ilícito, e, consequentemente, abrangia, por sua amplitude, as demais formas de improbidades contidas nos artigos seguintes.

Sucede que, como mencionado, uma das razões para alterar a lei, com vistas a obrigar a individualização das condutas que se pretendem punir, foi a necessidade de adequar a norma à construção jurisprudencial, que há muito tempo já havia firmado o posicionamento no sentido de que o caráter da lei em comento, antes de sua alteração, era muito aberto, e sua amplitude constituía risco para o intérprete, "induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa" [1].

Em que pese a relevância do mencionado dispositivo legal, no entanto, no decorrer do exercício da advocacia, verifica-se alguma resistência em se seguir essa recente determinação legal, deixando-se, inclusive, de se emendar iniciais quando há provocação pelos magistrados, o que, além de causar insegurança jurídica aos réus, prejudica a efetividade dos direitos constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, conforme será demonstrado no decorrer do presente artigo.

Um contraponto à hipertrofia punitivista
Inicialmente, é importante ressaltar que, nos termos do que expressamente prevê em seu artigo 1º, §4º, a LIA se situa no âmbito do Direito Sancionatório, estando submetida, portanto, à regência dos princípios penais assentados na Constituição Federal.

Em pese o conteúdo do artigo 17, §6º, inciso I, da LIA seja inédito, já é comum o entendimento que reconhece a aplicação análoga dos princípios do direito penal no âmbito da improbidade administrativa, tendo em vista que nesses casos também há restrição de direitos.  

Em defesa dessa interpretação jurídica mais garantista do Direito Administrativo Sancionador, inclusive, há precedente do STJ, de relatoria do ministro Luiz Fux, que, enquanto relator, destacou que: "é uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da lei de improbidade, impõe-se exegese idêntica à que se empreende com relação às figuras típicas penais" [2].

Desse modo, da mesma forma que no direito penal é necessária a individualização da conduta, pelo princípio da tipicidade, também deve ser individualizada e tipificada a conduta dos réus nas ações de improbidade administrativa, a fim de se evitar a padronização de sanções e possibilitar o efetivo direito de defesa dos Réus, em respeito ao próprio texto constitucional, especificamente de seu artigo 5º, inciso LV.

Ainda por analogia, o mesmo rigor exigido pelo artigo 41 do Código de Processo Penal, acerca dos requisitos formais da denúncia, deve ser aplicado às ações de improbidade administrativa. Isto é, deve-se indicar de forma clara o fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

Tal dispositivo é de extrema relevância para o ordenamento jurídico, na medida que se relaciona diretamente aos princípios da ampla defesa e do contraditório que estão previstos no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, o qual dispõe que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Assim, da mesma forma que é necessário classificar o crime no direito penal, isto é, tipificar a conduta imputada ao réu, também é necessário nas ações de improbidade indicar de forma clara o ato ímprobo supostamente cometido pelo réu.

Veja-se, nesse sentido, o entendimento jurisprudencial acerca das consequências da não tipificação do fato:

"[…] É entendimento consolidado desta Corte que o oferecimento da denúncia sem a norma complementadora constitui inépcia da denúncia, por impossibilitar a defesa adequada do denunciado [3].
[…] Reconhece-se a inépcia da denúncia cuja narrativa não possibilita a delimitação do fato criminoso. Imputando a peça acusatória inicial a prática de um fato ao acusado, não pode a sentença condená-lo por fato diverso, sem que se tenha adotado o procedimento previsto no artigo 384, do CPP, sob pena de violar-se o princípio da correlação entre a imputação e o decisum[4]."

Observe-se que no direito penal, a acusação sem indicação da norma violada, constitui inépcia da denúncia, por impossibilitar a delimitação do fato e, principalmente, a defesa adequada do denunciado. Logo, tais princípios devem ser aplicados na seara dos processos de improbidade administrativa, por se tratar de norma que também se situa no âmbito do direito sancionador, de modo que a exordial não detalhada para adequar-se ao novo texto do artigo 17, §6º, inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa, deve ser rejeitada, por inépcia, uma vez que impossibilita a defesa adequada.

Importância da demonstração precisa da conduta do acusado
O direito de defesa está previsto no artigo 5º, inciso LV da Constituição, e para que ele seja exercido em sua plenitude, à luz do devido processo legal, a conduta imputada ao Réu nas ações de improbidade não pode ser abstrata, pois, além de prejudicar o exercício do contraditório, possibilitará a prolação de decisões arbitrárias.

Somente com a precisa individualização da conduta do réu, e com a exata indicação dos elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência do ato ímprobo é que se permite à parte apresentar sua argumentação jurídica, bem como impugnar precisamente o tipo que lhe é imputado. Se não houver essa indicação, não há como exercer o contraditório de forma concreta, mas apenas utilizar alegações jurídicas sem uma direção predefinida.  

Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça  Corte responsável por uniformizar a interpretação de lei federal , já firmou entendimento acerca da obrigatoriedade da indicação e individualização da conduta ímproba. Confira-se:

"[…] ausente a descrição do fato típico que teria sido praticado pela implicada, não há falar-se em conduta ímproba, contrariamente, portanto, ao que pretende a parte agravante na insurgência em testilha, uma vez que alega a suficiência de descrição genérica dos fatos. Rejeita-se, portanto, a alegação da parte recorrente de violação aos artigos 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92, porquanto o que se exige de uma promoção judicial, sobretudo em matéria de sanções, é a individualização do suposto malfeito do réu, com a pormenorização dos fatos, até mesmo para que a defesa do acionado tenha a mínima viabilidade; providência não atendida na demanda em espeque. 4. Agravo Interno do Órgão Acusador desprovido [5]."

O doutrinador Waldo Fazzio Júnior [6] compartilha do mesmo entendimento no que se refere à obrigatoriedade da individualização das condutas:

"[…] É ônus do autor da ação civil de improbidade administrativa inscrever, na peça vestibular, o que quer, por que quer, com fundamento em que quer. Leia-se, em que consistiu o ato de improbidade imputado ao réu, ou, conforme o caso, o ato cuja decretação de invalidade postula, ou, ainda, em que consistiu sua lesividade ao patrimônio da entidade pública, se for o caso. Também, incumbe-lhe apontar, de forma concreta e objetiva, como e em que condições teria o requerido praticado os atos de improbidade que lhe são imputados."

Destarte, é inegável o avanço trazido pela edição da Lei nº 14.230/2021, que alterou a Lei nº 8.429/92, para inserir o artigo 17, §6º, inciso I em seu texto.

Outrossim, importante ressaltar, por fim, que desde a edição da Lei nº 14.230/2021, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou em mais de uma oportunidade sobre as alterações promovidas pela referida lei, durante o julgamento do Tema 1.199 e das Ações Direta de Inconstitucionalidade nºs 7042, 7043 e 7236. No entanto, até o momento, não questionou ou suspendeu a aplicabilidade do dispositivo em questão, sendo, portanto, devida a sua observância pelas partes e, principalmente, pelo magistrado.

Desse modo, tem-se que a inobservância de tal exigência legal, ainda mais quando a parte autora for intimada especificamente para tanto, ocasionará não apenas a violação ao texto constitucional, mas, também, a rejeição da petição inicial, por inépcia.


[1] Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 480.387/SP, relator ministro Luiz Fux, 1ª T, DJU de 24.5.2004, p. 162.

[2] Superior Tribunal de Justiça. REsp 721190/CE. Min.istro Luiz Fux.

[3] STJ. HC 370.972/MS, relator ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 22/11/2016, DJe 07/12/2016

[4] TJ-MG  APR: 10035110114788001 MG, relator: Maria Luíza de Marilac, Data de Julgamento: 10/03/2015, Data de Publicação: 19/03/2015

[5] AgInt no REsp nº 1.485.027/RJ, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 15/8/2017, DJe de 31/8/2017.

[6] FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 2008. p. 315.

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