Opinião

Acórdãos de HC julgados e os paradigmas de embargos de divergência

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6 de fevereiro de 2023, 21h32

O Superior Tribunal de Justiça é a corte responsável por dirimir os dissídios jurisprudenciais do Judiciário brasileiro em busca de um sistema homogêneo e razoavelmente seguro. Um dos mecanismos legais utilizados para esse fim é o recurso de embargos de divergência.

Ocorre que o STJ pacificou entendimento — aparentemente inarredável — no sentido de não admitir que a uniformização jurisprudencial via embargos de divergência seja feita a partir do cotejo do acordão embargado com acórdãos paradigmáticos produzidos em julgamentos de Habeas Corpus, recurso ordinário em Habeas Corpus, habeas data, mandado de segurança e recurso Ordinário em mandado de egurança [1].

Entretanto, é hora de rever esse posicionamento, e vamos nos deter, aqui, na proibição de utilização de acórdãos de Habeas Corpus originalmente julgados pelo STJ como paradigmas de embargos de divergência.

Essa orientação jurisprudencial, a qual limita aquilo que nem mesmo a lei pretendeu limitar, enseja profunda injustiça e obstaculiza a realização do objetivo essencial do recurso de embargos de divergência, que consiste exatamente na busca da homogeneização dos pronunciamentos e da segurança jurídica.

O artigo 1.043 do Código de Processo Civil, aplicável analogicamente ao processo penal (artigo 3° do Código de Processo Penal), traz os requisitos exigíveis para a interposição dos embargos de divergência:

"Art. 1.043. É embargável o acórdão de órgão fracionário que:
I – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;
II – (revogado)
III – em recurso extraordinário ou em recurso especial, divergir do julgamento de qualquer outro órgão do mesmo tribunal, sendo um acórdão de mérito e outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia;
IV – (revogado)

§ 1º Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária. (…)" (grifamos)

Já o próprio Regimento Interno do STJ assim disciplina o recurso de embargos de divergência:

"Art. 266. Cabem embargos de divergência contra acórdão de Órgão Fracionário que, em recurso especial, divergir do julgamento atual de qualquer outro Órgão Jurisdicional deste Tribunal, sendo:
I – os acórdãos, embargado e paradigma, de mérito;
II – um acórdão de mérito e outro que não tenha conhecido do recurso, embora tenha apreciado a controvérsia.

§ 1º. Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária. (…)" (grifamos)

Como se vê, tanto a norma processual civil — insculpida em lei federal — como o Regimento Interno da Corte Superior são expressos em afirmar que as teses jurídicas objeto de confronto podem estar contidas em julgamentos de recursos e ações de competência originária, entre cujos clássicos exemplos está o Habeas Corpus que aprecia ato coator praticado por Tribunal sujeito à jurisdição do STJ (artigo 105, inciso I, alínea c da Constituição).

Nem poderia ser diferente.

O writ é verdadeira ação penal mandamental que instrumentaliza a salvaguarda das mais preciosas liberdades, não se justificando, com todo o respeito, que seja submetido a uma espécie de capitis deminutio jurisprudencial segundo a qual um acórdão produzido por ocasião de seu julgamento, ainda mais quando decididas questões da mais alta suposição jurídica, tem menor valor, para fins de uniformização de julgados, do que aquele decorrente de julgamento de um recurso especial.

Não fosse isso o bastante, é indiscutível que, nos últimos anos, o trânsito ao recurso especial tem sido desafiado por uma plêiade de exigências que o transformaram, literalmente, em um apelo raro, quadro que se agravou pela sistemática prolação de decisões monocráticas que desviam essa modalidade de insurgência do natural caminho do julgamento colegiado.

Esse panorama, aliás, é um dos responsáveis pela proliferação de ações originárias de Habeas Corpus nas quais, apesar do notório assoberbamento do STJ, tem-se produzido qualificada jurisprudência, que não pode ser simplesmente desprezada quando se trata do importante objetivo de uniformização e solidificação de entendimento sobre matérias de Direito Penal e Direito Processual Penal.

A grande verdade é que, diante da notória dificuldade de conferir trânsito aos recursos especiais, o mandamus, muitas vezes, é a única forma de levar questão relevante ao conhecimento do STJ e haver, de fato, a apreciação da matéria ventilada.

Assim, não faz sentido, até porque manifestamente contra legem, que se admita uniformização da jurisprudência apenas pelo confronto de dois acórdãos em recursos especiais. A única exigência estabelecida pelo legislador é que a divergência se concretize no julgamento de um recurso especial, não havendo nenhum óbice em confrontar esse recurso especial com um Habeas Corpus, de modo que não poderia a jurisprudência limitar aquilo que a lei não limita, ainda mais em prejuízo de acusado em processo penal.

Urge, portanto, que o STJ julgue um de seus recursos de embargos de divergência que invocam paradigmas extraídos de Habeas Corpus de competência originária daquela corte para que se promova uma saudável mudança desse "requisito jurisprudencial" dos próprios embargos de divergência.

 


[1] AgRg nos EREsp 1.582.620/PB, 3ª Seção, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 27/11/2017 e AgRg nos EREsp 1.344.514/SP, Terceira Seção, rel. min. Felix Fischer, DJe 29/3/2017.

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