Opinião

Ainda o Tema 69: análise das ações rescisórias ajuizadas pela União

Autor

  • Rafael Pandolfo

    é especialista em Direito das Empresas e da Economia (FGV) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) mestre e doutor em Direito Tributário (PUC-SP) coordenador do Ibet no Rio Grande do Sul professor conferencista do Ibet professor no curso de pós-graduação da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB do Instituto de Pesquisas Tributárias (IPT) do Instituto de Estudos Tributários (IET) e da Fundação Escola Superior de Direito Tributário (Fesdt) autor de artigos e livros sobre Direito Tributário conselheiro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) entre março de 2011 e maio de 2015 e presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-RS entre janeiro de 2016 e dezembro de 2018.

3 de fevereiro de 2023, 18h23

O artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal [1], atribui à coisa julgada o status de cláusula pétrea [2], prescrevendo que a legislação infraconstitucional não poderá restringi-la.

Instrumento indispensável à garantia da previsibilidade e certeza do direito, a coisa julgada impede que litígios judiciais se arrastem ou sejam reabertos indefinidamente. Possui, assim, relação indissociável com a segurança jurídica e com o Estado Constitucional de Direito. Para a desconstituição da coisa julgada, é necessária a propositura de ação rescisória, medida excepcional que deverá respeitar as taxativas hipóteses previstas pelo ordenamento jurídico.

No caso da Tese do Século, um expressivo número de ações de repetição de indébito tributário foi proposto pelos contribuintes imediatamente após o julgamento do mérito do Tema 69 da Repercussão Geral, em 15 de março de 2017. Algumas delas transitaram em julgado rapidamente.

Posteriormente, sob o fundamento de que a modulação dos efeitos promovida pelo STF não fez qualquer ressalva às ações ajuizadas após março de 2017 e transitadas em julgado antes dos declaratórios em maio de 2021, a União passou a defender o cabimento da rescisão das decisões proferidas nesse interregno, as quais asseguraram o direito à repetição do indébito relativo às competências anteriores a março de 2017 [3].

Assim, com fundamento nos artigos 535, § 8º [4], e 966, inciso V [5], ambos do CPC, a Procuradoria da Fazenda Nacional tem ajuizado ações rescisórias sustentando a inaplicabilidade da Súmula 343 [6] e do Tema 136 do STF [7], os quais reputa superados pelo advento do Código de Processo Civil de 2015.

O cabimento dessas rescisórias será analisado a seguir.

Começamos pelo artigo 535, § 8º, do Código de Processo Civil, o qual prevê a propositura de ação rescisória para desconstituição de decisão judicial transitada em julgado que seja incompatível com posterior decisão do STF, sempre que a decisão rescindenda anterior: a) seja fundamentada em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal; ou b) esteja fundada em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal.

O mecanismo significa clara regra de oposição à realização patrimonial de um direito incompatível com o texto constitucional, conforme interpretação materializada pelo STF no exercício da sua atividade jurisdicional [8].

Sem ingressar nos aspectos ligados à aparente inconstitucionalidade desse comando normativo [9] ou sua inaplicabilidade no campo tributário em virtude das restrições previstas em norma geral tributária (CTN), é importante delimitar a abrangência e o campo de aplicação desse instrumento rescisório.

Primeiramente, deve-se ter em vista que o comando prestigia a força normativa do texto constitucional (Konrad Hesse), impedindo que decisões conflitantes com a interpretação conferida pelo STF tenham desdobramentos patrimoniais.

No caso do Tema 69, a interpretação levada a termo pelo STF consagrou o entendimento de que o ICMS não integra o conceito constitucional de receita bruta e, portanto, não pode ser incluído na base de cálculo do PIS e da Cofins [10]. E o que definiram os acórdãos atacados pelas rescisórias da União? Exatamente o mesmo que foi decidido pelo STF: o ICMS deve ser excluído da base de cálculo dessas contribuições.

Não se pode afirmar que decisões transitadas em julgado são incompatíveis com a Constituição quando sua interpretação vai exatamente ao encontro da definição conferida ao dispositivo apreciado pelo STF.

A modulação diz respeito aos efeitos de uma decisão e não atinge seu plano de validade. Desse modo, a inovação processual estampada no § 8º do artigo 535 não tem o condão de afastar a aplicação da súmula 343 do STF e da Tese 136, do STF, tratando-se de modulação de efeitos. As decisões rescindendas não atribuíram aos dispositivos infraconstitucionais que disciplinam a incidência do PIS e da Cofins interpretação tida pelo STF como incompatível com a Constituição. Pelo contrário, reproduziram fielmente essa interpretação.

A incompatibilidade quanto à interpretação do dispositivo confrontado com a Constituição é o fundamento autorizativo dessa medida excepcional. Tivesse o STF definido que o ICMS integra a base de cálculo dos tributos acima referidos, o acórdão rescindendo estaria ao alcance do raio deôntico inscrito no § 8º do artigo 535. E, sendo dispositivo que restringe direitos — notadamente um direito que constitui cláusula pétrea — não se pode dar uma interpretação ampliativa a esse dispositivo processual infraconstitucional.

A divergência autorizativa da ação rescisória situa-se no plano da validade e está ligada ao conteúdo do enunciado normativo interpretado; a aludida pela Fazenda em suas rescisórias, no plano da eficácia. Rescindir um acórdão plenamente compatível com o texto constitucional, nesse contexto, é mitigar a força normativa da Carta Maior.

Mesmo que se desconsidere os apontamentos até aqui alinhados, para que se postule, a partir de uma variação quanto aos efeitos, a anulação de um acórdão que reproduz a interpretação correta da Constituição, é imperioso, por coerência, que se demonstre que o mesmo contexto (vultoso impacto financeiro), presente nas justificativas que fundamentaram a modulação, faz-se presente nas minguadas hipóteses rescisórias ligadas ao Tema 69, ora analisadas [11]. Se não for demonstrado que a ação rescisória alberga a proteção do mesmo contexto tutelado pela modulação, a ação sequer enseja julgamento de mérito. Admitir-se a rescisória, nessa hipótese, seria aviltar o texto constitucional de maneira inócua, desnecessária e em descompasso com a motivação que serviu de esteio à modulação do leading case.

Descabida pelo artigo 535, § 8º, com menor razão poderá a medida rescisória ser fundamentada no artigo 966, V, do CPC, pois esse dispositivo também não escapa à aplicação plena da súmula 343, conforme remansosa jurisprudência fixada no STF [12]. Isso significa demonstrar que o tema não era controvertido à época do acórdão rescindendo. O posicionamento do próprio STF ao analisar o RE nº 240.785, chancelado pela propositura da Ação Declaratória nº 18 (distribuída em 2007) [13], revela, no mínimo, turbulência suficiente a afastar qualquer pleito rescisório.

Ademais, a ação rescisória fundada no artigo 966, V, do CPC só poderá ser proposta se houver manifesta violação da norma jurídica, que deve ser verificada à luz da Tese 136 do STF. Não se pode rescindir acórdão em harmonia com o entendimento do Plenário do Supremo à época, ainda que ocorra posterior superação do precedente. Tendo seguido a inteligência do STF naquele momento, a decisão de mérito favorável ao contribuinte não pode ser rescindida com base no artigo 966, V, do CPC.

Enfim, aqueles que ingressaram com a ação após março de 2017 e obtiveram o trânsito em julgado antes maio de 2021 não podem ser equiparados aos que não atingiram o trânsito: são graus diferentes de proteção conferidos pelo ordenamento, pois as expectativas juridicamente tuteláveis são igualmente distintas. O passado dos detentores de decisão judicial definitiva está protegido pela irretroatividade decorrente de cláusula pétrea; o dos demais contribuintes dependerá da concessão de eventuais efeitos modulatórios atribuídos pelo STF à própria decisão.

A coisa julgada constitui cláusula pétrea expressamente prevista na Constituição. Sua referência em cada decisão judicial proferida no âmbito da jurisdição constitucional é desnecessária, pois sua compulsoriedade é decorrência da própria força que exsurge do núcleo normativo sobre o qual encontra-se assentado o Estado democrático de Direito. Se a lei não pode prejudicar a coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI), muito menos poderá um ato interpretativo que amplie a aplicação de uma restrição à coisa julgada para hipótese não expressamente prevista em lei. Sendo assim, são flagrantemente inconstitucionais todas as decisões que afrontam essa garantia.

 


[1] Art. 5ª, XXXVI da CF – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

[2] Art. 60, § 4º da CF – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

[…]

IV – os direitos e garantias individuais.

[3] Até cinco anos contados da data do ajuizamento.

[4] Art. 535 do CPC – A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

[…]

III – inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;

[…]

§ 5º. Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal , em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

[…]

§ 8º. Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[5] Art. 966 do CPC – A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: […]

V – violar manifestamente norma jurídica;

[6] Súmula 343 do STF: Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

[7] Tema 136 do STF: Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.

[8] Como bem aponta Rodrigo Dalla Pria, a tutela exarada com fundamento no § 8º do art. 535, do CPC, não se volta contra o conteúdo da decisão exequenda, mas tão somente contra sua eficácia executiva. (Pria, Rodrigo Dalla. Direito Processual Tributário. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2021, p. 605).

[9] A aparente inconstitucionalidade desses dispositivos ainda não foi enfrentada pelo STF, razão pela qual se pressupõe a sua constitucionalidade e a análise ora empreendida ficará adstrita à sua adequação, ou não, à pretensão rescisória da Fazenda.

[10] Recorde-se que esse entendimento inclusive reproduz o posicionamento já adotado pelo Plenário do STF ao julgar a mesma matéria em 2014 (RE nº 240.785).

[11] Segundo dados apresentados pela Fazenda Nacional no julgamento do seu pedido de efeitos modulatórios, 78% das ações relacionadas ao Tema 69 foram ajuizadas após março de 2017. Ocorre que parcela insignificante desses casos transitou em julgado até maio de 2021. Esses são os casos objeto das rescisórias.

[12] Apenas em 2022, podemos citar os seguintes julgamentos do STF: (1) AR 2.883 AgR, rel. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, j. 08/2/2022; (2) AR 2.844 AgR, rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, j. 21/3/2022; (3) ARE 1.368.221 AgR, rel. CÁRMEN LÚCIA, 1ª Turma, j. 30/5/2022; e (iv) ARE 1332413 AgR-segundo, rel. ROSA WEBER, 1ª Turma, j. 21/6/2022.

[13] Conforme preceitua o art. 14 da Lei nº 9.669/99, na propositura da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 18, a União teve que demonstrar a existência de controvérsia judicial relevante sobre o tema, o que reafirma a aplicação da Súmula 343, do STF.

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