Direito Digital

Fortnite, free-to-play e o uso abusivo dos games: como proteger as crianças?

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2 de fevereiro de 2023, 10h13

Técnicas de monetização exploradas pela indústria dos games têm gerado polêmica e, em alguns casos, resultado em disputas judiciais para os seus operadores, como a Epic Games nos casos envolvendo o jogo Fortnite. Nos Estados Unidos, a empresa foi processada pela Federal Trade Comission, órgão encarregado da execução de leis antitruste e de proteção dos consumidores, e multada em mais de US$ 500 milhões por violar o Children´s Online Privacy Act, lei que protege crianças no meio digital, e empregar padrões obscuros (dark patterns) para induzir jogadores a realizar compras desavisadamente[1].

ConJur
No Canadá, a Epic Games integra o polo passivo em uma ação coletiva movida por pais sob o argumento de que a empresa tem responsabilidade pelo produto que causou danos a seus filhos, viciados no Fortnite[2]. O processo teve início em 2019. Em 2022, o juiz autorizou o prosseguimento da ação, considerando não se tratar de pedido frívolo ou sem fundamentos. Os pais argumentam que o jogo foi desenhado para viciar, que as crianças não comem, não dormem, não tomam banho e não socializam com seus pares. Uma das crianças teria gastado mais de R$ 23 mil em produtos no jogo.

A movimentação não está adstrita à mídia especializada ou aos tribunais. São diversas as iniciativas legislativas que propõem mudanças na arquitetura jurídica visando alcançar a prática dos videogames por crianças e adolescentes. Um exemplo é a alteração da Jugendschutzgesetz (Lei de Proteção à Juventude), aprovada em março de 2022 pelo Parlamento Federal Alemão. Na China, o limite de tempo para as crianças jogarem é determinado por lei. Já o Parlamento Europeu publicou, em 18 de janeiro de 2023, opinião a respeito da proteção de jogadores no ambiente online, pedindo um esforço de uniformização regulatória[3]. No Brasil, o Projeto de Lei n. 2.628/2022 dispôs sobre a proteção de crianças e de adolescentes em ambientes digitais, dedicando um capítulo aos jogos eletrônicos.

Este é o primeiro de uma série de artigos nos quais faremos considerações a respeito de algumas das principais ferramentas de monetização adotadas pela indústria, sobretudo aquelas aplicáveis ao modo free-to-play (grátis). Discutiremos o uso abusivo de jogos eletrônicos e a especial condição de vulnerabilidade dos jovens, exposição ilustrada com os casos Fortnite, pela sua relevância jurídica, suas proporções financeiras e midiáticas. Ao final, traremos considerações sobre o ambiente regulatório internacional e nacional, até o PL nº 2.628/2022, que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais no Brasil. Dedicamos este primeiro texto ao Fortnite, um jogo criado em 2017, com armas e violência, no qual os jogadores batalham em um mundo pós-apocalíptico. O game tem um apelo estético infantil, caricaturesco, não há sangue e os jogadores não "morrem". O jogo explora a criatividade ao permitir personalização de armas, veículos, personagens e a possibilidade de coletar materiais e construir estruturas para se proteger contra os inimigos.

O Fortnite é um sucesso mundial. Hoje, são mais de 350 milhões de jogadores registrados que geraram em 2022 uma receita de aproximadamente R$ 34 bilhões[5]. Focaremos no modo Battle Royale, expoente dos jogos free-to-play, formato no qual até cem pessoas podem estar numa batalha, na qual é possível atuar sozinho ou em equipes. O espaço do jogo é cada vez mais restrito e as batalhas, cada vez mais intensas. Ao final, vence um jogador ou uma equipe.

O sucesso do Fortnite é atribuído a fatores que aumentam o engajamento e a retenção, como a experiência do usuário — que centraliza o jogador desde a concepção do produto. Parte desta estratégia inclui remover frustrações que podem ser enfrentadas não intencionalmente, a exemplo de ícones pouco intuitivos, sistemas confusos e menus de navegação difíceis. O resultado é um jogo bonito, fácil e divertido que roda sem problemas técnicos e que conta com alto grau de acessibilidade.

A disseminação do modo free-to-play se deve ao amplo e facilitado acesso à Internet. Desenvolvedores que tradicionalmente obtinham receita através da venda de novos jogos, ou de variações de jogos antigos – nos casos das franquias bem-sucedidas — passaram a oferecer o produto gratuitamente em diversas plataformas. Ainda, foram criadas mecânicas de monetização do jogo online, o que possibilitou traduzir a popularidade e a quantidade de horas jogadas em receita.

Instrumento central do modelo de negócios adotado é a introdução de conteúdo para download ou DLC (sigla em inglês que significa downloadable content), que pode ser pago ou gratuito, distinguíveis como itens cosméticos (que não impactam a jogabilidade) ou pay-to-win (quando podem influir diretamente na jogabilidade). Muitos jogos, sobretudo os desenvolvidos por produtores independentes, necessitam deste tipo de monetização que explora os DLC para gerar receita.

A novidade e a exclusividade são elementos que passaram a ser bem explorados pela indústria de games. Os DLC têm grande variedade e são renovados constantemente, o que só faz aumentar o interesse e a ansiedade de muitos consumidores no intuito de continuarem jogando e adquirindo, constantemente, novos produtos, com medo de "ficarem de fora" das novidades (Fomo ou fear of missing out). Em alguns jogos, há um aviso informando que a loja interna será atualizada em poucas horas, o que acelera o senso de urgência e fomenta aquisições, pois alguns itens DLC poderão ser excluídos do mercado.   

Os DLC podem ser adquiridos através de microtransações que, quando maquiadas e escondidas por trás do excelente design desenvolvido por especialistas, são conhecidas como dark patterns. Ao jogarmos o Fortnite no PC em 25/01/2023, observamos que o valor mensal do passe de batalha era de R$ 38 e incluía alguns itens como o envelopamento de armas, gestos e emoticons. O passe de batalha é uma ferramenta de monetização periódica, que pode ser adquirida pelos jogadores no começo de cada nova temporada e permite recompensá-los com conteúdo exclusivo por completarem certos desafios[5]. No Fortnite, as recompensas de um passe de batalha adquirido para determinada temporada usualmente só podem ser obtidas durante o período daquela temporada.

Na mesma plataforma, um pacote com 1.000 V-Bucks ("moeda" utilizada para compras no jogo) custa R$ 25, mas há descontos progressivos. O pacote do personagem Homem-Aranha, uma colaboração de sucesso e muito popular, custa 1.800 V-Bucks e inclui a skin do personagem e outros cosméticos, como armas e teias. Para ilustrar a efetividade do modelo empregado pela Fortnite, observamos que cerca de 77% dos jogadores já gastaram dinheiro adquirindo DLC.

Interagir socialmente com amigos ou desconhecidos, podendo incorporar personagens pelos quais criamos afinidade, muitas vezes na infância, tem o seu apelo. Quando estes personagens são aqueles admirados por crianças e adolescentes, como o Naruto ou a Ariana Grande, nos deparamos com um marketing bem direcionado e efetivo. O alcance é alargado quando atletas populares entre os jovens (Seeyun ou Kingbr), que têm expressão e sucesso nos eSports, além de influenciadores digitais (BlackoutZ ou Ninja), utilizam o Youtube, com sua enorme base de seguidores, para influenciá-los a partir de um hype constantemente consumido.

A colaboração, o trabalho em equipe, o engajamento e a estratégia são facilitados pela comunicação a partir das ferramentas disponíveis no jogo, como os chats online e a possibilidade de ativação do microfone para falar com todos os jogadores em uma batalha, ou apenas com o seu time e amigos. A exposição dos jogadores a pessoas desconhecidas pode ser bastante significativa, tendo em vista um cenário em que cada batalha conta com até cem jogadores. Nos estudos acadêmicos sobre o tema, discute-se os benefícios e os malefícios destas interações, principalmente envolvendo jovens.

Para além do Fortnite, algumas práticas adotadas pela indústria, em games como o Fifa Ultimate Team (FUT) da Eletronic Arts, causaram polêmica, processos judiciais e influenciaram a movimentação legislativa atual. É o caso das loot boxes, caixas compradas pelos jogadores para obterem recompensas randomizadas de valor variável, ou seja, caixas as quais os itens que podem ser obtidos dependem da sorte dos jogadores[6].  É possível que existam abusos, em particular quando envolvem jogos com mecânicas agressivas the pay-to-win ou quando conteúdos populares só são acessíveis se houver pagamento. No caso do FUT, a multa que havia sido imposta pela autoridade administrativa nos Países Baixos foi revertida em uma vitória da EA. O tema é espinhoso e será explorado nos nossos próximos artigos.

Estas são apenas algumas ferramentas disponíveis aos desenvolvedores. Quando aplicadas na relação comercial envolvendo crianças e adolescentes — indivíduos ainda na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento — gera riscos e, possivelmente, danos em um grau mais acentuado, pela sua imaturidade, menor desenvolvimento de autocontrole e autoestima. 

Celia Hodent, ex-diretora de Experiência do Usuário (UX) na Epic Games, defendeu em entrevista concedida ao jornal francês Le Figaro que o game foi criado objetivando alcançar esse público. A direção artística optou justamente por construir uma aparência caricata e bem-humorada inspirada em filmes com grande apelo para este público[7].

No Brasil, a Constituição de 1988 impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar e promover à criança, ao adolescente e ao jovem seus direitos e garantias fundamentais (artigo 227). O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) de 1990 estabelece os princípios da proteção integral (artigo 2º), da prevalência absoluta dos seus interesses (artigo 4º) e o reconhecimento de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (artigo 6º). Há ainda as disposições do artigo 14 da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) e a Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Esta última, em seu artigo 29, dispõe sobre a faculdade de instalação de mecanismos de controle parental para bloqueio e filtro de conteúdo considerado inadequado para a faixa etária, além de estabelecer o dever coletivo, da esfera pública e privada, de atuar em prol da educação para o ambiente digital e definir boas práticas de inclusão digital de crianças e adolescentes.

No caso específico dos eSports, a Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé), caso se considere os eSports esportes, tem o condão de conferir proteção adicional e incentivar os jovens, na medida em que poderiam receber auxílio financeiro para se formar atletas sob a forma de bolsa aprendizagem (artigo 29, § 4º). No Brasil, há times e profissionais excelentes, e um mercado promissor, a exemplo do Loud, um dos times de eSports com mais seguidores no mundo, que já virou lanche no Burger King, um exemplo de popularidade dos games que transcende o universo tradicional. Todavia, há evidências de que no Brasil o uso problemático dos games supera a média mundial[8]

A indústria dos videogames contribui com o crescimento do mercado cultural, dos esportes e do entretenimento, traz avanços tecnológicos que são vetores de inovação em outros setores, a exemplo da educação, do design e da realidade virtual ou aumentada. Questões ilustrativas desta transversalidade são a proposta de aquisição da Activision-Blizzard (criadora do Call of Duty pela Microsoft), em valores dez vezes maiores se comparado ao que a Amazon pagou pela MGM, detentora da franquia James Bond. Em um sentido inverso ao tradicional, games começaram a aparecer no cinema e na TV, a exemplo do sucesso recente da série The Last of Us. Em breve, a Nintendo abrirá um parque temático do Mario, em Hollywood[9].

É uma indústria com folego renovado, que merece uma atualização da arquitetura jurídica, que deve tratar especificamente do setor, respeitando as diferenças que guarda com os softwares ou com a indústria da música ou do cinema, que confira especial proteção aos consumidores, principalmente às crianças e adolescentes, sem e travar o desenvolvimento econômico e tecnológico. Exploraremos mais desenvolvimentos do assunto nos próximos artigos.


[1] FEDERAL TRADE COMISSION. Fortnite Video Game Maker Epic Games to Pay More Than Half a Billion Dollars over FTC Allegations of Privacy Violations and Unwanted Charges. Washington, D.C., 2022. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2022/12/fortnite-video-game-maker-epic-games-pay-more-half-billion-dollars-over-ftc-allegations. Acesso em 08 jan.2023

[2] DEALESSANDRI, Marie. CLASS-ACTION LAWSUIT AGAINST FORTNITE TO GO AHEAD IN CANADA. Games Industry Biz, [S. l.], 2022. Disponível em: https://www.gamesindustry.biz/class-action-lawsuit-against-fortnite-to-go-ahead-in-canada. Acesso em: 19 jan. 2023. 

[3] EUROPEAN PARLIAMENT. PROTECTING GAMERS AND ENCOURAGING GROWTH IN THE VIDEO GAMES SECTOR | NEWS |. Bruxelas, 2023. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20230113IPR66646/protecting-gamers-and-encouraging-growth-in-the-video-games-sector. Acesso em: 19 jan. 2023.

[4] ROBERTSON, Maya. Fortnite Revenue and Usage Statistics (2022). Mobile Marketing Reads, 3 jan.2023. Disponível em: https://mobilemarketingreads.com/fortnite-revenue-and-usage-statistics-2020/. Acesso em: 21 jan. 2023.

[5] EPIC GAMES. What is the Battle Pass? Where can I learn more? [S.l.]. Disponível em: https://www.epicgames.com/help/en-US/fortnite-c5719335176219/battle-royale-c5719350646299/what-is-the-battle-pass-where-can-i-learn-more-a5720283337115. Acesso em: 25 jan. 2023.

[6] XIAO, L. Y. Breaking Ban: Belgium’s ineffective gamling law regulation of video game loot boxes. University of California Press: Collabra: Psychology, California, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.31219/osf.io/hnd7w. Acesso em: 13 jan. 2023, p. 3.

[7] HODENT, C. The psychology behind the success of Fortnite. [S. l.], 2019. Disponível em: https://uxdesign.cc/the-psychology-behind-the-success-of-fortnite-15ad5d4bb6a4. Acesso em: 02 jan.2023

[8] CHAGAS BRANDÃO, L. et al. Mental health and behavioral problems associated with video game playing among Brazilian adolescents. Journal of Addictive Diseases, [s. l.], v. 40, n. 2, p. 197–207, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1080/10550887.2021.1971941

[9] Disney´s troubles show how technology has changed the business of culture: At 100, the mouse can still roar. But it faces a new kind of rival. The Economist. Londres, 19 jan.2023. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2023/01/19/disneys-troubles-show-how-technology-has-changed-the-business-of-culture. Acesso em 12 jan. 2023.

Autores

  • é pesquisador no Legal Grounds Institute. Doutorando e mestre em Direito pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi), com intercâmbio acadêmico na Universidade do Porto (Portugal).

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