Esqueletização constitucional: "Deus, o que fizemos?"
1 de fevereiro de 2023, 16h24
Robert Lewis, o piloto dos ataques a Hiroshima, retratou em seu diário de horror o que assistiu após o lançamento das bombas atômicas, ilustrando no papel um cogumelo gigante com o seguinte questionamento: "Deus, o que fizemos?".
Estou a rebobinar as revoluções por minuto de 1985, fazendo-se um paralelo com a atual década para tragicamente compreender que há certo tempo "nos chegam gritos da ilha do norte" e observamos, omissos, os "ensaios pra dança da morte". (RPM, 1985). Esse enredo foi publicizado, recentemente, com as cenas deploráveis de nacionais submetidos ao desleixo mais desumano que uma República poderia aceitar, eis que a situação dos yanomamis era demanda recorrente e sabida dos órgãos federais.
O tratamento dispensado às comunidades indígenas, não de hoje, é algo preocupante, considerando que as sucessões de governos — inclusive o ex e agora atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando autorizou Belo Monte (8/2010) —, não foi capaz de se garantir o atendimento digno às singularidades culturais e aos demais aspectos inerentes a qualquer ser humano. Notadamente, nos últimos anos, houve um agravamento da política indigenista no Brasil, sobretudo na execução de políticas públicas e pelo tratamento discursivo-ideológico promovido pelo ex-governo.
A Lei Fundamental de 1988 foi gigante ao reservar um capítulo aos indígenas, deixando claro que compete à União demarcar as terras que tradicionalmente estivesse sendo ocupada pelos povos originários, além de proteger e fazer respeitar os seus bens. (artigo 231). E o bem maior a ser protegido pela civilidade — o próprio indivíduo – foi esquecido e deixado de lado.
Essa situação é dissecada pela compreensão de como a Constituição Federal foi perdendo densidade corporal. A esqueletização constitucional foi deflagrada e fomentada pelo descumprimento paulatino de seus mandamentos por aqueles que detinham competência de agir, ocasionando-se, por ações, omissões e narrativas, uma verdadeira erosão da consciência cultural e constitucional.
Partes vitais de nossa Constituição foram desconsideradas e, ao se fazer isso, as comunidades indígenas foram diretamente afetadas. As terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, mesmo sendo propriedade da União (artigo 20, XI), não foi capaz de movimentar o menor interesse protetivo pelo ente federal, tanto que por meses o avanço de atividades ilícitas, a exemplo do garimpo, não tiveram qualquer enfrentamento efetivo e, enviesadamente, coaptaram o apoio das autoridades públicas. Aliás, estamos longe de garantir a imprescindível preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e ao ambiente adequado para a reprodução física e cultura das comunidades indígenas, que são características essenciais à conceituação de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários. (artigo 231, §1º).
O condômino legislativo e administrativo para cuidar da saúde, como imperativo à vida humana, também não compadeceu as autoridades competentes, considerando que a combinação normativa da CF/88 com a Lei 8.080/90 (SUS) criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, deixando assentando que "caberá à União, com seus recursos próprios, financiar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena" (artigo 19-C) e, esta, "instituirá mecanismo de financiamento específico para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sempre que houver necessidade de atenção secundária e terciária fora dos territórios indígenas". (artigo 19-E, §1º).
Recordemo-nos, ainda, que a inclusão dos indígenas no grupo prioritário do Programa Nacional de Imunização só ocorreu por decisão da Suprema Corte, na ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
E, já quando não há mais carne, suportamos a frustração de saber que a dignidade da pessoa humana, como fundamento da Constituição, logo em seu artigo 1º, falhou na obviedade de considerar que o indivíduo (mulheres, homens, crianças) é um fim em si mesmo. Certo que isso é uma premissa universal, mas nos parece, que em sociedades que possuem uma parcela considerável de descendência indígena, paradoxalmente, os povos originários estão a um degrau abaixo, vistos como entraves ao "desenvolvimento" do país.
Até mesmo quem defende uma regulamentação da atividade econômica em terras indígenas deve-se lembrar que a ordem econômica e financeira, resguardada em nossa Constituição, é fundada a assegurar a existência digna.
Essa esqueletização, que antes fosse só do texto constitucional, repercute em corpos humanos. Se antes tínhamos os juristas do horror, a legitimar legal e constitucionalmente as atrocidades do nazismo, devemos estar alerta para qualquer argumento que minimamente busque, juridicamente, trazer alguma fagulha de coerência e aceitação às cenas insuportáveis dos yanomamis. O abandono do Estado brasileiro direciona-se, conscientemente, à fulminação do aspecto cultural dos povos indígenas, eis que o desenvolvimento e manutenção de sua cultura, de seu modus vivendi e de seu pensamento singular precisam ser nutridos constitucionalmente.
É de se sustentar que essa esqueletização da Constitucional, terminologia própria deste artigo em razão da situação dos indígenas yanomamis, caracteriza-se pela conjugação de dois institutos já conhecidos na teoria constitucional, a saber: fenômeno da erosão da consciência constitucional, que consiste na "desvalorização funcional da Constituição escrita, ou seja, a omissão dos poderes públicos desvaloriza a função" (LOEWENSTEIN, 1983) e o Estado de Coisas Inconstitucional, que se caracteriza pela "violação massiva e generalizada de direitos e garantias fundamentais, por ação e omissão de diversos órgãos públicos responsáveis por sua tutela" (RODRIGUEZ GAVARITO E RODRIGUEZ FRANCO, 2019).
Essas violações geraram consequências previsíveis à desagregação e à perda cultural, de modo a interromper a vida em seu aspecto físico — em alguns casos —, condicionante à vida em seu aspecto cultural. Por isso que o preâmbulo da Declaração de São José sobre Etnocídio e Etnodesenvolvimento afirma que "o problema da perda de identidade tem sido cada vez mais denunciado em diferentes fóruns internacionais acerca das populações indígenas da América Latina. Este complexo processo, que tem raízes históricas, sociais, políticas e econômicas, foi classificado como etnocídio".
Após a vergonha internacional, vem à tona a transferência de responsabilidade, inclusive com argumentos de que as comunidades são de difícil acesso — prejudicando a execução de ações coordenadas pela União —, quando, atualmente, observamos toda a competência logística das Forças Armadas a se fazer chegar alimentos e remédios efetivamente aos Yanomamis. Não me parece que o Estado Brasileiro, com as Forças Armadas, referência em missões de paz e logística, em razão da distância das comunidades indígenas, perca em poderio para os garimpeiros ilegais que fazem chegar, nestas mesmas localidades, todos seus maquinários e equipamentos, sem, notadamente, terem os mesmos recursos financeiros, logísticos e de pessoal que o Poder Público.
Infelizmente, com aquela mesma imagem de desumanidade que Robert Lewis retratou, estamos a observá-las, das redes abertas o horror à pele e osso de seres humanos e a fazer o mesmo questionamento: "Deus, o que fizemos?"
______________________
Referências
La Unesco y la lucha contra el etnocidio DECLARACIÓN DE SAN JOSÉ diciembre de 1981.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. p. 222, 1983, Ariel, Barcelona;
RODRIGUEZ GARAVITO, César; RODRIGUEZ FRANCO, Diana. Cortes y cambio social — cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad Dejusticia, 2010. Cf. Também CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2019.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!