Opinião

Internet como direito fundamental: indenizações por cortes indevidos

Autor

  • João Vitor Rossi

    é advogado pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade de Araraquara bacharel em Direito pelo Centro Universitário Padre Albino e em Administração pela Universidade de Uberaba.

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29 de dezembro de 2023, 17h16

Existe um posicionamento assente nos tribunais de que o corte ou a suspensão indevida de um serviço essencial devidamente quitado gera danos morais presumidos, pois não é justo que se prive o consumidor adimplente de algo vital e indispensável, cito:

(…) O corte indevido do fornecimento de telefone fixo, tv a cabo e internet, por falha da própria empresa de telefonia, acarreta dano moral, passível de indenização. A fixação do valor pecuniário da indenização a título de danos morais deve ser realizada pelo Julgador, levando-se em consideração as peculiaridades do caso concreto e a extensão dos prejuízos gerados.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0015.16.001689-3/001, Relator(a): Des.(a) Domingos Coelho , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 31/01/2018, publicação da súmula em 09/02/2018).

Em se tratando do serviço de internet, não há dúvidas de que o mencionado é considerado essencial à vida e à dignidade humana, tanto é verdade que as telecomunicações são tipificadas dessa forma no artigo 10º, VII da Lei de Greve.

Além de constar no rol da Lei de Greve, cumpre esclarecer que o caráter essencial do serviço de internet e telecomunicações foi reforçado recentemente pelo Supremo no Tema 745 com Repercussão Geral, uma vez que a Suprema Corte entendeu que o ICMS cobrado sobre o serviço ora estudado deveria ser limitado à alíquota geral com base no princípio da seletividade em função da essencialidade, cito:

Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços. (STF Tema 745).

Reforçando o ora debatido, argumenta-se que em 2022 o legislador editou a Lei Complementar 194/2022 que instituiu o artigo 18-A no Código Tributário Nacional, reafirmando que os serviços de comunicação são essenciais para fins de tributação do ICMS, vejamos:

Art. 18-A. Para fins da incidência do imposto de que trata o inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo são considerados bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos.

Como se não bastasse o arcabouço legal e jurisprudencial recente, não podemos deixar de fundamentar o caráter essencial do serviço de internet no simples fato dele ser indispensável à vida na sociedade moderna e à dignidade humana, estando inclusive ligado ao direto exercício de inúmeros direitos fundamentais como o direito à liberdade de expressão, ao livre exercício profissional, à educação e outros mais, cito:

a Internet pode ser considerada uma garantia fundamental, ou seja, um mecanismo que garante a efetivação de outros direitos. Os direitos políticos, por exemplo, que são a base do Estado Democrático estão sendo exercidos atualmente tendo a internet como ponto focal. Os espaços institucionais tradicionais vêm perdendo espaço.

(…)

Conclui-se, portanto que o acesso à Internet é um direito fundamental, importantíssimo para o desenvolvimento humano e para uma vida plena em sociedade. (POMIN; ESPÍRITO SANTO, 2021, p. 413/414)[1].

O reconhecimento da Internet como direito fundamental segue lado a lado com a evolução histórica e a mutabilidade que o direito possui, alterando-se de acordo com a realidade e as necessidades sociais. Além do mais, conclui-se que só por meio da verificação da Internet como um direito fundamental é que será possível empreender esforços para o desenvolvimento de uma inclusão, cidadania e educação digitais sólidas, capazes de tornar a vida do cidadão brasileiro mais competitiva e digna. (FERREIRA et al., 2014, p. 5)[2].

Essencialidade é a qualidade daquilo que é essencial. E essencial, no sentido em que se está aqui utilizando essa palavra, é o absolutamente necessário, o indispensável. Assim, muito fácil é concluirmos que o critério indicativo da essencialidade das mercadorias, para fins de seletividade do ICMS, só pode ser o da necessidade ou indispensabilidade dessas mercadorias para as pessoas no contexto da vida atual em nosso País. Mercadoria essencial é aquela sem a qual se faz inviável a subsistência das pessoas, na comunidade e nas condições de vida atualmente conhecidas entre nós.” (MACHADO, 2008, p. 51-52).[3]

O conceito da ‘essencialidade’ não deve ser interpretado estritamente para cobrir apenas as necessidades biológicas (alimentação, vestuário, moradia e tratamento médico), mas deve abranger também aquelas necessidades que sejam pressupostos de um padrão de vida mínimo decente, de acordo com o conceito vigente da maioria.” (TILBERY, 1990, p. 3.030)[4].

Portanto, sendo a internet indispensável para a vida na sociedade atual, ocorrendo o corte sob a alegação de inadimplência de um consumidor cujo serviço encontra-se corretamente quitado, não há o que se falar em mero aborrecimento, nascendo a obrigação do fornecedor em indenizar pelos danos extrapatrimoniais presumidos, pouco importando para a configuração do dano moral o tempo que durou o corte.

Em suas defesas, alguns fornecedores alegam equivocadamente que o corte foi por um dia, algumas horas, ou poucos dias. Na realidade, o tempo do corte irregular de um serviço essencial quitado, como dito acima, não atinge diretamente a existência do dano moral, mas a sua extensão do dano para fins de quantificação dos valores.

Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, corretamente, reduziu de R$ 40.000,00 para R$ 10.000,00 os valores a título de danos morais pelo corte indevido de serviço essencial de energia que durou apenas três horas, cito:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/1973 NÃO CONFIGURADA. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. CORTE INDEVIDO PELO PERÍODO DE TRÊS HORAS. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DANOS MORAIS FIXADOS EM R$ 40.000,00. EXORBITÂNCIA. REVISÃO. POSSIBILIDADE.

(…)

  1. Na linha dos precedentes jurisprudenciais do STJ, as indenizações em valor similar ao arbitrado no presente feito (R$ 40.000,00) têm sido reservadas a hipóteses em que o dano moral decorre de grave ofensa à integridade física do sujeito de direito, contemplando desde hipóteses de amputação definitiva de membro do corpo até o óbito. 5. No caso concreto, por maiores que tenham sido os transtornos e as frustrações experimentadas pelo recorrido – que teve sua energia elétrica cortada indevidamente pelo período de três horas -, tal fato não pode ser equiparado à dor e ao sofrimento decorrentes de lesões graves e permanentes ou mesmo pela perda inesperada e acidental de um ente familiar. 6. Indenização por danos morais reduzida para R$ 10.000,00 (dez mil reais), diante da exorbitância do montante fixado pelo juízo a quo. 7. Recurso Especial parcialmente provido. (STJ, REsp n. 1.447.290/PE, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21/6/2016, DJe de 6/9/2016 – grifei).

Logo, quanto maior o período no qual o consumidor foi privado do serviço essencial, maior deverá ser o valor indenizatório, restando claro que o fato do corte durar dias ou horas não afasta o dever de indenizar, tão somente impactará no valor reparatório, não sendo razoável a quantia de R$ 40.000,00 por três horas de corte, sendo correta a postura do STJ em reduzir para R$ 10.000,00.

Além do tempo de privação indevida, outras circunstâncias fáticas devem ser observadas na fixação do valor dos danos morais. No tocante ao serviço essencial de internet, que é o foco deste artigo, o Tribunal de Justiça de São Paulo possui um acórdão condenando uma fornecedora a indenizar uma empresa em R$ 20.000,00 por tê-la privado indevidamente do serviço de internet indispensável para o exercício de sua atividade comercial, cito:

Quanto aos danos morais, prevalece atualmente que o serviço de internet ostenta natureza essencial, ainda mais considerada a linha de atividade da autora, de modo que, embora não tenha havido abalo à sua imagem perante clientes e fornecedores, a compensação é devida a fim de se conferir caráter sancionatório à conduta ilegal da requerida.

Neste sentido, cumpre apenas analisar o valor da indenização, que, a um só tempo, deve ser razoável e proporcional, de modo a compensar a vítima pelos danos experimentados, dissuadir o causador do ilícito de nele reincidir e evitar a configuração de enriquecimento sem causa.

No caso, a fixação da indenização em R$ 20.000,00, tendo em vista a natureza do ilícito, bem como o porte da autora, mostra-se suficiente, proporcional e razoável para reparar os percalços narrados, devendo, portanto, ser mantida neste patamar. (TJSP;  Apelação Cível 1074568-73.2014.8.26.0100; Relator (a): Pereira Calças; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2016; Data de Registro: 19/09/2016).

O mesmo Tribunal possui inúmeros julgados fixando o valor de R$ 15.000,00 para a interrupção indevida dos serviços de internet, seguida de cobranças indevidas (débito quitado e cobrado) e a via crucis do consumidor, vejamos:

Recurso Inominado. Inexigibilidade do débito. Interrupção indevida de serviços de telefonia móvel. Inversão do ônus acertada. Serviços essenciais. Via crucis do consumidor. Danos morais configurados. Valor indenizatório de R$ 15.000,00 em consonância com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Sentença confirmada (art. 46 da Lei nº 9.099/95). Negado provimento.

(…)

Quanto aos danos morais, os precedentes desta Turma consolidaram que, em caso de interrupção indevida do serviço essencial, somado à cobranças indevidas e verdadeira via crucis do consumidor para resolução do problema. Na espécie, mostra-se justa a indenização por dano moral fixada em R$ 15.000,00. Nesse sentido: Recursos inominados nº 1002913-60.2017.8.26.0189 (em julgamento de 01/12/2017), 1006082-55.2017.8.26.0189 (em julgamento de 06/04/2018) e 1000027-54.2018.8.26.0189 (em julgamento de 14/05/2018).  (TJSP;  Recurso Inominado Cível 1002835-32.2018.8.26.0189; Relator (a): Renato Soares de Melo Filho; Órgão Julgador: 1ª Turma Cível e Criminal; Foro de Fernandópolis – Vara do Juizado Especial Cível e Criminal; Data do Julgamento: 05/10/2018; Data de Registro: 09/10/2018 – grifei).

Portanto, não há dúvidas de que quanto maior for a demora no restabelecimento e o abuso por parte do fornecedor (ofender o consumidor, não atender as ligações, submetê-lo ao jogo de empurra, atribuir indevidamente culpa à vítima e outras situações humilhantes), maior deverá ser o valor da indenização.

E que não venha o provedor de internet imputar eventual responsabilidade pela não verificação do pagamento ao banco ou ao agente credenciado (culpa de terceiro), pois é firme o entendimento quanto ao ônus das concessionárias de verificar o correto adimplemento antes de tomar a extrema medida de corte:

Declaratória de inexistência de débito c.c. indenizatória por danos morais. Serviços de telefonia (públicos, contínuos, essenciais e universais, mas não gratuitos). Linha cortada pela operadora sem justo motivo. Consumidor que não estava inadimplente. Indiscutível a validade do pagamento feito, sem atraso, em agente credenciado, que deveria ser melhor conferido pela tão poderosa empresa. Tutela antecipada concedida para restabelecimento da linha. Recurso provido parcialmente, apenas para reduzir o valor da indenização. (TJSP; Apelação Cível 0004990-34.2015.8.26.0220; Relator (a): Campos Petroni; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guaratinguetá – 3ª Vara; Data do Julgamento: 08/11/2016; Data de Registro: 09/11/2016).

Portanto não pode a concessionária fugir de sua responsabilidade alegando culpa do banco, com quem o consumidor não contratou e não pode ter o seu direito à indenização limitado ou retirado.

Diante do exposto, o presente escrito conclui que o corte indevido do serviço de internet corretamente adimplido gera danos morais presumidos, pouco importando o tempo (horas, dias ou meses), sendo certo que o período de corte será utilizado somente para fins de quantificação do dano.

No mais, não há dúvidas de que o fornecimento de internet é essencial nos termos da doutrina, do Tema 745/STF, da LC 194/2022 que instituiu o artigo 18-A no CTN e do artigo 10º, XII da Lei de Greve.


[1] POMIN. Andryelle Vanessa Camilo; ESPÍRITO SANTO. Rodrigo Mercedes do. O ACESSO À INTERNET COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL. Revista Ibero- Americana de Humanidades, Ciências e Educação- REASE Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação. São Paulo, v.7.n.4.abr. 2021. ISSN – 2675 – 3375, p. 413/414.

[2] FERREIRA, Gustavo Lana et al. A INTERNET COMO DIREITO FUNDAMENTAL. Revista Eletrônica de Ciências Jurídicas, v. 1, n. 2, 2014.

[3] MACHADO, Hugo de Brito. O ICMS no fornecimento de energia elétrica: questões da seletividade e da demanda contratada. In:Revista dialética de direito tributário, n. 155, ago. 2008, p. 51-52.

[4] TILBERY, Henry. O conceito de essencialidade como critério de tributação. Revista Direito Tributário Atual v. 10. São Paulo, 1990, p. 3.030.

Autores

  • é advogado, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade de Araraquara, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Padre Albino e em Administração pela Universidade de Uberaba.

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