Opinião

Aplicação de multa por abandono de causa e a Lei nº 14.752 de 2023: há retroatividade?

Autores

  • é advogada mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) especialista em Direito Penal Econômico e Processo Penal pela PUC-PR membro do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da PUC-Campus Londrina e associada ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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  • é advogado criminalista especialista em garantías constitucionales de la investigación y la prueba en el proceso pela Universidad de Castilla-La Mancha em Toledo (Espanha) e especialista em crimen organizado corrupción y terrorismo pela Universidade de Salamanca (Espanha).

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22 de dezembro de 2023, 18h24

A redação do artigo 265 do Código de Processo Penal, após a alteração pela Lei nº 11.719 de 2008, apenas veio a ser modificada em dezembro de 2023 a partir da Lei nº 14.752, sancionada no último dia 12. Ocorre que, com a promulgação da referida lei, não há mais previsão de aplicação de multa ao advogado e advogada que abandonar a causa nos termos do mencionado artigo, pois a competência sancionatória é do respectivo órgão de classe, qual seja, da Ordem dos Advogados do Brasil.

Sendo assim, faz-se necessário questionar se deverá ou não haver retroatividade da nova norma — no tocante à exclusão da multa — a fim de abranger-se aqueles casos em que o profissional está sendo processado ou já foi condenado ao pagamento de multa por incorrer na hipótese do artigo 265 do CPP.

Como se sabe, o artigo 133 da Constituição dispõe sobre a advocacia ser indispensável à administração da justiça. Daí então a norma do artigo 265 do CPP, que, de acordo com Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, exige motivos de alta relevância para a recusa ou retirada do advogado do caso, em razão do prejuízo que poderá ser causado à jurisdição [1].

No entanto, já ocorreram discussões acerca da (in)constitucionalidade da multa tratada naquele artigo (ADI 4.398/DF), embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a constitucionalidade e o Superior Tribunal de Justiça adotado, igualmente, o posicionamento de cabimento da multa [2]. Contudo, com a promulgação da Lei nº 14.752 de 2023, caberá exclusivamente à Ordem dos Advogados do Brasil a competência para discutir infração ética relacionada ao exercício da advocacia.

É neste contexto, então, que surge a questão ora proposta neste breve artigo: a nova previsão, que exclui a aplicação de multa pelo Poder Judiciário, deverá retroagir para atingir aqueles casos em que ao advogado e advogada houve a imposição de multa? Isso porque, há agora uma situação mais benéfica àquele que estava sendo processado em razão do abandono de causa ou que já foi condenado pela citada conduta.

Poder-se-ia alegar que, por se tratar de dispositivo previsto na legislação processual penal, não haveria que se falar em retroatividade por conta da disposição do artigo 2º do CPP e do princípio do tempus regit actum. Entretanto, a referida norma, em decorrência da previsão de aplicação de multa (anteriormente), tinha natureza sancionatória e, por consequência, material. Sendo assim, o dispositivo em questão tem natureza mista, porquanto envolve aspecto processual e material.

Acerca das normas de natureza mista, Gustavo Badaró, abordando a corrente ampliativa, leciona que:

“[…] a corrente ampliativa considera que são normas processuais de conteúdo material aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meios de provas e eficácia probatório, […], todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.” [3]

Nesse sentido, a norma contida no artigo 265 do CPP tem por conteúdo matéria que constitui direito do cidadão, de modo que a questão da multa é, portanto, de natureza material. Acrescente-se, ainda, também segundo Gustavo Badaró, que “todas as normas que disciplinam e regulam ampliando ou limitando, direitos e garantias pessoais constitucionalmente assegurados, mesmo sob a forma de leis processuais, não perdem o seu conteúdo material” [4].

Assim, considerando que a partir da nova lei não há mais multa a ser aplicada pelo Judiciário, por consequência, ampliou-se direito dos advogados e advogadas. Por conseguinte, tratando-se o artigo 265 do CPP de norma de natureza mista, que, sob o aspecto material, é mais benéfica, deve retroagir e aplicar-se aos referidos casos, excluindo-se, então, as condenações.

Finalmente, há que se destacar que, embora possa ser alegada a irretroatividade da norma em discussão, sob o argumento de que teria natureza sancionatória administrativa e não penal, ainda assim a retroatividade deve ser reconhecida, pois a retroatividade da lei mais benéfica é princípio que rege não apenas o Direito Penal, mas também o âmbito administrativo que, dentro de seus limites legais, igualmente tem poder sancionador. Portanto, do artigo 5º, inciso XL, da CF/88, decorre um princípio implícito de retroatividade da lei mais benéfica.

Inclusive, nesse sentido, cumpre destacar o seguinte trecho do voto da ministra Regina Helena Costa no Recurso Especial nº 1.152.083/MT, que, embora tratando de questão tributária, o raciocínio também pode ser aplicado ao que se discute neste artigo:

“Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.

Constato, portanto, ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.”

Portanto, a reflexão proposta é no sentido de que deve haver retroatividade da nova redação do artigo 265 do Código de Processo Penal, em decorrência da natureza mista desta norma e por constituir situação mais benéfica aos advogados e advogadas.

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Referências
BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

BRASIL. Lei nº 14.752, de 12 de dezembro de 2023.  Altera o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar), para disciplinar o caso de abandono do processo pelo defensor. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14752.htm. Acesso em: 15 dez. 2023.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paul

[1] PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2021, p. 1476.

[2] Vide por exemplo: Agravo Interno no Recurso em Mandado de Segurança n. 58.366-SP, STJ, 5a Turma, unânime, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 19.3.2019, publicado no DJ em 25.3.2019. Embargos de Declaração no Agravo Regimental no RMS no 46.227-SP, STJ, 6a Turma, julgado em 27.9.2016, publicado no DJ em 10.10.2016.

[3] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 95.

[4] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 95.

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