Combustíveis e crimes contra a ordem econômica na Lei 8.176/91
17 de dezembro de 2023, 13h18
A produção legislativa penal brasileira, de maneira geral, nunca foi conhecida por primar pela técnica, estando muito longe ainda de uma racionalização global do seu vasto catálogo de legislação penal extravagante, onde tipos penais quase folclóricos (como o molestamento de cetáceo previsto na Lei 7.643/87) convivem com outros de conteúdo totalmente aberto (veja-se o crime de praticar atos preparatórios de terrorismo previsto no artigo 5º da Lei 13.260/16), numa sucessão de leis penais movidas a uma “emergência” perene, com pouca ou nenhuma participação da comunidade jurídica na sua elaboração, no mais das vezes.
Nesse contexto, um dos exemplares que melhor representam tanto esse modelo de legislação penal de “emergência” quanto do cenário mais amplo de contínua expansão do direito penal e sua tendência de administrativização é dado pela Lei 8.176/91, especialmente pelo seu artigo 1º, que define modalidades de crimes contra a ordem econômica relacionados ao mercado de combustíveis.
![](https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/21/justica-determina-retomada-distribuicao1.jpeg)
A discussão parlamentar, que durou apenas uma semana, nos dá uma ideia do nível de técnica legislativa apresentada. Assim, talvez o inciso I do artigo 1º da lei seja um dos casos no ordenamento jurídico em que mais se lançou mão do instituto da norma penal em branco e em que fica mais evidente a penalização direta do descumprimento de norma de caráter administrativo, quando afirma que “constitui crime contra a ordem econômica: I – adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei“.
Ocorre que, no Brasil, a entidade responsável pela regulação da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis, desde a edição da Lei 9.478/97, é a Agência Nacional do Petróleo, que possui em vigor — segundo compilação realizada na Portaria ANP 141/2022 — mais de 442 atos normativos, entre portarias, resoluções e instruções. Isso sem contar a Lei 9.847/99 e o Decreto-lei 2.953/99 que, ao definirem o procedimento administrativo e as sanções para o caso de infrações, também criam modalidades infracionais.
O que nos traz à pergunta: será que toda e qualquer infração administrativa na indústria e mercado de combustíveis atrai a incidência do tipo penal previsto na lei? Por certo que não, sendo mais uma vez o caso, como lembra Diéz Riopllés (2004), de fazer o trabalho pírrico de buscar princípios limitadores na aplicação do direito penal que, na sua origem, não é produzido de maneira racional.
É preciso uma interpretação que leve em conta os princípios de intervenção mínima, de fragmentariedade e de subsidiariedade do Direito Penal, princípios estes que não são apenas aplicáveis quando da elaboração da norma legislativa, senão também em sua aplicação diária ao caso concreto, que afirmam que o Direito Penal não deve ser chamado a proteger “qualquer lesão a qualquer bem jurídico, mas tão somente as lesões mais graves aos bens jurídicos mais relevantes” (Junqueira; Vanzolini, 2021, p. 47). De tal sorte, só deve ser invocada a tipicidade criminal em último caso, quando a esfera de proteção anterior se mostrar comprovadamente insuficiente, legal e materialmente, com o apontamento pelo acusador e pelo magistrado da forma pela qual o arcabouço administrativo exige o socorro da instância penal, e como as provas carreadas aos autos demonstram a ofensividade concreta da conduta.
Diante dessa perspectiva, olhando o bem jurídico erigido para proteção pelo legislador, é evidente que a infração à grande maioria das normas editadas, que abrangem dos mais variados assuntos, não tem capacidade de atingir seriamente a ordem econômica, devendo ser relegada à atuação administrativa, extensamente disciplinada também em lei ordinária, nos supracitados Decreto-lei 2.953/99 e Lei 9.847/99.
Aliás, e como argumento a apoiar o que aqui defendemos, ressalte-se que ambos os diplomas legislativos supracitados (que são praticamente idênticos), depois de discorrerem longamente sobre os vários tipos de infrações possíveis em sede administrativa, seja disciplinados na própria lei ou em ato regulamentar, afirmam o seguinte nas suas disposições finais:
“Constatada a prática das infrações previstas nos incisos V, VI, VIII, X, XI e XIII do art. 3º desta Lei, e após a decisão definitiva proferida no processo administrativo, a autoridade competente da ANP, sob pena de responsabilidade, encaminhará ao Ministério Público cópia integral dos autos, para os efeitos previstos no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, nas Leis nos 8.078, de 11 de setembro de 1990, 8.884, de 11 de junho de 1994, e 8.176, de 8 de fevereiro de 1991, e legislação superveniente” [1]
Ora, uma interpretação que defenda que qualquer infração às normas regulamentares já caracteriza crime contra a ordem econômica tornaria o presente dispositivo inútil, já que então todos os procedimentos administrativos deveriam ser reportados pela autoridade administrativa à polícia ou ao Ministério Público, sob pena de prevaricação.
No entanto, partindo-se do velho brocardo de que não existem palavras inúteis na lei, e de que toda interpretação normativa deve ser sistêmica, queremos crer que o dispositivo não é aleatório, senão que trata-se de critério estabelecido pelo próprio legislador para reafirmar a excepcionalidade das condutas que tem relevância penal, inclusive contemplando a necessidade de esgotamento prévio da via administrativa.
Bem observado, trata-se mesmo de dispositivo muito semelhante ao artigo 83 da Lei 9.430/96, que trata do envio de representação fiscal para fins penais ao Ministério Público também somente após o fim do procedimento administrativo. Ambos disciplinam as hipóteses de “representação”, definida tal como a obrigação de comunicação à autoridade na presença de ilegalidade, imposta ao servidor público pelo artigo 116 da Lei 8.112/90. Ambos também deixam clara que o caráter da representação é “para fins penais”, visto a referência expressa às leis criminalizadoras cujos efeitos se esperam produzir a partir da representação.
A diferença, que é o que nos interessa, é que no artigo 17 da Lei 9.847/99 (e seu correlato no Decreto-lei 2.953/99) delimita-se que apenas algumas condutas, ali elencadas, geram à autoridade fiscalizadora o dever de representação, devendo assim mesmo esperar-se o término do procedimento administrativo que as apure[2]. Conclui-se pois, a contrario sensu, que as demais infrações devem resolver-se administrativamente, não tendo aos olhos da lei relevância para a geração de efeitos penais.
Esta, a nosso ver, é a complementação da norma penal em branco presente no artigo 1º, I, da Lei 8.176 que melhor adequa-se principiologicamente e sistemicamente frente a normas de igual relevo em nosso ordenamento, devendo ser utilizada como limitadora da ação punitiva estatal, reservada apenas para os casos de real afronta à ordem econômica nacional.
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Referências
BRASIL. Portaria ANP nº 141, de 1º de setembro de 2022. Disponível em: <https://atosoficiais.com.br/anp/portaria-anp-n-141-2022-divulga-a-listagem-dos-atos-normativos-da-agencia-nacional-do-petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis-vigentes-em-1o-de-agosto-de-2022-em-cumprimento-ao-disposto-no-art-19-a-do-decreto-no-10-139-de-28-de-novembro-de-2019?origin=instituicao&q=141>. Acesso em 1º nov 2023.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Dossiê de tramitação do PL 6134/1991. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1146611&filename=Dossie-PL%206134/1991>. Acesso em 1º nov 2023.
JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patricia. Manual de direito penal: parte geral – 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. [e-book]
Díez Ripollés, José Luis. Presupuestos de un modelo racional de legislación penal. Revista peruana de ciencias penales, Lima, n. 15, p. 155-198, 2004.
SILVA, José Geraldo; BONINI, Paulo Rogério; LAVORENTI, Wilson (coord.). Leis penais especiais anotadas. 11. ed. Campinas: Millennium Editora, 2010.
Notas
[1] O texto é o mesmo tanto no Decreto-lei 2953/99 quanto Lei 9847/99. A diferença entre eles é que no Decreto o artigo é o 35, fazendo referências às infrações previstas no art. 28 do diploma, enquanto na Lei o artigo é o 17, com as infrações constando do art. 3º, que são idênticas nas duas normativas.
[2] “A exigência do exaurimento do processo administrativo para efeito de encaminhamento da representação fiscal ao Ministério Público é disciplina que, em vez de afrontar, privilegia os princípios da ordem constitucional brasileira e se mostra alinhada com a finalidade do direito penal enquanto ultima ratio.” (STF, ADI 4980, Rel. Min Nunes Marques, DJ 10/03/2022)
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