Opinião

O potencial deletério da teoria da causa madura encampada pelo CPC de 2015

Autor

12 de dezembro de 2023, 11h18

Como se sabe, o artigo 489, §1º, do Código de Processo Civil, representa uma drástica mudança de paradigmas no campo da processualística nacional. O princípio do “livre convencimento motivado”, edificado a partir de interpretação do artigo 131 do CPC de 1973, deu lugar ao que hoje se denomina “dever de fundamentação substancial das decisões”, segundo o qual, sinteticamente, cumpre ao julgador enfrentar todos os argumentos capazes de infirmar a conclusão por ele adotada. Essa evolução legislativa, em verdade, resulta do propósito de materialização das garantias constitucionais de índole processual.

Paralelamente a essa premissa, cediço que a norma processual vigente reflete nítida evolução havida também no campo da teoria da causa madura (artigo 1.013, §3º). Com efeito, percebe-se ter o legislador optado pelo alargamento do rol de hipóteses autorizativas para o julgamento do mérito da apelação — quando tomado em comparação o dispositivo correspondente no Código Buzaid (artigo 515, §3º) —, permitindo-se agora o julgamento do mérito do recurso inclusive a partir da decretação da “nulidade de sentença por falta de fundamentação” (inciso IV); cuida-se de providência legislativa que busca mais celeridade e economia.

A aplicação indiscriminada desse permissivo, entretanto, pode gerar relevantes prejuízos, inclusive de natureza constitucional.

Com efeito, em primeiro lugar, a norma em si é polêmica, pois, ao autorizar que o órgão revisor delibere sobre a questão de fundo do apelo mesmo constatando a nulidade da decisão recorrida por carência de fundamentação, desprestigia os juízos de primeiro grau. Por via transversa, passa-se a ideia de indiferença diante do que seria o expresso posicionamento do julgador de piso acerca da matéria controvertida.

Segundamente, a adoção dessa metodologia de julgamento desestimula a observância do artigo 489, §1º, do CPC por parte dos julgadores de primeira instância, inclusive porque, nesse ambiente, não há espaço para a devolução dos autos à origem para fins de correção do vezo, o que constituiria o principal instrumento de caráter pedagógico. Inclusive, não bastasse isso, observa-se que, hodiernamente, os órgãos de segundo grau, quando muito, têm reconhecido expressamente a ausência de fundamentação da sentença, porém, sem decretar sua nulidade, ao revés do que determina a lei e recomenda a doutrina  [1], não se implementando, assim, o que seria uma segunda e importante ferramenta instrucional.

Ainda, o mais grave: aplicando-se essa “nova versão” da teoria da causa madura nas ditas circunstâncias, remanesce competente para uma válida deliberação sobre fatos e provas apenas o órgão de segunda instância — porquanto impossibilitada a discussão sobre essas nuances em sede de recurso excepcional —, o que caracteriza patente violação ao princípio do duplo grau de jurisdição — isso no espaço onde esse postulado mais deveria vingar. É certo, a propósito, que uma decisão definitiva de mérito formalmente íntegra prolatada já em primeira instância propiciaria o enriquecimento dos debates, em franca homenagem ao contraditório, a partir do que se constata que a aplicação incauta do comando do artigo 1.013, § 3º, IV, do CPC gera prejuízos também de ordem constitucional.

Como visto, esse autorizativo legal, embora forjado à luz de propósitos nobres, pode representar grave ameaça a valores basilares do ordenamento jurídico pátrio, urgindo, portanto, que, na ausência de ajustes providenciados pelo próprio legislador, doutrina e jurisprudência trabalhem em prol do desenvolvimento de uma metodologia de aplicação desse procedimento que compatibilize todos esses postulados. Afinal, celeridade e economia, como princípios que são, não se impõem diante de garantias constitucionais, algo comezinho, que, inobstante, parece ter passado ignorado, novamente.

 

[1] Prescreve o enunciado nº 307 do FPPC: “(arts. 489, §1º, 1.013, §3º, IV) Reconhecida a insuficiência da sua fundamentação, o tribunal decretará a nulidade da sentença e, preenchidos os pressupostos do §3º do art. 1.013, decidirá desde logo o mérito da causa. (Grupo: Competência e invalidades processuais)”.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!