Desmonte da Previdência e aniquilamento do Direito do Trabalho
8 de dezembro de 2023, 18h21
Não de agora, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo, monocrática ou turmariamente, por cassar decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo de emprego.
As decisões, em regra, baseiam-se num princípio inexistente na Constituição, que é o da “livre iniciativa”. Adotando posição que sequer os liberais ingleses do século 18 adotariam sem se envergonhar, atestam, dia após dia, que a liberdade de contratação do trabalho é suprema, como a corte. Intocável, e as escolhas devem ser mantidas.
A Reclamação 62.431, de relatoria do ministro Nunes Marques, cassou o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho que manteve a sentença de vínculo de emprego entre um repórter esportivo e a rede de comunicação Bandeirantes.
Uma primeira observação: a “reclamação”, como prevista no CPC, exige contraditório e permite, ainda, a intervenção de qualquer pessoa. A práxis do STF, baseado em seu regimento, no particular, ilegal — porque contraria norma cogente, o CPC — nunca abre contraditório, nunca colhe parecer da Procuradoria-Geral e nunca ouve a autoridade que proferiu a decisão reclamada. Para quê, se o que importa é a decisão monocrática de um dos 11 ministros do tribunal?
Observe-se a arbitrariedade confessada:
“Dispenso a requisição de informações ao órgão reclamado e a colheita de parecer do Ministério Público Federal, por se encontrar o processo em condições de julgamento.”
Insuspeita ilegalidade, porque o CPC preceitua:
“Art. 989. Ao despachar a reclamação, o relator:
I – requisitará informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado, que as prestará no prazo de 10 (dez) dias;
II – se necessário, ordenará a suspensão do processo ou do ato impugnado para evitar dano irreparável;
III – determinará a citação do beneficiário da decisão impugnada, que terá prazo de 15 (quinze) dias para apresentar a sua contestação.”
Diante da clareza do texto do CPC, não há motivo para tolerar o abuso quotidiano no STF, em aplicar seu regimento, em matéria legislada.
Nada mais presunçoso do que um juiz que prescinde da participação dos litigantes na formação de sua convicção. É um semideus! E como adverte Álvaro de Campos: “estou farto de semideuses”. Ultrapassada a violação legal, é preciso rememorar que o instituto da reclamação não permite revolvimento de fatos e provas.
Na análise do caso, o juiz de primeiro grau apreendeu que o repórter fora “autônomo” por vários anos, emitindo nota fiscal, depois, sem alteração dos fatos do contrato, passou a “CLT”. O tribunal, por unanimidade, manteve a decisão, asseverando, com base na prova produzida pelo empregador:
“Já a insuspeita testemunha da própria reclamada, cujo depoimento encontra-se encartado às fls. 651, deixou assentado que “o reclamante estava subordinado ao Sr. Patrick e ao Sr. Ricardo Caprioti; que desde que conhece o reclamante, em 2010, o reclamante sempre executou as mesmas atividades; que durante todo o período o reclamante foi subordinado a alguém e tinha horário para cumprir; que o reclamante não trabalhou como autônomo para a reclamada em nenhum momento”.
Desde 2010, parte do período como “CLT”, parte como “PJ”, as atividades nunca se alteraram e sempre o repórter reclamante esteve subordinado. A exigência, como denunciou uma das testemunhas, de formar PJ, era da empregadora:
“que a condição de pessoa jurídica era uma condição para a contratação.”
Diz o sapientíssimo ministro que o reclamante era bem informado e não podia ser enganado. Apenas alguém que nunca trabalhou como empregado ou que está submerso no aquário que é Brasília, poderia dizer que o empregado escolhe a forma de sua contratação. Isso se dá no imaginário do bem preparado professor e ministro Luís Barroso e no dos que com ele estão a se contagiar com esse frenesi da “liberdade de contratação”.
Sobre o repórter, disse o ministro relator da reclamação:
“a qual detinha conhecimentos técnicos suficientes para compreender os termos e implicações do acordo firmado.”
Nisso, contraria a Lei, porque a “reformada” CLT de 2017 (Artigo 444, parágrafo único), reconhece autonomia de subordinados — oxímoro! — para quem tenha diploma universitário e receba o dobro do teto dos benefícios da Previdência oficial:
“A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.”
Esse valor, hoje, é de R$ 15.014,98. O repórter do caso da reclamação recebia, enquanto PJ, R$ 7.262,99! Menos da metade do que a lei considera livre para negociar as cláusulas de seu contrato.
Isso não importa, porque a visão superior do ministro Nunes viu que ele era diferenciado e tinha “capacidade” de escolher.
Andemos um passo: ao “converter-se” livremente — país estranho esse em que os empregados escolhem trafegar entre o contrato de emprego e outras formas de “divisão do trabalho” — de “PJ” em “CLT”, o reclamante passou a receber R$ 3.734,44!
Por que a diferença? Sonegação de tributos e contribuições sociais imposta pelo empregador e acolhida pelo STF, sob a roupagem de nova forma de divisão do trabalho.
A Constituição não tem um princípio da livre iniciativa. Ela tem, sim, um princípio, ao lado do “valor social do trabalho”, que é o “valor social da livre iniciativa”. Não por outra, a propriedade e a empresa têm função social, na Constituição.
Quando o STF patrocina que um empregado que recebe menos do que o teto dos benefícios da Previdência Social possa “escolher” ser “PJ”, estimula, lamentavelmente, a sonegação de tributos (imposto de renda, por exemplo, que tem alíquotas de até 27,5% para empregados e não passa de 3% para PJ) e contribuição social. Mais do que isso, esses trabalhadores que hoje “escolhem”, sob o manto da irrestrita liberdade de contratação, serem “PJ”, não se aposentarão, porque não contribuem como segurados obrigatórios da Previdência.
Pensemos na sociedade de 2033, quando o presidente do STF, se permanecer até lá, será aposentado por idade (75 anos), para gozar do exercício de outras atividades sem perder o significativo provento superior a R$ 41 mil brutos, o que estará ocorrendo com o repórter da reclamação? Ele terá, provavelmente, idade próxima a essa, mas não gozará do benefício da aposentadoria. Nem dessa expressiva, nem da que paga o INSS, porque ele “optou” por ser “PJ”.
Um penúltimo aspecto, na instrução do processo, o empregador confessou:
“que o reclamante recebia R$ 7.200 em média à época; que quem assumia os riscos da atividade do reclamante era a reclamada.”
Releia-se: quem assumia os riscos da atividade era a reclamada.
Quem assume os riscos econômicos do negócio, no Direito do Trabalho, chama-se empregador (artigo 3º, CLT).
Não há liberdade de escolha. Se o trabalho é subordinado, por alteridade, o vínculo é de emprego.
Ninguém imagina que um contrato pelo qual alguém cede a posse de um imóvel para outrem, mediante pagamento de aluguéis, será um contrato de casamento. Ainda que as partes resolvam lavrar isso em uma escritura pública. Não! Porque os contratos são o que são, não o que está escrito nos instrumentos formais.
A Lei que flexibilizou, antes do STF, a terceirização, exigiu que o terceirizado tenha apenas uma condição, a saber, a capacidade econômica de responder pelos riscos da atividade. Leia-se, na dúvida, o artigo 4º-A, da Lei 6.019:
“Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.
Nessa reclamação, como em uma porção de outras, está o tribunal a descumprir tal regra. Tudo pode ser terceirizado, já está dito, mas o agente da terceirização deve, ope legis, ter “capacidade econômica” para responder pelos riscos de sua atividade.
Qual a capacidade econômica de um repórter de rádio, para responder, por exemplo, a uma ação de danos morais pelo que foi divulgado no programa?
Nenhuma.
Vem daí a impossibilidade de terceirização. Ainda que não fosse, como confessado nos autos, um subordinado que “optou por ser PJ”.
O último aspecto da violência sem limites que está a patrocinar o STF: o valioso instrumento da reclamação, segundo a construção do próprio tribunal, não pode basear-se na revisão dos fatos analisados pelas instâncias ordinárias. Veja-se um recente (2020) exemplo, de tantos:
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL E TRABALHISTA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ADC 16. AUSÊNCIA DE CONTRARIEDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INVIABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. É inviável a reclamação cujo conhecimento dependa de reexame do conjunto fático-probatório a que chegaram as instâncias ordinárias. 2. Agravo regimental a que se nega provimento” (Rcl 28.203, 2ª turma, 13/2/2020)
Para dizer que o repórter (1) tinha conhecimento suficiente para distinguir a forma de contratação e (2) teve liberdade de escolha, o ministro Nunes precisou revolver fatos e provas, numa atividade exclusiva dos juízes ordinários, de primeiro e segundo graus.
Não há como, em reclamação, um tribunal superior distinguir se houve ou não vínculo de emprego. A ferramenta importante de estabilização do sistema de precedentes obrigatórios está apenas servindo ao interesse do capital.
No caso da reclamação, a reclamada perdeu em 1º, 2º graus e na admissibilidade do recurso de revista. Três vezes, o sistema judicial disse-lhe que ela não tinha razão. Mas o ministro Nunes viu honestidade em seus olhos sinceros e na liberdade absoluta de contratação da “divisão do trabalho”.
Pontuo, para concluir, o Supremo está a desservir a pátria, quando (a) invade a área de atuação das instâncias ordinárias, (b) ignora a lei, para distinguir entre empregados hipersuficientes e hipossuficientes, (c) proclama existente o “princípio da livre iniciativa”, que não está na Constituição, (d) faz tábula rasa da função social da empresa e do contrato, (e) estimula a sonegação de impostos, com a contratação de empregados como PJs e (f) cria uma sociedade miserável, ao alijar do sistema de proteção previdenciária miríades de trabalhadores.
O sistema de precedentes obrigatórios salva a justiça de um looping infinito de trabalho de enxugamento de gelo, pelo que a reclamação constitucional ocupa lugar importante na gestão do Judiciário. Ela não se presta, diz o próprio Supremo, a reexaminar fatos e provas. Nunca fez isso. Não deve nunca fazê-lo.
Se ao menos ao cassar a decisão da justiça do trabalho o excelso Supremo julgasse o feito, seria melhor, mas ele determina o regresso à origem, para novo julgamento. Aí alguém terá que escrever que um repórter que não ganha quatro mil reais por mês escolheu ser PJ e, como tal, agia na condição de empresário. Sim! Porque esse absurdo, que está nas entrelinhas da decisão monocrática do ministro Nunes, deverá ser dito por um juiz do trabalho.
A Constituição promete uma sociedade livre, justa e solidária, o que não se alcança com as desastrosas decisões do STF em matéria de vínculo de emprego.
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