Sobre a fase administrativa de um acordo de colaboração e suas nulidades
4 de dezembro de 2023, 16h17
Recentemente o ministro Dias Toffoli, na RCL 43.007, declarou a imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do acordo de leniência da Odebrecht e, respectivamente, dos sistemas Drousys e My Web Day B, e todos os decorrentes deles, no âmbito criminal, eleitoral, administrativo e cível, e em todos os graus de jurisdição, com efeito erga omnes.
Essa decisão nos faz refletir o momento pré-homologação do acordo de colaboração, ainda na fase administrativa, onde todas as formalidades das tratativas e atos deveriam estar registradas para garantir a legalidade do acordo. É essa fase da gestação do acordo que demostrará a regularidade, legalidade do acordo e voluntariedade do colaborador e/ou que o acordo de colaboração é apenas “um fruto contaminado”.
De praxe, assinavam termo de confidencialidade quando havia interesse do Parquet em iniciar as tratativas de colaboração, o que demarcava o início das negociações, e a abertura de um procedimento administrativo dentro do Ministério Público, face aos princípios da regularidade e da administração pública, porém esses registros não são disponibilizados com o acordo de colaboração. Ou por omissão, ou por sua inexistência!

E da mesma forma que se foi questionado, e declarado a quebra da cadeia de custódia das provas apresentadas nos acordos de colaboração e leniência, há de se questionar a “quebra da cadeia de custódia” do preso colaborador que elaborava os anexos da sua colaboração “debaixo do teto do Parquet”. E tão somente o processo administrativo para registrar todos os atos da fase do pré-acordo.
São perguntas inevitáveis: como e onde esses acordos foram negociados? Onde foram elaborados os anexos do colaborador? Havia autorização para que o colaborador saísse prisão para a elaboração dos anexos?
A resposta a essas perguntas deveria constar do processo administrativo, em atas, decisões de saída do presídio, sendo a base probatória — somada a audiência de verificação — após a assinatura do acordo, onde o juiz, antes da homologação do acordo, ouve o colaborador na presença de seu advogado para confirmar os requisitos de voluntariedade, legalidade e regularidade.
A verificação dos três requisitos essenciais para a homologação de um acordo deve ser realizada desde a sua fase embrionária, qual seja, a petição de intenção em colaborar, devidamente protocolizada, bem como os principais atos do procedimento e suas tratativas, incluem a entrega de documentos e elementos de prova pelo colaborador, mediante atas minimamente descritivas, com as informações sobre data, lugar, participantes e breve sumário dos assuntos tratados, ou, se possível, ser objeto de gravação audiovisual, e não por convicção do Juiz, pelo “ato do colaborador ter assinado o acordo juntamente com seu advogado”.
A grande maioria dos colaboradores da “lava jato” celebraram seus acordos enquanto estavam presos nos presídios de Benfica ou de Bangu — de onde eram conduzidos em um camburão da Polícia Federal, sob sol escaldante, em algumas horas de percurso até o prédio do Ministério Público — para pseudos depoimentos e produção dos anexos “debaixo das asas do seu algoz”.
Em breve resumo, podemos dizer que parquet deflagrava operações com base em colaborações, com pedidos de busca e apreensão, sequestros e pedidos de prisões, concedidas pelo Juízo, oferecendo denúncia cerca de 30 dias após as prisões, também aceitas pelo juízo e com as prisões referendadas.
E paralelo a isso tudo, o órgão de persecução penal utilizava a imprensa para divulgar cada passo das operações, desde o ingresso dos policiais às 6h da manhã nas residências dos alvos, estampando em seus telejornais as imagens dos investigados, que acabavam sendo replicados pelas páginas na internet. Não havia naquele momento a presunção de inocência e nem a ampla defesa ao contraditório, mas sim uma sentença prévia da mídia, com clamor popular e habeas corpus negados pelo TRF-2.
E nesse intermédio, o Ministério Público era procurado pelos réus, como o “último suspiro” para “resolverem suas vidas e protegerem a família, empresas e funcionários” para celebrar um acordo de colaboração. E o Parquet, por sua vez, solicitava a retirada do preso do presídio através da escolta da Polícia Federal até a sua sede, onde disponibilizava suas instalações para a elaboração dos anexos, com os pontos a serem delatados.
O que se questiona é se já havia acordo de confidencialidade, qual o fundamento o Parquet arguiu para que o juiz deferisse a escolta até a sua sede: tratativas de acordo de colaboração e produção de anexos ou prestar depoimento?
Em relação ao primeiro ponto, se o Ministério Público arguiu “tratativas de acordo de colaboração” no pedido de autorização de escolta, ele certamente quebrou o termo de confidencialidade assinado com a parte e infringiu seu dever funcional de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé com a divulgação de tais tratativas iniciais.
Já se o argumento utilizado fora “prestar depoimento”, o órgão de persecução também infringiu seu dever funcional, pois de fato não havia depoimento na sede do órgão de persecução penal, e os colaboradores não assinavam ou justificavam suas saídas e seus retornos. Essa referida autorização não consta dos autos principais, quiçá do procedimento administrativo da colaboração.
Dito isso, podemos falar na quebra da cadeia da custódia do acordo de colaboração e do colaborador preso? Pois bem, o principal argumento e fundamento utilizado para a decretação das prisões foi “garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. Portanto, a parte persecutória nem sequer deveria ter acesso ao preso em suas instalações.
Ao retirar o preso de dentro da prisão, o Parquet viola seu próprio argumento do pedido de prisão, trazendo para sua casa o seu alvo, dando-lhe “abrigo, bebida, afeto, comida, esperança de um acordo, e uma liberdade”.
Até que ponto esse preso cooperaria pela liberdade? Estariam presentes os requisitos do artigo 4º, §7º, da Lei 12.850/2013: regularidade, voluntariedade e legalidade? Assim como as provas apreendidas necessitam de uma cadeia de custódia para resguardar a sua integridade, o colaborador também necessita, afinal a colaboração é meio de prova, e a sua produção é individual, sigilosa, de fatos que ele participou, devendo estar devidamente registrado nos procedimentos administrativos todas as tratativas que antecederam à assinatura do acordo de colaboração.
Posto isso, questiona-se: “O juiz teve acesso ao procedimento administrativo das tratativas da colaboração, antes de homologar o acordo? E neste caso, a resposta é que não! Primeiro porque não se cumpria pelo Parquet a regra da instauração do procedimento administrativo e, segundo, os únicos elementos juntados são o pedido de homologação e o acordo assinado pelas partes.
Ocorre que o Juízo considerava cumpridos os requisitos do §7º da Lei 12.850/2013, através da sua convicção de que o “ato do colaborador ter assinado o acordo juntamente com seu advogado” era essencial à verificação da regularidade, legalidade e voluntariedade do colaborador.
E no caso em tela, apesar de o acordo ser bilateral, o acordo só seria aceito se “os olhos e o interesse do órgão de persecução penal fossem conquistados”. No entanto, como a colaboração é um meio de prova, e se esse meio de prova foi produzido dentro do Ministério Público — “sob as asas do algoz do preso” — sem a devida cadeia de custódia da metodologia das tratativas e construção do acordo de colaboração, podemos considerar a quebra da cadeia de custódia do preso colaborador e a imprestabilidade da colaboração.
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