Relevância econômica da desconsideração da personalidade jurídica
4 de dezembro de 2023, 6h08
O ganhador do prêmio Nobel da paz e presidente da Universidade de Columbia nos Estados Unidos, Nicholas Murray Butler, disse certa vez que a sociedade com limitação de responsabilidade é a maior e mais importante criação dos tempos modernos, seja por efeitos sociais, éticos, industriais ou políticos.
De fato, a sociedade de responsabilidade limitada é uma notável ferramenta para assunção de risco e empreendedorismo e é instrumental em proporcionar desenvolvimento social e econômico. Por isso mesmo, qualquer cogitação à desconsideração da personalidade jurídica das sociedades de responsabilidade limitada para estender aos sócios obrigações societárias, deve sempre ser adotada com muita cautela.

No Brasil, em que pese um perceptível esforço legislativo em traçar diretrizes para aplicação da excepcionalidade da desconsideração da personalidade — principalmente no âmbito do direito civil e empresarial — prevaleceu no campo do direito do trabalho, do consumidor e ambiental uma abordagem muito mais simplória: a chamada teoria menor, que ignora a responsabilidade limitada, bastando a constatação de insuficiência patrimonial da sociedade para que haja a desconsideração da personalidade jurídica e imputar aos seus sócios (independentemente de suas participações) a responsabilidade de honrar com obrigações societárias desta natureza.
É bem verdade que no Brasil é muito comum verificarmos a confusão patrimonial entre sócios e suas sociedades e, evidentemente, não pode a limitação de responsabilidade passar a servir de instrumento de fuga da responsabilidade em circunstâncias onde os sócios devem, de fato, responder por obrigações societárias.
A famosa Companhia das Índias Orientais, criada para explorar o comércio entre Europa e as Índias no século 17, e que é frequentemente lembrada como a primeira sociedade de responsabilidade limitada (embora não sem alguma controvérsia em torno deste fato) ilustra bem a típica circunstância onde a limitação de responsabilidade é fundamental para a viabilização de um empreendimento.
Isto porque, quando o risco de insucesso da empreitada for muito alto e a necessidade por capital demandar altos investimentos, a limitação de responsabilidade favorece o ingresso de inúmeros investidores que, em conjunto e de uma vez só, podem alocar uma parcela de seus recursos para o objetivo da sociedade (com a perspectiva de altos lucros) e com a segurança de que os riscos a que estão sujeitos ficarão limitados à sua contribuição ao capital da sociedade.
Ocorre que casos de sociedades organizadas com inúmeros sócios, cada um tendo contribuído com recursos para um empreendimento que será gerido por um profissional capacitado jamais chegou a ser uma regra disseminada em diversos países e o instituto da limitação de responsabilidade passou a ser aplicado também em sociedades de pessoas, com affectio societatis e com apenas dois ou três sócios, onde eles próprios são investidores e gestores do negócio.
Essa categoria de sociedade é justamente onde está concentrada a enorme maioria das iniciativas de empreendedorismo em qualquer economia. São as sociedades com poucos sócios que geram mais empregos, são as que desbravam a maior gama de novos campos de negócios e que, em última instância, formam a grande massa de sociedades em atividade. Quando bem-sucedidas, atraem o interesse de novos investidores e, aí sim, passam a ter um quadro societário com inúmeros sócios que se valem de administradores profissionais e capacitados.
Empreender significa risco e, com base nas ciências estatísticas, sabemos de antemão que muitos desses empreendedores — que exercem uma função vital para a economia — vão falhar e seus negócios não vão prosperar, inclusive por razões completamente alheias aos seus controles.
Por isso é premente o questionamento se a desconsideração da personalidade jurídica de forma tão irrestrita e automática, como adotada em algumas esferas do direito no Brasil, não causa efeitos (ou externalidades) invejáveis à sociedade brasileira.
É fundamental que um empreendedor de boa-fé tenha possibilidade de se reerguer em caso de fracasso de alguma empreitada. Porém, a possibilidade de responder irrestritamente por determinadas obrigações pode, na maioria das ocasiões, comprometer integralmente sua capacidade de saldar dívidas. O resultado inquestionável é que a desconsideração da personalidade jurídica acaba por atuar como um fator inibidor do empreendedorismo no Brasil.
Evidentemente que não se deve buscar uma proposição de transferência do risco de insucesso dos negócios empresariais do empreendedor para, por exemplo, os consumidores que estão no lado mais fraco da relação.
O benefício individual não poderia exceder o custo social. Mas o custo social da adoção indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica, não pode ser superior ao custo social caso outro critério menos indiscriminado seja adotado e, por isso mesmo, devemos avançar para buscar alternativas que atinjam o ponto de equilíbrio nesta relação.
Os critérios mais objetivos introduzidos no artigo 50 do Código Civil, pela Lei No. 13.874 de 2019, são louváveis e poderiam ser adotados de forma mais ampla no campo do direito do trabalho, ambiental e consumerista. Além disso, podemos nos apoiar no exemplo de outras jurisdições que analisam também se a capitalização realizada pelos sócios é condizente com a natureza dos negócios da sociedade.
Com essas medidas, caminharíamos para o atingimento dos benefícios amplos para a sociedade daquela que é a mais “importante criação dos tempos modernos”.
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