Opinião

O golpe contra Dilma, o editorial de O Globo e a hermenêutica do curupira

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30 de agosto de 2023, 14h12

Em editorial publicado ontem (29/8), O Globo faz veemente defesa do processo de impeachment que derrubou Dilma Rousseff da Presidência da República em 2016. O mote foi a declaração do presidente Lula de que a cassação "foi leviana" e que deveria haver uma reparação à Dilma.

Diz o jornal que "não cabe a ninguém tentar reescrever história do impeachment" e que "ao questionar legalidade da deposição de Dilma, o PT põe em xeque suas próprias credenciais democráticas".

Edilson Rodrigues/Agência Senado
Edilson Rodrigues/Agência Senado

Cabem algumas observações ao editorial. Em primeiro lugar, olhando pelo espelho retrovisor da história, não parece que o conceito de democracia seja matéria de primeira grandeza no jornal, principalmente se pensarmos no golpe de 1964 e na defesa, praticamente até o fim, da operação conhecida como "lava jato", que tisnou gravemente o Estado Democrático.

Segundo, de tudo o que se compreendeu até hoje, quem sustenta a legalidade do impeachment contra Dilma é que tenta reescrever a história. Nela já está escrito que foi golpe, como também já está sacramentado o nefasto papel da operação "lava jato", ovo da serpente do 8 de Janeiro. Fatos históricos, pois.

É espantoso que o jornal afirme que o arquivamento da ação de improbidade contra Dilma feita pelo TRF-1 nada significa. E na sequência caia em contradição, ao afirmar que, mesmo que Dilma estivesse respondendo a processo criminal pelas pedaladas e fosse absolvida, isso em nada mudaria sua situação em relação ao veredito do Senado, porque "os processos de impeachment têm natureza política" e que "o objetivo da deposição do governante não é puni-lo, mas tão somente proteger o Estado da má gestão".

Ou seja, qualquer ação que fosse proposta contra Dilma e ela fosse absolvida, isso nada quereria dizer por que já fora julgada politicamente. Para o jornal, o político se sobrepõe ao jurídico. Com isso, pavimenta futuras interpretações, pelas quais transforma o impeachment na fábula do lobo e do cordeiro: é irrelevante o que diz o cordeiro. O objetivo do lobo não é provar algo contra o cordeiro; quer apenas devorá-lo.

Ora, rios de tinta já foram gastos para dizer que impeachment não é instrumento meramente político e que, se fosse, transformaria o sistema presidencialista em parlamentarista.

Mas para O Globo o julgamento via impeachment é político. O jurídico é irrelevante. O problema na tese do editorial é que, assim, cria-se a exigência de uma prova do demônio, uma ordália pós-moderna: de nada vale ser absolvida de ação de improbidade ou de qualquer outra ação. Basta que o Senado condene. Mas, então, qual é o sentido do Estado democrático de Direito? A resposta do jornal é taxativa: "o objetivo da deposição do governante não é puni-lo, mas tão somente proteger o Estado da má gestão". Isto é a confissão de que o impeachment visou tão somente depor a presidenta. Afinal, acusação de má-gestão é crime?

Aliás, já se sabia que "o objetivo da deposição não era o de punir", mas, sim, a de tirar Dilma do cargo. Ao negar, paradoxalmente o editorial apenas ratifica a tese do golpe. Traição das palavras.

Também já se sabia — e já hoje não há dúvida — de que não houve fraude fiscal, que não houve prova alguma de crime de responsabilidade e que não houve prova da causalidade entre crise econômica, decretos de crédito e Plano Safra.

Todavia, para além disso, o que há de mais perigoso na tese esgrimida no editorial é a ratificação, sem qualquer pudor, da tese de que o impeachment é um instrumento estrita e meramente político, o que o transforma, como já se viu, em fator de desestabilização e deposição de governantes com dispensa da legalidade. O editorial chega a dizer que era irrelevante provar se havia pedaladas e que o que importou, mesmo, é o que o Senado decidiu.

Do limão, façamos uma limonada. O editorial deve servir de alerta aos democratas. Um dos três maiores jornais do Brasil oficialmente sacramenta uma tese antijurídica pela qual se dispensa a comprovação do crime de responsabilidade ou qualquer outra conduta prevista na Lei do Impeachment, transformando o instituto em instrumento de deposição de governantes, como se estivéssemos no parlamentarismo. Perigo à vista. 

Sabemos muito bem até onde nos leva esse tipo de "hermenêutica do curupira", bastando lembrar o artigo 142 da CF, que serviu de fermento para a tentativa de golpe há poucos meses. Ali, a torta leitura feita por alguns juristas alçava as Forças Armadas a guardiães da democracia. Deu no que deu.

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