Opinião

Tratado de Marraqueche: importante ferramenta de efetivação de direitos

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29 de agosto de 2023, 7h07

O mundo sofre de fome de livros. Trata-se de um grande problema. Sem livros, jornais e revistas, as pessoas veem suas vidas se tornarem limitadas. Não é possível receber educação, participar plenamente da sociedade, nem desenvolver todo o seu potencial. Tal situação é prejudicial não apenas para elas mas também para as economias e sociedades em que vivem (OMPI, 2016).

Por inúmeras razões, há pessoas que não leem: porque não sabem; porque não têm tempo; porque não gostam; porque não podem comprar livros; ou porque não há livros. As pessoas com alguma deficiência que gere dificuldade de leitura são ainda mais afetadas por essa máxima. Para elas, a regra é não haver uma versão adaptada que possibilite a leitura.

De acordo com a Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), há cerca de 1,3 bilhão de pessoas que vivem com alguma forma de deficiência visual [1], ao passo que apenas de 1% a 7% dos livros são publicados em formato que possibilite essas pessoas a ler [2].

Embora haja, no artigo 150, alínea "d", da Constituição Federal, previsão de que é vedado cobrar tributos sobre livros, não se vislumbra no contexto abordado que tal disposição seja suficiente para garantir o acesso à leitura das pessoas com deficiência visual.

Tem-se, então, um problema de direitos humanos e de direitos fundamentais, configurando uma afronta à Carta Magna. Esta prevê, em seu artigo 6º, que são direitos sociais: "a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

Nas palavras de Priscila Caneparo (2021, p. 141), direitos humanos podem ser compreendidos como o "aglomerado de direitos mais importantes, indissociavelmente ligados à dignidade da pessoa humana. Sem eles, não se vislumbra a possibilidade da vida humana se desenvolver satisfatoriamente".

Nesse contexto, Antônio Cândido (2004) [3] traz importante reflexão ao escrever que as pessoas "afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde (…). Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven?".

Nessa seara, o autor distingue bens incompressíveis de bens compreensíveis. Define que os bens compreensíveis são substituíveis e descartáveis, ao passo que os incompreensíveis são essenciais. Dessa forma, para ele se enquadram como bens incompreensíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual, como a alimentação, moradia, vestuário, instrução, o direito à opinião, à crença, ao lazer e "por que não, à arte e à literatura" (CÂNDIDO, 2004, p. 174).

Vale conferir as palavras do autor em relação à importância da leitura na formação do sujeito e da sociedade:

"Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. (…) podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. (…) Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade" (CÂNDIDO, 2004, p. 176 -177).

Sobre a função da leitura, o autor cita três faces: construção de objetos autônomos como estrutura e significado; forma de expressão, pois manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. (CÂNDIDO, 2004, p. 177)

Nesse contexto, o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), Lei nº 10.753/03, institui a Política Nacional do Livro. Está disposto, no artigo 1º, inciso II, da referida lei, que "o livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida".

Em complemento, a Lei nº 13.696/18, que institui a Política Nacional de Leitura Escrita, dispõe, em seu artigo 2º, inciso II, que é uma das diretrizes da Política Nacional da Leitura e Escrita "o reconhecimento da leitura e da escrita como um direito, a fim de possibilitar a todos (…) condições para exercer plenamente a cidadania, para viver uma vida digna e para contribuir com a construção de uma sociedade mais justa".

Dessa forma, pela legislação e doutrina apresentada, entende-se ser incontroverso que a leitura é um elemento importantíssimo para a formação do ser humano em sua completude. Nas palavras de Antônio Cândido, o direito à leitura deve ser efetivado sob pena de mutilar a personalidade da pessoa, porque, pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e nos humaniza.

Para as pessoas com deficiência visual ou com dificuldade de leitura, o direito à leitura e, consequentemente, à uma vida plena – tendo em vista a importância da leitura na formação de um indivíduo já apontada – vem sendo sistematicamente inviabilizado. Seja por falta de interesse em produzir material adaptado a esse público ou por falta de incentivo financeiro.

A Lei de Direitos Autorais, n. 9.610/98 dispõe, em seu artigo 46, inciso I, alínea "d", que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de obras literárias para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários.

Nesse sentido o Tratado de Marraqueche, em conjunto com o Decreto n. 10.882/18, complementa a Lei nº 9.610/98. O Preâmbulo do Tratado menciona pontos importantes que possibilitam compreender melhor o contexto e as circunstâncias em que o Tratado foi promulgado:

"Recordando os princípios da não discriminação, da igualdade de oportunidades, da acessibilidade e da participação e inclusão plena e efetiva na sociedade, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,

Conscientes dos desafios que são prejudiciais ao desenvolvimento pleno das pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso, que limitam a sua liberdade de expressão, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de toda espécie em condições de igualdade com as demais pessoas mediante todas as formas de comunicação de sua escolha, assim como o gozo do seu direito à educação e a oportunidade de realizar pesquisas,

Enfatizando a importância da proteção ao direito de autor como incentivo e recompensa para as criações literárias e artísticas e a de incrementar as oportunidades para todas as pessoas, inclusive as pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso, de participar na vida cultural da comunidade, desfrutar das artes e compartilhar o progresso científico e seus benefícios,

Reconhecendo que muitos Estados Membros estabeleceram exceções e limitações em suas legislações nacionais de direito de autor destinadas a pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso, mas que ainda há uma escassez permanente de exemplares disponíveis em formato acessível para essas pessoas; que são necessários recursos consideráveis em seus esforços para tornar as obras acessíveis a essas pessoas; e que a falta de possibilidade de intercâmbio transfronteiriço de exemplares em formato acessível exige a duplicação desses esforços,

Reconhecendo a necessidade de se manter um equilíbrio entre a proteção efetiva dos direitos dos autores e o interesse público mais amplo, em especial no que diz respeito à educação, pesquisa e acesso à informação, e que esse equilíbrio deve facilitar às pessoas com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso o acesso efetivo e tempestivo às obras"

Percebe-se, de início, importantes novidades: reconhecimento de que, mesmo com as legislações nacionais que limitam os direitos de autor, ainda há escassez de exemplares em formato acessível disponíveis; entendimento de que o intercâmbio transfronteiriço será importante para maior número de exemplares.

No texto, outra novidade é a figura da "entidade autorizada", que, de acordo com o artigo 2º, alínea "c", é aquela "autorizada ou reconhecida pelo governo para prover aos beneficiários, sem intuito de lucro, educação, formação pedagógica, leitura adaptada ou acesso à informação". O texto ainda dispõe que é entidade autorizada também aquela "instituição governamental ou organização sem fins lucrativos que preste os mesmos serviços aos beneficiários como uma de suas atividades principais ou obrigações institucionais".

Nota-se uma ampliação do disposto no artigo 46 da Lei 9.619/98, que não prevê a possibilidade de uma entidade realizar o serviço de produção e distribuição de livros adaptados. Ademais, o tratado regulamenta quem seriam os beneficiários que poderiam fazer uso das obras adaptadas.

O Decreto 10.882/21 "regulamenta o tratado de Marraqueche para facilitar o acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso" e traz a disposições aplicáveis no âmbito nacional.

Aborda acerca do processo administrativo de reconhecimento das entidades autorizadas; da supervisão das entidades autorizadas e do cancelamento do reconhecimento, além, obviamente, das questões de definições e da atividade transfronteiriça disposta no Tratado.

Dessa forma, o Tratado de Marraqueche e o Decreto 10.882/18 são importantes ferramentas de efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, visando cumprir o disposto no artigo 6º da Constituição Federal, que prevê a educação como direito social assegurado a todos.

As inovações trazidas pelo tratado, como a criação da figura da entidade autorizada e os mecanismos do intercâmbio transfronteiriço, mostram-se ferramentas com potencial para diminuir a escassez de livros adaptados para as pessoas com dificuldade de leitura.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, Priscila Caneparo dos. Direitos humanos: evolução e cooperação internacional.1. ed. – São Paulo: Amedina, 2021.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.

BRASIL. Lei n. 10.753/2003. Institui a Política Nacional do Livro. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2003.

BRASIL. Decreto nº 9.522 de 8 de outubro de 2018. Promulga o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso, firmado em Marraqueche, em 27 de junho de 2013. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2018.

BRASIL. Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1998.

BRASIL. Decreto nº 10.882, de 3 de dezembro de 2021. Regulamenta o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso

BRASIL. Lei n. 13.696/18. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2018.

CANDIDO, Antonio. 2004. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades. p. 169-191.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. OPAS: Folha informativa. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/saude-ocular#:~:text=Em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20%C3%A0%20vis%C3%A3o%20para,n%C3%A3o%20corrigidos%20e%20a%20catarata. Acesso em: 14 de ago. de 2023.

ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA PROPRIEDAD INTELECTUAL. El Tratado de Marrakech – Hacia la erradicación del hambre mundial de libros. 2016 Disponível em: https://www.wipo.int/edocs/pubdocs/es/wipo_pub_marrakesh_overview.pdf. Acesso em: 14 de ago. de 2023.

Autores

  • é advogado. Pós graduando em direito empresarial. Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação na Universidade de Brasília (UnB).

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