Lei nº 13.846/19 e violação aos direitos do pensionista absolutamente incapaz
29 de agosto de 2023, 17h22
A Lei nº 13.846/19 é oriunda da conversão da Medida Provisória nº 871/19 e fez diversas alterações no Regime Geral de Previdência Social, fazendo parte do conjunto de ações legislativas que integram a reforma previdenciária. Uma das alterações trazidas por tal lei foi a inclusão de prazo para requerimento, por dependente absolutamente incapaz, do benefício de pensão por morte a fim de fixar a data de início do referido benefício.
Atualmente a legislação prevê que, caso o menor absolutamente incapaz não faça o requerimento nos primeiros 180 dias após o óbito do segurado, a DIB será fixada na data do requerimento, sem direito a parcelas retroativas desde o falecimento. Verifica-se, portanto, que caso haja a inobservância de tal prazo, o menor absolutamente incapaz perderá seu direito a receber o benefício desde o seu fato gerador, qual seja, a morte do segurado.
O prazo de 180 dias deve ser caracterizado como um prazo prescricional, isso porque é um lapso temporal em que, caso o interessado se mantenha inerte, provocará a perda da pretensão do exercício/percebimento de determinado direito. Conforme ensina Tartuce (2018), a prescrição é um fato jurídico em sentido estrito, por ausência de vontade humana, que constitui uma sanção ao titular do direito violado, extinguindo tanto a pretensão positiva quanto a negativa.
No caso do artigo 74, I, da Lei nº 8.213/91, caso o absolutamente incapaz não promova o seu requerimento nos referidos 180 dias após o óbito, ele perderá a chance de fixação da DIB na data do falecimento. Observa-se que não houve a perda do direito em si, o que poderia caracterizar a decadência, já que ele ainda receberá o benefício, mas apenas a pretensão de requerer que a DIB seja fixada em data anterior ao requerimento.
Ocorre que, o Código Civil, diploma legal que regula as normas gerais sobre os institutos da prescrição e da decadência, prevê que não ocorre a prescrição quanto aos absolutamente incapazes, bem como aos ausentes do país em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios, e contra os que se acharam servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra. Faz-se necessário transcrever o artigo:
"Artigo 198. Também não corre a prescrição:
I – contra os incapazes de que trata o artigo 3º;
II – contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios;
III – contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra."
Tal norma tem razão de existir, isso porque um dos principais motivos para não transcorrer prazo prescricional ao absolutamente incapaz é para a sua própria proteção, uma vez que o requerimento não depende de sua vontade, mas sim da vontade e da atuação de seu representante. Dessa forma, o menor não pode ser prejudicado pela inércia de seu representante.
Assim, a lei resguarda tanto o seu direito (decadência) como o exercício deste (prescrição), para o momento em que o requerimento/atuação dependa exclusivamente de sua vontade, e não de seu representante. No entanto, a alteração realizada pela Lei nº 13.846/19 parece não ter observado essas normas gerais do direito, indo frontalmente de encontro a elas, ao prever prazo prescricional de 180 dias para o menor absolutamente incapaz requerer a pensão por morte.
Um ordenamento jurídico para sua boa aplicação deve ser harmônico, isso é, não pode ter normas que se contradizem entre si. Assim, deve-se sempre prezar pela sua unidade. A harmonia e unidade entre os diferentes diplomas legais traz segurança jurídica à sociedade. A lei previdenciária ao indicar o prazo prescricional ao menor absolutamente incapaz traz fissuras à harmonia e unidade que se espera de um ordenamento jurídico.
Como se não bastasse a violação a normas basilares do direito, a alteração legislativa que aqui se discute também deve ser considerada como inconstitucional. Em seu artigo 227, a Constituição Federal indica uma série de direitos que o Estado deve assegurar, com máxima prioridade, à criança e ao adolescente:
"Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
A criação de prazo prescricional para requerimento de benefício previdenciário traz restrições a direitos fundamentais ao menor absolutamente incapaz. Primeiro porque o próprio benefício previdenciário deve ser encarado como um direito fundamental, segundo porque, por meio de tal benefício, há a obtenção de renda mensal que possibilita ao menor viver de forma digna. Soares (2019) faz interessante análise quanto ao assunto:
"Conforme dispõe o artigo 227 da Constituição Federal também cabe ao Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura e à dignidade. A partir do momento que o próprio Estado retira a proteção do menor, fazendo com que a decadência e a prescrição transcorra para este, com possibilidade de eliminação de seus direitos, violado se encontra o referido dispositivo constitucional". (SOARES, João Marcelino. MP 871/19: detalhamento técnico e análise imparcial. Disponível aqui. Acesso em: 23.12.2022)
Considerando que as prestações previdenciárias são direitos fundamentais assegurados aos segurados ou seus dependentes, a depender do benefício, a elas devem ser aplicadas as regras de interpretação constitucional, a fim de se dar maior efetividade a tais direitos. Nesse sentido, ao se adotar uma interpretação extensiva, aos absolutamente incapazes não deve haver qualquer restrição ao seu direito de requerer a pensão por morte, enquanto perdurar a incapacidade. Não podendo a lei infraconstitucional apresentar limitação de 180 dias para fixar o termo inicial do benefício.
Ainda não há posicionamento das cortes superiores quanto ao tema. A Turma Nacional de Uniformização (TNU), no entanto, possui um tema de tese jurídica, que foi redigido em momento anterior à reforma trazida pela Lei nº 8.213/91, o qual indica que contra o absolutamente incapaz não corre o prazo prescricional:
Tema nº 81 da TNU: Contra os menores impúberes não corre o prazo do artigo 74, II, da Lei nº 8.213/91 (artigo 198, I, CC/02), devendo o benefício de pensão por morte ser deferido a partir do óbito do instituidor, observada sua quota parte e também a disposição do artigo 77, §1º da Lei nº 8.213/91.
Em pesquisa jurisprudencial da Turma de Uniformização, encontra-se decisão recente indicando que o Tema supratranscrito deve ser utilizado para os dependentes requerentes menores de 16 anos, não se aplicando a regra do inciso I do artigo 74 da Lei Geral de Benefícios. Colaciona-se tal julgado:
"PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. ARTIGO 74, I, DA LEI 8.213/1991. RELATIVAMENTE INCAPAZ. ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. MENOR. DATA DE INÍCIO DO BENEFÍCIO – DIB. DATA DO ÓBITO. DER. DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA. INCIDENTE NÃO CONHECIDO. 1. A autora era menor de 16 anos na data do falecimento do instituidor da pensão. A turma recursal reconheceu o direito ao benefício, mas não desde a data do óbito, tendo em vista que a autora requereu a pensão depois de passado o prazo estabelecido no artigo 74, I, da Lei 8.213/1991. 2. Em caso semelhante, a TNU fixou a interpretação de que, para os dependentes maiores de 16 anos, incide o prazo previsto no artigo 74, I, da Lei 8.213/1991 (PUIL 0062161-77.2016.4.03.6301, relator juiz federal Francisco Glauber Pessoa Alves, j. 16/12/2021). Conforme esse precedente, a tese firmada no julgamento do tema 81, da TNU, aplica-se apenas aos dependentes menores de 16 anos". (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei (Turma) 0000562-06.2017.4.03.6301, LUCIANE MERLIN CLÈVE KRAVETZ — TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO, 11/02/2022.)
Em que pese a decisão acima entender que a norma prevista no artigo 74, I, da Lei nº 8.213/91 não deve ser aplicada aos absolutamente incapazes, tal entendimento ainda não é pacífico na TNU. A mesma corte de uniformização de jurisprudência possui tese no sentido de que quando se tratar de habilitação tardia, mesmo que seja de dependente absolutamente incapaz, a DIB deve ser fixada na data do requerimento administrativo, não sendo possível a sua retroação. Esse entendimento está inserido no Tema nº 223 da TNU:
"Tema nº 223 da TNU: O dependente absolutamente incapaz faz jus à pensão por morte desde o requerimento administrativo, na forma do artigo 76 da Lei 8.213/91, havendo outro dependente previamente habilitado e percebendo benefício, do mesmo ou de outro grupo familiar, ainda que observados os prazos do artigo 74 da Lei 8.213/91."
Apesar de o Tema nº 223 não se referir especificamente ao tema aqui discutido, a sua conclusão vai de encontro à ideia de inaplicabilidade do artigo 74, I, da Lei Geral de Benefícios. Isso porque, independentemente de a habilitação ser tardia, se for um dependente absolutamente incapaz, a ele não pode ser imputada sanções pela inércia de seu representante, o que leva a entender que, mesmo no caso de habilitação tardia, a DIB deveria retroagir ao óbito do segurado.
É importante salientar que, consoante o artigo 80 da Lei nº 8.213/91, o regramento para concessão e requerimento do benefício previdenciário de auxílio-reclusão é o mesmo utilizado pela pensão por morte:
"Artigo 80. O auxílio-reclusão, cumprida a carência prevista no inciso IV do caput do artigo 25 desta Lei, será devido, nas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, de pensão por morte, de salário-maternidade, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço." (redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019).
Logo, toda a discussão aqui feita sobre o prazo prescricional aplicado ao absolutamente incapaz também se aplica ao auxílio-reclusão. A alteração feita pela Lei nº 13.846/19 afetou também o auxílio-reclusão, prejudicando os menores de 16 anos na concessão de dois benefícios previdenciários.
Considerações finais
O benefício de pensão por morte é previsto pela própria Constituição e constitui uma proteção ao dependente de segurado falecido. Tal benefício constitui uma renda mensal que o de cujus perceberia e utilizaria na subsistência do próprio dependente requerente.
A pensão por morte é regida pelo princípio do tempus regit actum, nesse sentido a legislação que regerá os requisitos, a habilitação e a concessão do referido benefício é aquela vigente na data do fato gerador da pensão, qual seja, a morte do segurado. Dessa forma, é possível que uma lei já revogada se aplique a alguma situação, caso o segurado instituidor da pensão tenha falecido antes de 2019.
A norma atual em vigor prevê que para a fixação da DIB, deve-se levar em consideração quem é o dependente requerente e quando foi feita a habilitação para o requerimento do benefício. Caso o dependente seja absolutamente incapaz o termo inicial do benefício será a data do óbito, desde que o requerimento tenha sido feito nos primeiros 180 dias após o falecimento. Para os demais dependentes, o prazo diminui para 90 dias. Tudo isso está previsto no artigo 74 da Lei nº 8.213/91, alterada recentemente pela Lei nº 13.846/19.
A grande controvérsia quanto à fixação da DIB reside na situação do absolutamente incapaz. Como já se explicou o prazo de 180 dias deve ser considerado como um prazo prescricional. Ocorre que, contra os absolutamente incapazes o Código Civil em seu artigo 198 prevê que não correrá qualquer prescrição, enquanto durar a incapacidade. A referida norma civil deve ser considerada como uma norma fundamental e basilar do direito.
Surge, então, o problema, que foi objeto de estudo do presente trabalho: a Lei nº 8.213/19, ao alterar o inciso I, do artigo 74 da Lei Geral de Benefícios, viola diretamente a norma insculpida no Código Civil, que, como já dito, é uma norma basilar do direito. Tendo em vista que o objetivo principal do art. 198 do Código Civil prever que não corre prescrição contra os absolutamente incapazes é proteger tais indivíduos, uma vez que estes não podem ser prejudicados pela inércia de seus representantes, a previsão do prazo de 180 dias para que a DIB seja fixada na data do óbito traz prejuízos aos menores impúberes.
A proteção ao menor é uma das preocupações do texto constitucional, sendo dever do Estado garanti-la. A Lei nº 13.846/19, ao trazer restrições desnecessárias ao absolutamente incapaz, viola o artigo 217 da Constituição, que trata sobre a proteção do menor. Isso porque ele poderá ser prejudicado pela inércia de seu responsável, mesmo sem ter qualquer culpa.
Sabe-se que o ordenamento jurídico deve apresentar certa unidade, devendo ser harmônico, evitando-se contradições normativas. Dessa forma, a fim de se manter tal harmonia e de se respeitar a Constituição Federal, quanto à proteção do menor, deve-se interpretar o inciso I, do artigo 74, da Lei nº 8.213/91 da seguinte forma: o prazo de 180 dias ali previsto para requerimento da pensão por morte deve começar a fluir apenas quando o menor fizer 16 anos, situação em que será relativamente incapaz. Essa é a melhor interpretação ao dispositivo legal.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de e LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 23ª ed. Rio de Janeiro: GEN, Editora Forense, 2020;
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 8ª ed. Rio de Janeiro: GEN, Editora Método, 2018;
STRAZZI, Alessandra. Pensão por morte é retroativa à data do óbito? Disponível em: <https://alestrazzi.jusbrasil.com.br/artigos/1149816202/pensao-por-morte-e-retroativa-a-data-do-obito> Acesso em 22.12.2022;
SOARES, João Marcelino. MP 871/19: detalhamento técnico e análise imparcial. Disponível em: <https://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/2019/bnu_14—mp-871-19.pdf> Acesso em: 22.12.2022;
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