Opinião

O legado de Ignacy Sachs e o precoce dia da sobrecarga do planeta

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22 de agosto de 2023, 7h11

Nos primeiros dias do mês de agosto de 2023, fomos surpreendidos por duas notícias tocantes: (1) a partida de Ignacy Sachs, aos 96 anos de idade e (2) o dia da sobrecarga do planeta Terra (dia da ultrapassagem) mais precoce, desde de que isso vem sendo medido anualmente. Observar o que está sob essas duas histórias nos leva a compreender o significativo papel da governança ambiental [1].

O legado de Ignacy Sachs nos remete obrigatoriamente aos primórdios da construção de uma governança ambiental global, na década de 70 do século passado.

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Ignacy Sachs (1927-2023)
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Polonês de nascimento e naturalizado francês, com longa estadia no Brasil (1941 a 1954), como refugiado da Segunda Guerra Mundial, onde se graduou em ciências econômicas e políticas, no Rio de Janeiro, o renomado economista Ignacy Sachs é um dos grandes responsáveis por fazer ecoar a Teoria do Ecodesenvolvimento [2], que incorpora à análise de crescimento econômico dos países dois outros pontos de equilíbrio: o social e o ambiental. Segundo essa teoria, sem esse tripé o desenvolvimento não se sustenta.

Vimos nas últimas décadas a expressão sustentabilidade (do idioma alemão — Nachhaltigkeit[3] se tornar de uso comum a diversas áreas do conhecimento. Isso porque, na atual conjuntura climática do planeta Terra, com os elevados níveis de poluição advindas das atividades humanas e a difusão de informações em tempo real, são consideradas insustentáveis quaisquer práticas que não consideram os limites dos recursos planetários (essenciais à manutenção das diversas formas de vida e a dignidade dos serem humanos nas suas relações de trabalho e produção), sejam elas ações de indivíduos, de empresas ou do Estado.

De forma efetiva, mas também como publicidade enganosa [4], a sustentabilidade se faz onipresente. Permeia todos os campos de atuação humana e é em função dela que os diversos atores das governanças locais e globais têm se organizado.

Com a necessidade de regulamentação, pelo Direito, dos pontos de conflito nas relações humanas, o conceito de desenvolvimento sustentável também foi juridicizado. Tornou-se um dever ser que obriga a todos, seja na ordem jurídica interna [5] ou internacional [6].

Mas, duas décadas antes das Nações Unidas formalizarem o princípio do Desenvolvimento Sustentável em um Tratado de Direito Internacional (Declaração de Meio Ambiente e Desenvolvimento, assinada no Rio de Janeiro em 1992), o economista Ignacy Sachs já defendia academicamente a importância da bioeconomia. Em função disso foi chamado, junto com Maurice Strong e Marc Nerfin [7], para a elaboração do texto da primeira conferência da ONU voltada às questões ambientais, em 1972, que resultou na Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente Humano. Posteriormente os três seguiram atuando junto à Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas [8], preparando o documento publicado em 1987, denominado Relatório Brundtland – Nosso Futuro Comum [9]. Na Parte I do relatório, chamado Desafios Globais, o Capítulo 2 está dedicado ao tema: em direção ao desenvolvimento sustentável e, os parágrafos 27 a 30 contêm tanto sua definição como considerações sobre sua aplicação. Trata-se de um documento de leitura obrigatória para todos que querem compreender como chegamos aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da atualidade, também conhecidos como Agenda 2030.

Se hoje, ainda que tardiamente, o universo corporativo também passa a considerar a adoção de práticas de governança transparente, ambientalmente sustentáveis e socialmente conscientes, conhecidas nesse meio como ESG (environmental, social and corporate governance) é porque isso agrega algum valor às empresas (embora não necessariamente lucro fácil).

A singularidade de Ignacy Sachs é ter se dedicado à construção e propagação do atualíssimo debate envolvendo os impactos negativos no planeta Terra gerados por sistemas econômicos predatórios, matrizes energéticas altamente poluidoras e injustiça social frente a fruição das riquezas ambientais.

Em entrevista concedida à Revista de Informações e Debates, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) [10], em 2007, ele fala dos desafios do século 21 que precisam conjugar as mudanças climáticas com expansão de oportunidades de trabalho em condições dignas (no sentido considerado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT). Destaca que existe um imenso desperdício de recursos em sociedades mais consumistas, proporcional ao grande desafio de melhorar o consumo qualitativo em países mais pobres. Além de refutar a ideia de que no futuro não haverá terra suficiente para produção de alimento e energia, argumentando pela viabilidade de produção de biocombustíveis e alimentos. Para o Brasil, Ignacy Sachs vislumbrou as melhores oportunidades dentro da economia do futuro, o que passaria necessariamente pela bioeconomia, observando todo o potencial energético derivado da alta insolação do país, além da sua rica biodiversidade.

E não por acaso que a recém assinada Carta de Belém [11], documento resultante da Cúpula da Amazônia (encontro dos 8 países da Bacia Amazônica [12] e convidados com grandes florestas tropicais) nos últimos dias 08 e 09 de agosto, uma das expressões mais repetidas foi justamente bioeconomia, o que significa pensar o desenvolvimento da região considerando os direitos humanos (muitas cidades da região tem o menor IDH do país) [13] e a importância daquele bioma para o equilíbrio ecológico.

O último dia 2 de agosto de 2023 foi também o dia da sobrecarga do planeta Terra (overshoot day[14]. Esse é o dia em que, segundo os estudos e metodologias desenvolvidos por uma organização internacional não governamental de pesquisa chamada Global Footprint Network [15], a humanidade se torna deficitária em relação ao que pode demandar do planeta dentro de sua capacidade de resiliência. Tendo os 365 dias do ano do calendário gregoriano como referência, o cálculo aponta o limite de recursos ambientais que poderiam ser extraídos, sem a degradação definitiva do equilíbrio ecológico. Os serviços ambientais prestados pela natureza ao equilíbrio ecológico planetário também são adicionados a este cálculo. Segundo estimativas da organização, desde o ano de 1970 o consumo humano vem ultrapassando a biocapacidade regenerativa do planeta. A cada ano o dia em que isso ocorre é antecipado.

A metodologia para calcular a "pegada ecológica" (footprint) de pessoas, empresas, países etc. foi desenvolvida na década de 90 do século passado pelos cientistas canadenses William Rees e Mathis Wackernagel. Ela pode ser aplicada individualmente [16], por cidade, por país e globalmente. A data supra apresentada (2 de agosto de 2023), diz respeito ao resultado planetário. O planeta permite um impacto de 1,8 hectare global por habitante, o que foi consumido este ano até o dia 2 de agosto. Na média anual utiliza-se até 2,7 hectares globais por habitante, o que demonstra o déficit.

Observar os resultados por país diz muito sobre o que deve ser considerado em termos de governança ambiental global. O Brasil, por exemplo, tem uma pegada ecológica alta (2,9 hectares globais por habitante), mas próxima da média geral. No entanto, tem uma biocapacidade que nos torna credores mundiais, o que também está apontado nos diversos cruzamentos de dados feitos pela Global Footprint Network. Países mais industrializados, como, por exemplo, os Estados Unidos e o Canadá, concentram uma pegada de 3,7 hectares globais por habitante.

A compreensão de como a ciência vem construindo entendimentos e sugerindo direções é ferramenta básica para nossa participação cidadã na governança ambiental.

 


[1] Governança é direção. É o esforço conjunto da sociedade civil, do mercado, das políticas públicas, envolvendo normas e instituições, mirando um objetivo coletivo. PETERS, B. G. O que é governança? In: Revista do TCU n. 127. Maio/Ago 2013. Disponível em: https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/search/search Acesso em: 04 ago. 2023.

[2] O termo Ecossocioeconomia foi cunhado pelo também economista e entusiasta de ecologia política Karl William Knapp, na década de 70 (do século XX). Disponível em: https://www5.pucsp.br/catedraignacysachs/ignacy-sachs.html. Acesso em 02 ago. 2023.

[3] O Princípio da Sustentabilidade, em alemão Prinzip der Nachhatigkeit, aparece como tese escrita já no século XVIII, nos trabalhos do Hans Carl von Carlowitz, nos estudos dedicados à silvicultura, concluindo que numa floresta os recursos só podem ser extraídos no limite que a mesma possa se regenerar. Disponível em: https://www.deutsche-biographie.de/sfz7919.html. Acesso em 03 ago. 2023.

[4] Neste meio tempo, entre o surgimento do pensamento voltado à sustentabilidade e as práticas efetivas, já existe o falso sustentável, conhecido como greenwashing, onde muitos se locupletam da mera aparência ou discurso de sustentabilidade.

[5] Vide artigo 170, caput e inciso VI, da Constituição Federal de 1988.

[6] DINIZ, Pedro Ivo. Natureza Jurídica do Desenvolvimento Sustentável no Direito Internacional. Disponível em: https://corteidh.or.cr/tablas/r37466.pdf. Acesso em 04 ago. 2023.

[7] O economista canadense Maurice Strong, que junto com Marc Nerfin e Sachs trabalhou na institucionalização do desenvolvimento sustentável nos compromissos da Organização das Nações Unidas, foi o primeiro diretor executivo do Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento – Pnuma. Disponível em:

https://www.unep.org/unep-50-leaders-through-years/maurice-strong. Acesso em 02 ago. 2023

[8] Que conta com a ilustre participação de um grande ambientalista brasileiro, o professor Paulo Nogueira Neto, tema para outro texto.

[9] O Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” Disponível em: https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/5987our-common-future.pdf. Acesso em 04 ago. 2023.

[12] Países membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Disponível em: http://otca.org/pt/quem-somos/ Acesso em 10 ago. 2023.

[14] Disponível em: https://www.overshootday.org/about/. Acesso em 03 ago. 2023.

[15] Disponível em: https://www.footprintnetwork.org/ Acesso em 04 ago. 2023.

[16] O Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, permite em sua exposição permanente "Amanhãs" permite aos visitantes simular sua pegada ecológica. Disponível em: https://museudoamanha.org.br/pt-br/amanhas Acesso em 4 ago. 2023.

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