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Arthur Tavares: Hora de rever caso Brandenburg v. Ohio?

17 de agosto de 2023, 12h18

Por Arthur Tavares Francioni Lopes

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Em opinião concedida no caso Matal v. Tam, de 2017, o justice Samuel Alito afirmou: "o orgulho de nossa jurisprudência sobre liberdade de expressão é que protegemos a liberdade de expressar os '‘que odiamos'" (Matal v. Tam, 582 U.S. – 2017) [1]. Essa tem sido a máxima dominante na jurisprudência norte-americana nas últimas décadas — ou até, pode-se afirmar, no último século —, mas, tendo em vista as consequências dessa doutrina e seus desdobramentos na realidade, não chegou o momento de a corte rever seu entendimento?

Nesse ínterim, a grande discussão dos limites entre liberdade de expressão abarcada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos e discurso ilegal ou perigoso remonta, inicialmente, ao famoso caso Shenck v. United States (1919) [2], do qual surgiu a famosa analogia "gritar fogo em um teatro lotado", pela qual discursos resultantes em pânico ou desordem pública não estariam protegidos pela Primeira Emenda. Além disso, vale lembrar, especialmente, do caso Chaplinsky v. New Hampshire (1942) [3], do qual se originou a doutrina das "fighting words" afirmada pela Suprema Corte, pela qual palavras "tendentes a causar uma briga" não estão resguardadas pela Primeira Emenda.

Em continuidade, reforçando as teorias previamente citadas, surgiu o caso Brandenburg v. Ohio (1969) [4], o qual teve início com Clarence Brandenburg, membro da Ku Klux Klan (KKK), num discurso antissemita e racista, convocando sua audiência — formada por outros membros da KKK — para uma marcha em Washington D.C., no Dia da Independência, em meio a falas de eventual vingança contra o governo americano em caso de continuidade ao que ele chamou de "supressão da raça caucasiana". Nesse sentido, em sua decisão, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou que discursos convocando ações ilegais em geral estão protegidos pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA, criando a doutrina do "imminent lawless action", ou seja, apenas as falas capazes de gerarem uma "ação ilegal iminente" e serem prováveis de instigarem ou causarem uma não estão cobertas pela liberdade de discurso (freedom of speech).

A decisão representou uma certa surpresa em relação à jurisprudência da Corte, levando-se em consideração os precedentes Whitney v. California (1927) [5] Dennis v. United States (1951) [6], casos nos quais a corte entendeu pela condenação de dois indivíduos associados ao Partido Comunista Americano por "conspiração" contra o governo dos EUA, simplesmente por integrarem o referido partido. Em Whitney v. California, a Corte aplicou a doutrina do "bad tendency test", pela qual discursos hostis ao bem-estar público e tendentes a incitar crimes ou colocar em risco o governo organizado eram abusivos da liberdade de discurso, não sendo abarcados pela Constituição. De maneira similar, em Dennis v. United States, a Suprema Corte trouxe a doutrina do "gravity of evil", pela qual o padrão a ser seguido é se a "gravidade do mal" pregado, descontada a sua improbabilidade de ocorrer, justifica a restrição à liberdade de expressão para se evitar o perigo. Ressalta-se que, em ambos os casos, as alegações envolviam o suposto objetivo dos comunistas de conspirar contra o governo por meio de violência ou força.

Ora, o que pode demonstrar mais claramente um objetivo de conspiração contra o governo por meios violentos, ou, ainda, uma "gravidade do mal" ou "incitação a crimes", do que um discurso sobre vingança contra as autoridades constituídas, onde a audiência envolvida brada falas racistas e antissemitas e, ainda, porta diversas armas de fogo, como no caso Brandenburg v. Ohio? Ainda que se pensasse à luz do conceito de "imminent lawless action" — criado a partir do referido caso —, é plausível argumentar que uma audiência inflada por discurso de ódio e armada representa uma ação violenta — e possivelmente ilegal — iminente.

Entretanto, apesar das críticas, a corte manteve o entendimento firmado em Brandenburg v. Ohio ao longo das décadas, como se observa dos casos Village of Skokie v. National Socialist Party of America (1978) [7] e R.A.V. v. St. Paul (1992) [8]. No primeiro caso, restou decidido que uma manifestação nazista pública na comunidade de Skokie e o uso da suástica (símbolo do nazismo)

são protegidos pela Primeira Emenda e que o referido símbolo não se enquadra na teoria das "fighting words" estabelecida no caso Chaplisnky v. New Hampshire (1942). Já no segundo caso, a corte entendeu como inconstitucional um decreto municipal proibindo conduta desordeira motivada por preconceito baseado em cor, crença, religião ou gênero, não enquadrando o chamado "discurso de ódio específico" na teoria das "palavras de combate" com fundamento numa "ausência de neutralidade" do conteúdo normativo.

Nesse sentido, apesar de algumas exceções ao longo dos anos – como no caso Virginia v. Black (2003) [9], a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana tem sido firme no sentido da proteção de discursos de ódio ou estimulantes da violência pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Assim, apesar de usar termos diferentes, a corte tem estabelecido que apenas discursos que levem ou estimulem perigo ou violência iminente não estão amparados pela Primeira Emenda. Desse modo, a Suprema Corte trouxe um critério um tanto subjetivo e vago, que é usado em determinadas situações, mas em outras parece haver uma tentativa de burlar sua interpretação anterior, de modo que discursos envolvidos em — ou até causadores de — situações de violência generalizada não foram responsabilizados por não se enquadrarem na régua posta pelo Tribunal Constitucional.

Assim, para fins de argumentação, vale lembrar, inicialmente, o caso de Charlottesville, ocorrido em 2017, no qual grupos neonazistas e de supremacistas brancos protestaram contra a remoção de uma estátua de uma figura histórica da Guerra Civil americana que lutou pelos Estados Confederados, lado que defendeu a manutenção da escravatura naquele período histórico dos EUA. Na ocasião, os manifestantes faziam saudações nazistas, gritavam contra negros, judeus, imigrantes e homossexuais, levando, momentos mais tarde, a uma aproximação de um grupo de universitários, que realizavam uma espécie de contra-protesto [10]. Resultado: os dois grupos entraram em confronto físico direto, resultando em diversas agressões, muitos feridos e um morto por atropelamento [11]. Diante da situação narrada, é impossível, inicialmente, não se questionar o motivo de tal ato ter sido permitido, ou, ainda, o motivo de, desde então, passados quase seis anos, não ter ocorrido uma mudança no entendimento doutrinário da corte, já que o caso de Charlottesville se enquadra quase que identicamente aos casos Village of Skokie v. National Socialist Party of America e Brandenburg v. Ohio, mas, no caso de 2017, a barbárie se estabeleceu por completo.

Em complemento, deve-se trazer à baila o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos ocorrido em 6 de janeiro de 2021, dias antes da sucessão presidencial norte-americana. A situação aconteceu em meio a um contexto de discursos atacando o processo eleitoral, de alegações de fraudes, de pressão sobre autoridades para anulação do pleito e de uma manifestação, promovida pelo próprio presidente da República à época, Donald Trump, onde o mesmo instigou os presentes contra o processo eleitoral democrático, contra as instituições norte-americanas e contra o Governo estabelecido, num discurso raivoso e com tom de ameaça [12]. Vale ressaltar, inclusive, que o Comitê da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos que investigava a invasão ao Capitólio apontou o ex-presidente como a principal causa dos atos de 6 de janeiro, havendo recomendado a promoção de acusações criminais como forma de responsabilização do mesmo [13]. Entretanto, até o presente momento, não se conhece de qualquer movimento no sentido de responsabilizar Trump por seu discurso ou pelo ocorrido, o que também levanta motivos para questionamento da teoria de "imminent lawless action", pois o discurso de Trump se assemelha, ainda que por aspectos diferentes, ao de Clarence Brandenburg convocando uma marcha sobre Washington D.C. contra o governo estabelecido, só que, no 6 de janeiro, o desastre total ocorreu.

Desse modo, as teorias da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana sobre a proteção dos discursos violentos ou "perigosos" parecem aguardar que tais discursos cheguem no limite de serem executados — ou que efetivamente sejam — para que haja sua restrição legal, ao invés de buscar formas de prevenir a ocorrência de violência, desastres e mortes por meio do combate a tais falas incentivadoras antes que se tornem realidade. Nesse sentido, ao entender e decidir de tal modo, a Suprema Corte nega aplicação a uma das características mais marcantes dos direitos fundamentais: a relatividade — conforme coloca o professor Guilherme Peña de Moraes (2022, p. 145) —, a qual o informa o fenômeno da colisão entre direitos fundamentais [14], não havendo direito fundamental absoluto — incluídos a liberdade e até a vida —, de modo que deve haver a ponderação entre direitos para que se encontre sua harmonização, sem a ultravalorização de um direito ou a negação completa de outro. Vale destacar que tanto a legislação norte-americana quanto a sua jurisprudência têm sido adeptas de tal teoria, visto que, em vários estados norte-americanos, a vida pode ser ceifada por meio da pena de morte, por exemplo, e a própria liberdade restringida, haja visto os diversos critérios estabelecidos pela Suprema Corte ao longo das décadas, ainda que vagos e de pouca aplicação efetiva.

Assim, ao se preocupar demasiadamente com o efeito de auto-censura a que suas decisões sobre o tema poderiam levar — o chamado "chilling effect" -, a Corte foi de um extremo a outro do problema, deixando de lado outras consequências práticas e igualmente perigosas que poderiam resultar de sua jurisprudência — como de fato ocorreu —, havendo certa negligência quanto ao chamado "consequencialismo" fruto de suas decisões. Nesse sentido, ao afirmarem repetidamente a proteção dos discursos de ódio e de falas perigosas pela Primeira Emenda, numa visão inocente e romantizada da liberdade de expressão, a corte cria precedentes para que indivíduos como os manifestantes neonazistas de Charlottesville ou políticos como o ex-presidente Donald Trump valham-se da falta de responsabilização anterior e da justificativa da "liberdade de discurso" para proclamarem narrativas ofensivas, perigosas e causadoras de violência, catástrofe e morte.

Em adendo, numa perspectiva comparada, cabe lembrar os ataques à Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, num contexto quase idêntico ao estadunidense, no qual diversos influenciadores digitais, profissionais da imprensa, políticos e até o próprio presidente da República à época, Jair Bolsonaro, vinham fazendo, por meses, discursos contra o processo eleitoral democrático, de fraude nas urnas, contra as instituições da República brasileira — especialmente, o Poder Judiciário — e contra o governo legitimamente eleito pelo voto popular. Ainda que o agora ex-presidente afirme não ter incentivado os manifestantes — que bloquearam estradas e acamparam em quartéis por dias, pedindo, na prática, um golpe militar —, o seu silêncio por longo tempo e suas mensagens "enigmáticas" pelas redes sociais podem ser considerados suficientes para instigar seus apoiadores a participarem dos atos ocorridos em 8 de janeiro do corrente ano. Além disso, cabe relembrar também os atos praticados, por volta de 2020, pelo grupo chamado de "300 do Brasil", o qual, sob a justificativa de protestar contra o Supremo Tribunal Federal, acampou na Praça dos Três Poderes, realizou uma marcha, na madrugada, empunhando tochas, usando máscaras e alguns até portando armas de fogo — num tom extremamente similar a Charlottesville —, e ainda lançou fogos de artifício contra a sede do STF..

Nesse mérito, ao contrário da Suprema Corte norte-americana, o Poder Judiciário brasileiro buscou agir eficazmente nesses casos. Como exemplo, há poucas semanas, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi declarado inelegível por oito anos, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, sendo um dos motivos o desvio de finalidade de sua conduta ao atacar o sistema eleitoral, de modo que o discurso instigou seu eleitorado contra o próprio sistema e contra as urnas eletrônicas [15]. Para além, sobre os 300 do Brasil, o grupo tornou-se alvo de investigação na Corte (Inq. 4.828) e alguns de seus membros chegaram a ser presos temporariamente e sofreram medidas cautelares alternativas [16]. Em complemento, o Supremo Tribunal Federal, no contexto do processo eleitoral, tomou algumas medidas, como a suspensão temporária de contas de políticos nas redes sociais, por exemplo, com fins de evitar a propagação de discursos fraudulentos e contra o processo eleitoral democrático e impedir atos ilícitos [17]. Assim, apesar de não estar imune a críticas por eventual censura ou por uma vigilância exagerada — as quais também precisam ser apresentadas e discutidas —, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral têm se esforçado para garantir a liberdade de discurso com a devida responsabilidade e responsabilização dos respectivos locutores, com a tendência de caminhar para um ponto de equilíbrio e deixando lições a serem seguidas — ou, ao menos, observadas — pela corte norte-americana para uma busca de harmonia entre responsabilidade e liberdade.

Desse modo, fica claro que a jurisprudência da Suprema Corte para proteger o "pensamento que odiamos" não pode ser motivo de orgulho, mas deve ser alvo de reflexão e de reavaliação, diante de todas as consequências geradas a partir dela, para que a doutrina de aguardar e observar as consequências de um discurso violento antes de agir seja revertida num entendimento de decisão preventiva, não na forma de censura, mas na de um entendimento mais criterioso e menos subjetivo para que seja garantida a efetiva responsabilização e responsabilidade de locutores, de modo a evitar desastres, a barbárie e até a morte.

 

Referências:
1. EUA. Suprema Corte dos Estados Unidos. Opinion nº 15-1293. Matal v. Tam. Relator: Justice Samuel Anthony Alito Jr.. Washington D.C., 19 de julho de 2017. Disponível em: <https://www.supremecourt.gov/opinions/16pdf/15-1293_1o13.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2023.

2. ASP, David. Schenck v. United States (1919). The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], [s.d.]. Disponível em: <https://www.mtsu.edu/first-amendment/article/193/schenck-v-united-states#:~:text=Unit ed%20States%20(1919)&text=In%20the%20landmark%20Schenck%20v,service%E2%80%9

D%20during%20World%20War%20I.>. Acesso em: 11 jul. 2023.

3. 8. 9. DEMASKE, Chris; VILE, John R.. Hate Speech. The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], jun. 2017. Disponível em: <https://mtsu.edu/first-amendment/article/967/hate-speech>. Acesso em: 11 jul. 2023.

4. WALKER, James L. Brandenburg v. Ohio (1969). The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], 2009. Disponível em: <https://mtsu.edu/first-amendment/article/189/brandenburg-v-ohio>. Acesso em: 11 jul. 2023.

5. BELPEDIO, James R. Whitney v. California (1927). The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], 2009. Disponível em: <https://mtsu.edu/first-amendment/article/263/whitney-v-california>. Acesso em: 11 jul. 2023.

6. WALKER, James L.. Dennis v. United States (1951). The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], 2009. Disponível em: <https://mtsu.edu/first-amendment/article/190/dennis-v-united-states>. Acesso em: 11 jul. 2023.

7. DEMASKE, Chris. Village of Skokie v. National Socialist Party of America (Ill) (1978). The First Amendment Encyclopedia, [s.l.], 2009. Disponível em: <https://www.mtsu.edu/first-amendment/article/728/village-of-skokie-v-national-socialist party-of-america-ill>. Acesso em: 11 jul. 2023.

10. CHARLOTTESVILLE: supremacistas brancos e grupos antirracismo entram em confronto. Bbc News Brasil. [s.l.], 12 ago. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40913908>. Acesso em: 11 jul. 2023.

11. SENRA, Ricardo. 'Sou nazista, sim': o protesto da extrema-direita dos EUA contra negros, imigrantes, gays e judeus. Bbc News Brasil. [S.L.], 12 ago. 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40910927>. Acesso em: 11 jul. 2023.

12. COHEN, Marshall. Timeline of the coup: How Trump tried to weaponize the Justice Department to overturn the 2020 election. CNN. [s.l.], 05 nov. 2021. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2021/11/05/politics/january-6-timeline-trump-coup/index.html>. Acesso em: 11 jul. 2023.

13. JANJÁCOMO, Mariana. Dois anos após Invasão do Capitólio, democratas continuam tentando punir Trump. CNN Brasil. Nova York, 06 jan. 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/dois-anos-apos-invasao-do-capitolio-democrat as-continuam-tentando-punir-trump/>. Acesso em: 11 jul. 2023.

14. MORAES, Guilherme Braga Peña de. Curso de direito Constitucional. 13. ed. Barueri: Atlas, 2022.

15. POR maioria de votos, TSE declara Bolsonaro inelegível por 8 anos. Tribunal Superior Eleitoral, Brasília, 07 jul. 2023. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2023/Junho/por-maioria-de-votos-tse-declar a-bolsonaro-inelegivel-por-8-anos>. Acesso em: 12 jul. 2023.

16. SARA Winter é presa pela PF em Brasília. Veja, [s.l.], 15 jun. 2023. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/bolsonarista-sara-winter-e-presa-pela-pf-em-brasilia>. Acesso em: 12 jul. 2023.

17. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 4.923. Investigados: Ibaneis Rocha Barros Júnior e outros. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 24 de janeiro de 2023. DJE. Brasília, . Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4923238decisao_monocrat ica1.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2023.