Cumprimento do prazo nonagesimal para revisão dos motivos da prisão preventiva
11 de agosto de 2023, 16h14
O sentir do legislador processual descortinou a problemática da extensão excessiva das prisões cautelares, na tentativa de impor limites quanto a sua persistência e utilização deturpada como sucedâneos de pena. Patologia jurídica detectada, criou-se o parágrafo único do artigo 316 do código de processo penal, a fim de, no mínimo, quebrar a inércia judicante e evitar o prolongamento da prisão cautelar sem formação da culpa.
Mas, qual seria o espírito interpretativo dessa prescrição legal? Sob o manto do garantismo ou do instrumentalismo consequencialista? Pois, desde os tempos longínquos, ensina Maximiliano (1957, p.209) [1] que: "deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis".
Nessa linha de raciocínio, trava-se uma batalha incessante para preservação das garantias mínimas do cidadão quando o Estado descarrega seu poder punitivo sobre os jurisdicionados. Porque as normas processuais penais vivem em processo de simbiose permanente com os princípios e garantias fundamentais, conjugando forças contra possíveis arbitrariedades perpetradas no plano fático e jurídico.
É justamente a tese advogada pela doutrina garantista, que, de igual modo, é refletida nos ensinamentos de Lopes Jr. (2019, p.80) [2]: "Diante desse cenário de risco total em que o processo penal se insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias mínimas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assumir os riscos e definir uma pauta de garantias formais das quais não podemos abrir mão. É partir da premissa de que a garantia está na forma do instrumento jurídico e que, no processo penal, adquire contornos de limitação ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo".
Porém, essa não fora a linha de exegese adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando julgou parcialmente procedente as ADIs 6.581 [3] e 6.582 [4] para impor, por meio da interpretação conforme a constituição, limitações hermenêuticas para a realização da norma (artigo 316, parágrafo único do CPP) no mundo jurídico.
A Corte firmou a seguinte tese: "A inobservância da reavaliação prevista no parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal (CPP), com a redação dada pela Lei 13.964/2019, após o prazo legal de 90 dias, não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos".
Desse prisma hermenêutico extrai-se que, na prática, o prazo se tornará impróprio para o órgão judicante reavaliar os motivos da prisão preventiva no caso concreto. Isto é, ao findar o lapso temporal do parágrafo único do artigo 316 do código de processo penal e o juiz for instado a aplicar o reexame da cautelar segregatícia de liberdade, assim o fará sem prejuízo automático da pena de ilegalidade da prisão.
Portanto, trata-se de verdadeira reedição do parágrafo, ao extinguir a sanção de ilegalidade e esvaziar o conteúdo finalístico dado pelo legislador, restando abolido o argumento do excesso de prazo [5]. A consequência normativa é utilizar a exegese como mero instrumento processual para satisfazer uma paz que não é a do réu ou investigado, ilustrando o verdadeiro peso da mão do Estado no sistema penal brasileiro.
Desse modo, inegavelmente, não se pode fechar os olhos para produções legislativas que vêm ao mundo jurídico sem o necessário auferimento crítico e totalmente destoadas da realidade do sistema do judiciário [6]. É nesse cenário, que a Corte Suprema, sob o pretexto principiológico do grave comprometimento da ordem e segurança pública, afastou a possibilidade do relaxamento da prisão preventiva automaticamente, diante da inobservância do prazo de 90 (noventa) dias para sua revisão.
A "cambalhota hermenêutica" é reflexo de uma política de redução de impactos com fundamentos consequencialistas, visto que o Supremo se cobre com o manto do poder de guardião da Constituição para dar às palavras o sentido que ele quer ou, melhor, suprimir a direção teleológica do artigo 316, parágrafo único do CPP.
Nesse sentido Couto e Ferreira (2020) já denunciava os motivos abstratos que sustentam decisões supressória de garantias constitucionais [7]: "No fim das contas, tem-se uma decisão com o único objetivo de 'dar satisfação' à população (o chamado populismo penal), de corresponder às expectativas sociais, sempre ávida pelas prisões a qualquer custo, contrária aos direitos fundamentais e à separação de poderes, pois preocupou-se tão somente com 'a logística e os desafios que o Poder Judiciário iria enfrentar com a interpretação literal do artigo'".
Isso ilustra a instrumentalidade às avessas, pois se utiliza de exegese deturpada da literalidade expressa e finalística da lei, em prejuízo à liberdade ambulatorial. Frise-se que o código de processo penal é instrumento de proteção do cidadão contra abusos de direito no plano da relação desigual de forças entre este e o Estado.
Desse modo, no sopesamento de princípios entre paz/segurança pública e a liberdade, o fiel restou com o equilíbrio material viciado e a balança envergou para o lado desarrazoado do ativismo judicial. Esse é o jeito à brasileira de aparar as arestas do problema do excesso da duração do prazo da prisão preventiva, como denuncia Ribeiro (2020) [8]: "é um prazo cuja consequência por descumprimento é igual a obrigação original. O que, portanto, deixa de ser um prazo".
Mesmo assim, a doutrina crítica da ciência jurídica não deixou ser amordaçada por imposição vertical da Corte e, diuturnamente, denuncia o esvaziamento provocado ao sentido da proteção de direitos e garantias, uma vez que o STF, por meio de decisão, expurgou a sanção de ilegalidade da prisão preventiva diante da inobservância do prazo de reavaliação prevista na lei.
O grito de alerta é para tonar audível a imposição ope legisi ao judiciário, que reavaliará os motivos da prisão cautelar preventiva no lapso nonagesimal de tempo, sob pena de ser declarada ilegal de plano e ser relaxada imediatamente.
Essa garantia não pode ser furtada do cidadão por alegação de inconstitucionalidade do dispositivo legal arguido e abstração de bens juridicamente tutelados. Inclusive, no próprio julgamento das ADIs citadas, o ministro Edson Fachin ressaltou o caráter excepcional da prisão e importância de manter a sanção da revisão nonagesimal [9]: "Não há razões para se supor, uma vez reconhecido o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário, que o direito abstrato à segurança deveria se sobrepor à regra geral da locomoção para, nos termos propostos na inicial, invalidar a exigência de revisão nonagesimal da prisão preventiva".
O protagonismo deve ser dos direitos e garantias fundamentais em matéria penal como instrumentos de defesa do indivíduo em face do poder punitivo do Estado. Pois a prisão preventiva não deve persistir ad aeternum no plano dos fatos e, consequentemente, expurgar o argumento do excesso de prazo.
A denúncia epistemológica é de que não se deve premiar a inércia ou negligência do órgão julgador, retirando o sentido literal e finalístico do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Porque a correta interpretação da lei é que se a prisão preventiva não for revisada dentro do prazo estipulado por aquela deve ser automaticamente relaxada.
Assim, resta claro e cristalino qual o sentido hermenêutico deve ser adotado para subsunção do fato à norma, na busca de equilibrar as forças entre o peso punitivo do Estado e a liberdade ambulatorial do cidadão.
[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6ª ed., Freitas Bastos, 1957.
[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal : introdução crítica. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6581. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1487363036/inteiro-teor-1487363049. Acesso em: 15 outubro. 2022.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6582. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1487363038. Acesso em: 15 outubro. 2022.
[5] STRECK, Lenio Luiz. Ao reescrever o artigo 316, STF torna prisão preventiva sem prazo. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-19/streck-reescrever-art-316-stf-torna-preventiva-prazo. Acesso em: 05 novembro. 2022.
[6] SILVA, Frederico Pessoa e DIAS, Giovanna. ADIs 6.581 e 6.582 e a revogação automática da prisão preventiva. Revista Consultor Jurídico, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-19/diario-classe-adis-6581-6582-revogacao-automatica-prisao-preventiva#_ftn1. Acesso em: 05 novembro. 2022.
[7] COUTO, Leonardo e FERREIRA, Maycon. Sobre a revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva. Revista Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-29/couto-ferreira-necessidade-manutencao-preventiva. Acesso em: 05 novembro. 2022.
[8] RIBEIRO, Bruno Salles Pereira. A regra do jeitinho brasileiro na prisão preventiva e nos prazos. Migalhas, 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/334911/a-regra-do-jeitinho-brasileiro-na-prisao-preventiva-e-nos-prazos. Acesso em: 05 novembro. 2022.
[9] FACHIN, Edson. Voto do ministro Edson Fachin nas ADIs 6.581 e 6.582. Revista Consultor Jurídico, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/preventiva-revisao-90-dias-nao-causa1.pdf. Acesso em: 05 novembro. 2022.
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