Com a definição, pelo Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), da efetiva repercussão geral do Tema 1.119 ("Definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: 1) à necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e 2) à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente"), voltou ao debate o assunto fulcral da nova Lei de Improbidade Administrativa: a necessidade da prova do dolo por parte daquele que faz a acusação.
Porém, se é incontroversa a incidência presente e futura dessa exigência instalada pela Lei 14.230/2021, que inclusive define o que seria "dolo" na nova redação do artigo 1º da Lei de Improbidade ("§2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente"), a discussão merece ser travada quanto à aplicabilidade desse dispositivo a fatos pretéritos, sobretudo àqueles que já são objeto de processos judiciais.O tema pode ser assim sintetizado: a nova lei tem (ou não) eficácia imediata? É isso que está em jogo: na medida em que ela é válida, a sua eficácia incide sobre atos e processos que já existiam quando de sua edição? Ou só se aplica a fatos ocorridos a partir dela? A existência de um processo judicial em curso é circunstância apta a impedir a eficácia da lei nova? Haveria, portanto, uma sobrevida à lei revogada?
A solução talvez esteja em cogitar de eficácia imediata (presente e futuro), eis que a tradicional ideia de (ir)retroatividade causa alguma confusão. Ela traz consigo a fumaça de que estaríamos mexendo em algo que não mais existe. Todavia, quando falamos da incidência da lei nova a fatos pretéritos, estamos tratando sim de eficácia atual, presente, dessa mesma lei. Isso em contraste com a anterior, que já não mais existe porque foi revogada.
Logo, a pergunta é: a lei revogada pode hoje ser aplicada a fatos pretéritos, mesmo se prejudicar direitos fundamentais? Isso porque a estruturação constitucional dessa ordem de incidência da lei no tempo gira em torno da proteção de direitos fundamentais. Esse é o ponto de partida do raciocínio: tanto a proteção ao ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada (artigo 5º, inciso XXVI), quanto a aplicação imediata da lei penal mais benéfica (artigo 5º, inciso XL). Ambos os temas são direitos-garantias fundamentais — e assim merecem ser interpretados.
Mas, atenção: a lógica dos direitos fundamentais não é apenas o ponto de partida, mas também o de chegada. A eficácia da lei no tempo deve ser interpretada de molde a maximizar os direitos fundamentais. Não pode amesquinhá-los. Se houve contraposição — material, formal, cronológica, qualquer uma —, há de se conferir protagonismo aos direitos e garantias fundamentais. E o tema do direito punitivo abrange as leis penais em sentido estrito e também todas as demais leis com efeitos penais: punições que não são meramente civis-patrimoniais, mas envolvem bens não disponíveis.
O que a Constituição consagra é o direito fundamental de que a pessoa só pode ser punida se houver lei vigente ao tempo do ilícito e da punição.
Ou seja, se a conduta foi praticada ao tempo da lei e se esta vige no exato momento de aplicação definitiva da sanção: naquele instante em que o ato judicial se torna real, concreto, exigível sem direito a recursos contra a decisão que o proferiu.
Por isso que não parece constitucional punir hoje, com fundamento em lei que não mais existe (ainda que o fato tenha sido praticado ao seu tempo e até se o processo judicial esteja em desenvolvimento). Mesmo porque a capacidade punitiva do Estado precisa ser entendida restritivamente e só existe em decorrência da lei, inclusive quando da definição de se houve (ou não) um ilícito punível.
O direito punitivo — tanto o penal, quanto o administrativo e político — não é imune a essa estruturação constitucional. Se não fosse assim, bastaria ao legislador transformar em ilícitos administrativos todos os crimes, e estariam aniquiladas as garantias constitucionais penais. O que a Constituição impede é a persistência dos efeitos punitivo-penais da lei revogada.
Porém, quando a lei nova terá bloqueada a sua eficácia? Para aqueles casos transitados em julgado. A coisa julgada bloqueia sua incidência, eis que o caso já havia sido julgado à luz da lei vigente. Logo, não haverá julgamento nem aplicação da lei: não se está diante de dúvidas quanto à eficácia. Ela não incide em face da coisa julgada material nem tem efeitos rescisórios.
O tema da aplicação das leis no tempo é essencial ao Direito Constitucional. Reflete o significado da segurança jurídica, valor essencial a qualquer sistema punitivo. O STF terá uma grande oportunidade para consagrar esse princípio fundante do constitucionalismo contemporâneo.
*artigo publicado originalmente em O Globo