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A ilegalidade do circuito fechado no fretamento colaborativo

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  • é head of litigation na Buser Brasil graduada pela Faculdade de Direito da USP pós-graduada em Processo Civil Direito dos Contratos Compliance e Controles Internos e Gestão de Negócios e advogada atuante no contencioso consultivo cível e arbitragem além da área contratual.

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  • é litigation counsel da Buser Brasil graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pós-graduada em Processo Civil pela mesma instituição e advogada atuante em contencioso cível e arbitragem em casos envolvendo matérias de Direito Civil contratos regulatório infraestrutura e Direito Administrativo.

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30 de abril de 2023, 8h00

Em sede de Agravo de Instrumento interposto no Mandado de Segurança Coletivo impetrado pelo Sindicato das Empresas de Processamento de Dados e Serviços de Informática do Estado de São Paulo (Seprosp) [1], uma decisão inédita, proferida pelo desembargador federal Marcelo Saraiva, da 4ª Turma do TRF-3 [2], colocou em xeque a legalidade da regra do "circuito fechado", um dos principais entraves para o livre exercício das atividades desenvolvidas pelas plataformas de transporte coletivo de passageiros, que consiste na ideia de que, em viagens de fretamento, o trecho de ida e o trecho de volta devem ser realizados no mesmo veículo e com a mesma lista de passageiros — consoante disposto no artigo 3º, inciso XIV, da Resolução ANTT 4.777/15, que disciplina o tema.

Ao fretador que desobedecer a essa regra pode ser imposta sanção e até ter o seu ônibus apreendido pela agência fiscalizadora durante a viagem. A apreensão do ônibus gera a necessidade de transbordo dos passageiros, o que gera desconforto, descontentamento e até mesmo insegurança por parte dos passageiros. E essa regra, vale dizer, que só existe no transporte rodoviário, aplica-se somente às viagens realizadas por transporte coletivo de fretamento (as viagens regulares, aquelas das "empresas de rodoviária", não precisam segui-la). E não há aparente justificativa plausível para esse tratamento diferenciado.

Nos dias atuais, em que a economia compartilhada veio para reduzir os custos de transações (no caso específico do mercado de transporte rodoviário de fretamento, essa redução dos custos é facilmente percebida ao se diminuir a ociosidade dos ônibus), fica praticamente impossível acreditar que uma regra assim — antieconômica, para dizer o mínimo — ainda exista.

Felizmente o paradigma parece estar mudando, e a decisão judicial referida no início do texto é mais uma importante evidência dessa tendência, que encontra eco em situações passadas: em 2021, por exemplo, a Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (Seae) do então Ministério da Economia, por meio da sua Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (Fiarc), já havia declarado que a regra do circuito fechado é anticoncorrencial e causa um prejuízo anual ao país de cerca de R$ 1,055 bilhão. Com efeito, a Seae classifica a regra como "bandeira vermelha", o que significa "um ato normativo com caráter anticompetitivo", pois "verificados fortes indícios de presença de abuso regulatório que acarretem distorção concorrencial", "com efeitos potencialmente negativos sobre o bem-estar do consumidor".

A única razão de ser do circuito fechado, conforme também concluiu o estudo, é a criação de reserva de mercado, impedindo a entrada de novos concorrentes, retardando a inovação e a adoção de novas tecnologias, e, por conseguinte, prejudicando o ambiente de concorrência.

No âmbito legislativo, deputados federais estão trabalhando para derrubar a imposição do circuito fechado para o fretamento. Em dezembro de 2022, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados aprovou duas propostas de decreto legislativo com esse objetivo [3], deixando claro que entendem que a regra do circuito fechado é arcaica e importa em restrição à atividade econômica não prevista em lei.

Enquanto o Legislativo segue curso para a busca da aprovação de lei que revogue a norma do circuito fechado, o Judiciário começou a dar importantes passos no mesmo sentido. A mais recente decisão do TRF-3 [4] — na verdade, "decisões" [5], pois já são dois desembargadores com o mesmo posicionamento — traz um pouco de luz a esse conflito.

Do conteúdo das decisões é possível extrair o correto entendimento segundo o qual, para além das questões regulatórias e anticoncorrenciais, a insistência na aplicação dessa regra anacrônica e antieconômica ignora, simplesmente, a existência de um importante personagem, o consumidor — maior prejudicado com a limitação do seu poder de escolha [6].

Portanto, o circuito fechado é uma regra restritiva de direitos, criada por decreto e sem amparo em lei, que se opõe à autonomia de vontade das partes, impede novos entrantes no mercado, limita o direito de escolha do consumidor e impõe a ele uma venda casada de trechos de ida e volta.

Mas qual o papel das plataformas de intermediação e vendas de viagens nesse cenário?

A Buser, por exemplo, empresa brasileira que fomenta o transporte rodoviário, precursora do modelo "fretamento colaborativo", tem colecionado vitórias nos tribunais. A popularização desse modelo de negócio vem facilitando o entendimento do Judiciário, que tem mostrado cada vez mais aptidão para entender seus benefícios para a sociedade brasileira, especialmente para aquela parcela menos favorecida da população [7].

A tecnologia disruptiva de conexão das duas pontas — o transportador e o transportado – possibilita a otimização dos recursos ao tornar mais eficiente o encontro entre oferta e demanda, reduzindo a ociosidade das frotas dos fretadores (que se estima ser de mais de 29 milhões de assentos por ano [8]), assim como o custo final pago pelo viajante.

Quando analisado sob a ótica da oferta de transporte ao consumidor, os números também chocam: de 2019 a 2021, por exemplo, o transporte fretado apresentou queda de quase 15% no número de empresas atuantes, e entre os regulares, a queda foi de cerca de 32%. Como consequência da redução do número de empresas no setor de transporte rodoviário regular interestadual de passageiros, percebeu-se um aumento da concentração dos mercados, uma vez que a fração de mercados exclusivos, isto é, operados por uma única empresa, passou a ser de 73% em 2021 [9]. E entende-se que grande parte desses resultados poderia ser mitigado com o fim da regra do circuito fechado, permitindo maior liberdade econômica e atuação das empresas de fretamento, transferindo o poder de escolha da viagem ao próprio consumidor final.

De mais a mais, a conclusão é apenas uma: as restrições regulatórias impostas ao transporte rodoviário coletivo privado não possuem razão de ser e unicamente prejudicam a prosperidade do setor, além dos direitos do usuário do serviço enquanto consumidor.

Enquanto a regulação e a consequente concentração de mercado tendem a ignorar a evolução e a disrupção dos meios de transporte, a sociedade clama pelo livre acesso a um transporte rodoviário seguro, confortável e mais barato.

 


[1] Agravo de Instrumento n 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF-3.

[2] Referida decisão, vale dizer, foi ratificada posteriormente pela des. Monica Nobre, também da 4ª Turma, ao conceder efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto pela Buser (autos nº 5001433-26.2023.4.03.0000).

[3] PDL 494/2020e PDL 69/2022.

[4] Agravo de instrumento n. 5000213-90.2023.4.03.0000, TRF3.

[5] Efeito Suspensivo à Apelação n. 5001433-26.2023.4.03.0000, TRF-3.

[6] Não à toa a sentença proferida pela Justiça Federal de Porto Alegre, RS, declarou que modelos de negócios como o da Buser empoderam o consumidor, na medida em que “este, em última análise, é quem ganha com a possibilidade de utilizar de um fretamento coletivo para viajar a um mesmo destino com outros consumidores, que podem usar então de um modelo privado de transporte, caso entendam melhor e mais barato.” (Processo n. 5005487-53.2020.4.04.7100, 2ª Vara Federal de Porto Alegre/RS).

[7] De acordo com a Pesquisa sobre Perfil de Usuários Buser, 62% dos usuários da Buser declararam renda mensal de até 3 salários mínimos. Pesquisa disponível em: https://medium.com/transporte-colaborativo/pesquisa-sobre-perfil-de-usuarios-buser-2a-edicao-49fed6368689

[8] Quanto à ociosidade do transporte coletivo, estudo elaborado pela LCA Consultores em março de 2022 sobre a "Avaliação dos potenciais impactos da abertura do circuito de operação para atividades de fretamento turístico rodoviário" aponta que "Sob a ótica da oferta, com base em dados da ANTT, tem-se que em 2019 apenas 66,9% dos assentos ofertados em viagens interestaduais estiveram ocupados, o que representa um montante de cerca de 20 milhões de assentos vagos em todo o ano.

Já no que se refere ao serviço por fretamento, cerca de 26,3% da frota das empresas está ociosa nos dias úteis, segundo levantamento de 2017 da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). Tomando por base os dados cadastrais da ANTT, que apontam a existência de 25.449 ônibus, uma média de 42 assentos por ônibus e a hipótese que os ônibus ociosos poderiam ser utilizados ao menos uma vez por semana para realizar uma viagem de ida e volta, o serviço de fretamento acumularia uma ociosidade de 29,2 milhões de assentos por ano". Somando-se a estimativa de ociosidade entre fretamento e transporte regular, "é possível estimar que existam mais de 48,8 milhões de assentos ociosos ao ano, o que denota o baixo aproveitamento da capacidade instalada no setor. Em termos de receita, considerando o ticket médio do transporte rodoviário de passageiros em 2019 (R$ 108,449), o subaproveitamento da capacidade instalada do setor se reflete em um custo de oportunidade de aproximadamente R$ 5,4 bilhões de reais para o setor de transporte rodoviário de passageiros". O estudo encontra-se disponível em: https://medium.com/transporte-colaborativo/estudo-avalia-os-impactos-da-abertura-do-circuito-para-atividades-de-fretamento-turistico-783dab21d313

[9] Dados também obtidos pelo estudo elaborado pela LCA, acima referenciado.

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  • é litigation counsel da Buser Brasil, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pós-graduada em Processo Civil pela mesma instituição e advogada atuante em contencioso cível e arbitragem, em casos envolvendo matérias de Direito Civil, contratos, regulatório, infraestrutura e Direito Administrativo.

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