Direitos Fundamentais

A CIDH e o controle de convencionalidade de norma constitucional

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30 de abril de 2023, 10h43

A concepção — de há muito não meramente teórica mesmo nas Américas — de um constitucionalismo de múltiplos níveis, está, ao que tudo indica, para além dos importantes desenvolvimentos nas últimas décadas, em especial, ainda que de modo muito heterogêneo em termos quantitativos e qualitativos, alcançando um nível mais avançado.

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O que está em causa, ao fim e ao cabo, é a possibilidade de, no sistema interamericano de direitos humanos, implantar e fazer valer o controle de convencionalidade de norma constitucional por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o que, dito de outro modo, significa a afirmação da tese da prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a ordem jurídica interna, considerada na sua integralidade, dos Estados que os ratificaram e incorporaram à ordem jurídica doméstica.

O ensejo para a revisitação e fortalecimento de tal debate — e não apenas na seara doutrinária — foi oferecido pela própria CIDH, à qual, como notório, cabe o controle judicial externo de convencionalidade, por ocasião do julgamento, depois de transcorridos quase vinte anos ao longo dos quais se arrastou o processo —, em 12.04 p.p., do caso García Rodríguez y Alpízar Ortíz v. México.

Na histórica sentença proferida por ocasião do emblemático julgamento que contou com a participação do professor doutor Rodrigo Mudrovitsch, na condição de magistrado representando o Brasil, a CIDH condenou o México a eliminar a já de há muito polêmica figura da prisão preventiva "ex officio", além de declarar a responsabilidade internacional do Estado mexicano pela violação dos direitos à integridade pessoal, à liberdade pessoal, à igualdade em face da lei, às garantias judiciais e do direito à proteção judiciária, todos consagrados na Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Antes de prosseguirmos com a descrição do caso decidido há três semanas pela CIDH, calha relembrar que, ao julgar o caso Tzompaxtle Tecpile v. México, em novembro de 2022, a corte já havia declarado a incompatibilidade da prisão preventiva obrigatória com a Convenção Interamericana, determinando ao Estado do México, em termos genéricos, adotar todas as medidas necessárias para adequar a legislação não só à convenção, mas também aos parâmetros adotados pela corte na sua decisão e ao restante de sua jurisprudência aplicável ao caso.

O detalhe a ser sublinhado é o de que a CIDH não chegou a declarar explicitamente a inconvencionalidade do artigo 19 da Constituição mexicana, tampouco ordenou a realização de ajustes específicos no texto constitucional, o que acabou ocorrendo apenas no caso García Rodriguez y Alpizar Ortíz, objeto precípuo da presente coluna.

A condenação do México no caso ora examinado, importa frisar e desenvolver ainda que em apertada síntese, se deu a partir de uma denúncia feita por García Rodriguez e Alpizar Ortíz, em virtude do fato de terem ficado encarcerados por mais de 17 anos sem que fosse proferia uma sentença. Os denunciantes foram presos em 2002 sob a acusação da prática do homicídio da conhecida regente e pianista Maria de los Ángeles Tamés.

Note-se que a prisão se deu sem autorização judicial, sem que lhes fosse assegurado um advogado, ademais de torturados, ameaçados e constrangidos a assinar documentos. Durante todo o transcurso do processo, eivado de irregularidades, os acusados mantiveram firme a alegação de sua inocência, tendo sido colocados em liberdade vigiada e obrigados a usar um bracelete eletrônico. Todavia, em apenas duas semanas o denunciante Daniel García foi novamente preso de modo arbitrário, tendo a CIDH, quando do julgamento do caso, determinado o encerramento do processo e a libertação de ambos os denunciantes. Além disso a corte condenou o México a eliminar o registro dos antecedentes dos acusados, a investigar as torturas sofridas, oferecer tratamento médico e psicológico a ao denunciante Daniel y Reyes e pagar uma indenização no montante de USD 100 mil a cada um dos acusados.

Voltando agora à discussão em torno da inconvencionalidade de normas constitucionais, há que destacar que a Constituição Mexicana, em seu artigo 19, prevê — fixando o prazo máximo de dois anos — a figura da prisão preventiva de ofício, que implica o encarceramento automático, sem necessidade de autorização judicial e durante a primeira fase do processo, aos acusados de uma série de delitos previstos em lei (16 no total), dentre os quais, o feminicídio e o roubo praticado no interior de uma residência. Calha referir, ainda nesse contexto, que chegou inclusive a haver uma ampliação da lista, nela incluindo três delitos de natura fiscal, os quais, todavia, foram novamente excluídos por força de uma decisão do pleno da Suprema Corte de Justiça mexicana, no final de 2022.

À vista de tudo isso, a CIDH, no julgamento ora comentado, entendeu que o referido artigo 19 da Constituição do México, contraria frontalmente a Convenção Americana, especialmente pelo fato de não prever os fins da prisão preventiva, as situações processuais que buscam ser prevenidas e asseguradas, tampouco mencionando a exigência de uma análise da necessidade da medida em face de outras menos lesivas aos direitos da pessoa processada, como é o caso das medidas alternativas à prisão.

Além disso, ainda segundo a corte, o dispositivo constitucional tido como inconvencional, limita o papel dos juízes e chancela um ato imune a todo controle judicial efetivo, ademais de interditar a possibilidade do exercício do direito ao contraditório do acusado.

Outro ponto destacado na sentença da CIDH diz respeito ao tempo excessivo de aprisionamento preventivo, que se verifica em parte expressiva dos casos, e que, no caso dos denunciantes, acabou sendo o mais longo do qual se tem notícia no México. Quanto a esse aspecto, a corte — e aqui não de modo inédito — entendeu que nem a complexidade do caso e do processo, nem eventual atitude dos acusados, explica e justifica tal demora, que deve ser atribuída ao Estado.

Foi precisamente por tais razões que a CIDH ordenou que o Estado do México, no concernente à prisão preventiva oficiosa, adeque a sua ordem jurídica, incluídos seus preceitos constitucionais, de modo a assegurar sua compatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Agregue-se que o cumprimento da sentença da CIDH afeta diretamente a situação de milhares de pessoas encarceradas sem uma condenação judicial, ressaltando-se, contudo, que o julgado não implica a libertação automática dos presos, mas assegura a possibilidade de requerer ao juiz responsável por cada processo, a revisão da prisão.

Limitando-nos à declaração da inconvencionalidade do artigo 19 da Constituição mexicana, a despeito da existência e reconhecimento de uma série de outras violações da Convenção Americana de Direitos Humanos por parte da CIDH, já mencionadas, é o caso de, daqui para frente, tecer algumas considerações — com foco na realidade brasileira — sobre uma declaração de inconvencionalidade de normas constitucionais, ou seja, da afirmação da supremacia da Convenção Americana (e mesmo outros tratados do sistema regional de proteção) sobre todo o direito nacional.

Para tanto, iniciamos relembrando que a concepção de um direito constitucional multinível, atribuída a Ingolf Pernice, Catedrático Emérito da Universidade Humboldt de Berlim e um dos mais proeminentes ex-alunos do internacionalmente conhecido professor Peter Häberle, em termos gerais, se deve, ao fim e ao cabo, a um modelo próximo ao difundido conceito de bloco de constitucionalidade, mas, diferentemente deste, referente originariamente em especial à União Europeia.

Isso se deve ao fato, mais do que notório atualmente, não só mas principalmente no contexto da União Europeia (em boa medida aplicável à "Europa ampliada" sujeita à Convenção Europeia de Direitos Humanos e à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos) de um sistema normativo integrado, composto, grosso modo, pelo Direito constitucional Europeu (destaque para o Tratado de Lisboa e a nele contida Carta Europeia de Direitos Fundamentais) e as ordens jurídico-constitucionais nacionais, ainda que, do ponto de vista formal, seja, pelo menos para alguns, questionável designar o Tratado de Lisboa como a Constituição da União Europeia, visto que não aprovado como tal pela unanimidade dos Países que a compõe.

Nessa perspectiva, a noção de um constitucionalismo de múltiplos níveis pode não soar como precisa e adequada ao ambiente interamericano e seu sistema regional de proteção de direitos humanos e sua articulação com as ordens jurídicas nacionais e mesmo com o sistema universal da ONU, o que, em tese, só seria de fato rigorosamente cabível no caso de se atribuir à Convenção Americana (para ficarmos do documento geral basilar e orientador de todo o sistema regional) a condição similar a uma Constituição supranacional e seu reconhecimento como tal pelos países signatários.

Independentemente, contudo, de se ter como corretas as observações precedentes, o fato é que uma prevalência da Convenção Americana dos Direitos Humanos sobre o direito doméstico, inclusive constitucional, assim como a possibilidade de uma declaração de inconvencionalidade de normas constitucionais por parte da CIDH, não necessariamente depende, como igualmente sabido, do fato de reconhecer aos tratados/convenções internacionais a condição de Constituições. O mesmo pode ser dito em relação a uma posição a priori hierarquicamente superior dos tratados internacionais, no sentido da lógica que define a hierarquia normativa do direito nacional e que orienta não somente a possibilidade, como a necessidade (ainda que não mediante um controle jurisdicional, que de todo modo é a regra), de uma declaração de inconstitucionalidade da normativa infraconstitucional quando em dessintonia com as respectivas Constituições.

No caso brasileiro, como se sabe, houve — notadamente desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF) — importantes desenvolvimentos no que diz respeito ao papel do direito internacional dos direitos humanos no âmbito doméstico, isto seja no plano legislativo, seja em nível doutrinário e jurisprudencial.

No respeitante ao texto constitucional originário, os destaques são inegavelmente a inserção de um catálogo especificamente destinado a orientar a atuação do Brasil no plano das relações internacionais, que inclui a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF) e a inclusão, na já tradicional cláusula de abertura material do catálogo de direitos fundamentais (no caso da CF, o artigo 5º, § 2º) dos direitos consagrados nos tratados internacionais dos quais o Brasil for parte. Mais adiante, quando da promulgação da Emenda Constitucional 45 de 2004, ocorreu a inserção (limitando-nos ao artigo 5º) de dois novos parágrafos, nomeadamente o § 3º (estabelecendo que os tratados aprovados pelo Congresso Nacional por 3/5 dos votos, nas duas Casas do Parlamento e em dois turnos de votação, são equivalentes às emendas constitucionais) e o § 4º, que reconhece expressamente que o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

Em nível doutrinário, especificamente no que diz respeito ao valor jurídico dos tratados de direitos humanos no âmbito doméstico, são diversos os entendimentos, que vão desde a posição minoritária da prevalência dos tratados (sejam do sistema regional, sejam do universal da ONU) sobre todo o direito interno, inclusive constitucional, passando pela tese (dominante na literatura jurídica) da hierarquia constitucional (no sentido de normas materialmente constitucionais, em regra) do direito internacional dos direitos humanos, mas também advogando uma hierarquia supralegal e mesmo a hoje praticamente abandona tese da paridade entre tratados e lei ordinária.

Finalmente, no que diz respeito à jurisprudência do STF, que, ao fim e ao cabo, detém a prerrogativa de, no âmbito interno, dizer a última e vinculante palavra sobre a matéria, relembramos a posição dominante de partida, vigente até meados da primeira década do terceiro milênio, da paridade entre todos os tratados e lei ordinária, que acabou sendo substituída pelo igualmente majoritário, mas não unânime, entendimento da hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos, à exceção daqueles aprovados na forma prevista pelo § 3º do artigo 5º da CF, já referido, porquanto esses detém hierarquia equivalente a das emendas constitucionais.

Com isso, salvo nova mudança de entendimento do STF, o quadro atualmente posto — pela perspectiva da nossa Suprema Corte — em termos do controle de constitucionalidade e/ou convencionalidade do direito interno (portanto, em se tratando do segundo, aquilo que se chama controle interno de convencionalidade) é o de que o STF segue mantendo a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade de tratados de direitos humanos ratificados e incorporados pelo Brasil (o que, ainda que se trate de hipótese muito improvável, inclui, em tese, os tratados com hierarquia equivalente às emendas constitucionais), além da possibilidade (entre outros pontos que aqui não examinaremos dada a limitação de espaço) de um duplo controle, visto que se, por um lado, uma norma interna pode ser declarada inconvencional, isso não afasta de o mesmo juiz ou tribunal, reconhecer a inconstitucionalidade da convenção.

Já com base nas breves notas tecidas, soa razoável afirmar que mesmo prevalecendo a ainda majoritária posição do STF, que, de todo modo, já indica estar numa fase de gradual transição no sentido de uma posição paritária entre tratados de direitos humanos e a CF, isso de modo algum impede que a CIDH venha a declarar a inconvencionalidade de norma constitucional brasileira.

Isso porque não se faz necessário maior esforço para perceber que no plano do controle judicial externo de convencionalidade, o Brasil, queira ou não, enquanto não denunciar a Convenção Americana, segue a ela vinculado e sujeito à jurisdição da CIDH, podendo ser sancionado por eventual violação de preceito da convenção ou da jurisprudência da corte.

Por outro lado, sabe-se que o fato de uma condenação por parte da CIDH no sentido de ajustar o texto constitucional, não significa que tal mandamento — venha a ser cumprido pelo poder de reforma constitucional brasileiro (ou mesmo de outros países) ou mesmo que — à revelia da ocorrência de uma emenda constitucional — seja implementado por via de decisão jurisdicional, seja pelo STF, seja por outro órgão do Poder Judiciário.

Para além disso, mas absolutamente afinada com a matéria ora examinada, é de se refrescar a memória quanto ao fato de que o STF, depois de alguns julgados no sentido da proscrição da prisão civil de depositário infiel quando da fixação da tese da hierarquia supralegal dos tratados de direitos humanos, veio a afirmar categoricamente a impossibilidade de criação, inclusive pelo legislador, de qualquer modalidade de prisão civil além da prisão por dívida alimentar.

Em se considerando que o artigo 5º, LXVII, CF, dispõe que não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel, o fato de o STF ter proscrito toda e qualquer possibilidade de prisão civil que não a de natureza alimentar acaba, ao fim e ao cabo, por implicar uma revogação judicial da eficácia de norma constitucional

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