Opinião

O estupro virtual e sua (in)adequação ao crime previsto no artigo 213

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27 de abril de 2023, 7h18

O crime de estupro é uma violência presente no cotidiano, suas raízes remontam a matriz histórica patriarcal e misógina que constituíram (e constituem) o Brasil. A tipificação penal dessa prática criminosa, originalmente, conforme o Código Penal, em seu artigo 213, se dava pelo ato de constranger uma mulher, por meio de violência ou grave ameaça, à conjunção carnal. A referida disposição limitava o sujeito que podia ser vítima da violência (pessoa do sexo feminino) bem como o ato violento, já que para configuração do crime o constrangimento deveria ter como consequência a cópula vagínica.

Diante das alterações acerca da organização social e suas formas de estabelecer relações a partir dos instrumentos tecnológicos, o crime de estupro foi alvo de modificações por meio da Lei nº 12.015/2009, a qual conferiu à dignidade sexual, através de interpretações sistêmicas e teleológicas (GRECO, 2011), um patamar de relevância equivalente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro associou o artigo 213 (estupro) ao artigo 214 (atentado violento ao pudor), de modo que o crime de estupro teve sua definição alterada, e passou a ser configurado como a ação de "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso" (BRASIL, 1940).

Conforme se depreende da alteração normativa penal, duas espécies do crime de estupro passaram a ser identificadas, aquele proveniente da conjunção carnal, referente à ação copular não consentida, e a decorrente da prática de atos libidinosos. A conjunção carnal entendida como a ação copular entre homem e mulher, conforme Maggio define (2014) presume um atraso diante das matizes sociais, tendo em vista, a desconsideração da realidade dos casais homoafetivos junto aos elementos identificadores do estupro. Em relação aos atos considerados libidinosos na concepção de Capez (2010, p. 26), são definidos a partir de "qualquer ato destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual". É nesse contexto que a atualização normativa inclui o ato libidinoso na tipificação de estupro, reconhecendo que este ocorre independente do contato físico entre sujeito e vítima, pois para conferir constrangimento à vítima basta averiguar a existência de lesão à honra e dignidade para o enquadramento ao tipo penal em questão (GRECO, 2020), entendimento pacificado pelo STJ por meio da Súmula n° 593 [1]. Assim, a alteração legislativa provocou a ampliação nos requisitos de reconhecimento de atos abusivos configuradores do estupro, entretanto, retirou a existência do concurso material antes previsto [2] e passou a adotar a conjunção carnal acompanhada do ato libidinoso como único crime, o que automaticamente altera o cálculo da dosimetria da pena, de modo a reduzi-la. 

Este cenário possibilitou a abertura para o reconhecimento de uma nova modalidade de estupro, proveniente dos ambientes virtuais, o "estupro virtual", que impõe reflexões sobre a necessidade de tipificação específica. O referido crime se caracteriza pelo conjunto de práticas constrangedoras (envio de fotos, vídeos de nudez ou autoerotismo da vítima) efetuadas via aplicativos ou sites virtuais, em que a pressão psicológica se configura como principal elemento utilizado para o intento do sujeito que as pratica. (GUIMARÃES, 2017)

Nesse crime, o sujeito pode agir em decorrência de uma proximidade anterior com a vítima ou em contextos de total ausência de conhecimento e proximidade prévia, exclusivamente por meios virtuais, sendo comum em ambos os casos a utilização de fotos íntimas como objeto de chantagem para a vítima e de prazer ao criminoso.

Desse modo, verifica-se que para o reconhecimento do crime de estupro o elemento volitivo na condição do dolo, aquele imbuído de consciência acerca da ilicitude da conduta, se faz necessário. Nesse sentido, mesmo com a plena ciência do não consentimento da vítima, o agente realiza a prática criminosa, por meio de instrumentos virtuais que permitem um certo grau de anonimato a partir da moldagem em sua aparência e voz.

O estupro virtual atualmente se configura entre as diversas modalidades de sextortion, termo que se refere "a coerção psicológica, que […] apavora as vítimas" e assim, "[…] cede ao abuso de poder e se submete à prática sexual, sendo então fotografada ou filmada" (CASTRO, SYDOW, p. 23), correspondendo às vontades do sujeito em um ciclo vicioso. Ressalta-se que esse cenário é facilitado diante dos elementos mantenedores do ciberespaço.

Por reunir questões complexas e relacionadas a instrumentos ainda desconhecidos por parte da população e do meio jurídico, pois o Marco Civil da Internet (Lei n° 12.965/2014) não foi capaz de dialogar a respeito da deep web, da dark web, dos aplicativos/sites de conversas anônimas, dos programas que alteram a voz e a imagem, entre outros dispositivos, que se encontram à margem do Direito, esta é uma matéria que ainda possui pouca notoriedade pública.

A necessidade de tipificação do estupro virtual é palco de discussão, através do Projeto de Lei nº 3.628/2020 que tramita na Câmara dos Deputados de autoria do deputado Lucas Redecker (PSDB- RS). A medida objetiva adicionar o artigo 217-B visando propor o aumento das penas do crime de estupro de vulnerável e a tipificação da conduta perante sujeitos considerados vulneráveis, e por essa razão prevê alterações também na disposição do Estatuto da Criança e do Adolescente. O artigo 217-B do projeto de lei apresenta a seguinte disposição: "Assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, menor de 14 anos a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita" (PROJETO DE LEI n° 3.628, 2020), o qual estabelece como pena de reclusão, o intervalo de quatro a 12 anos. Como se verifica, o legislativo caminha no sentido de reconhecer esta prática, mas de forma limitada, apenas em alcance a indivíduos vulneráveis, sendo que todo e qualquer ser humano pode ser vítima de estupro virtual, sendo as mulheres aquelas mais afetadas, conforme os dados apresentados no Observatório Brasileiro de Violência On-line, da Universidade de Brasília (VALE, 2022) [3].

Em sentido semelhante, no ano de 2017 o TJ-PI [4], estabeleceu um importante precedente através do primeiro caso julgado no Brasil em que um homem foi condenado por praticar o crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, por meio virtual, ao criar perfis falsos no Facebook e executar atos de constrangimento contra sua ex-namorada. Mais recentemente, a sentença de um caso ocorrido em 2015 chamou atenção do mundo jurídico, em que um promotor de justiça no Rio Grande do Sul, conseguiu a condenação por estupro virtual. De forma diversa do que se constatou no caso datado de 2017, neste em específico, a vítima se tratava de uma criança de dez anos que trocava mensagens anônimas com um homem que se utilizava de componentes virtuais como um avatar e o nome falso para o incitar sexualmente por meio da câmera. O principal argumento da condenação foi no sentido de que não é preciso contato físico para o reconhecimento da conduta lesiva de estupro e que embora a vítima e o criminoso estivessem espacialmente em locais diferentes, quando considerando o contexto virtual, ambos se encontravam em mesmo ambiente. Desse modo, depreende-se que a prática do estupro virtual se trata de um crime impróprio que não se diferencia do crime praticado fora do ciberespaço.

Assim, nota-se que tanto o Poder Judiciário, por meio de reinterpretações como ocorreu nos casos aqui citados, quanto o Poder Legislativo por meio do debate de projetos de lei como o PL 3.628, já citado, avançam na tentativa de considerar as transformações da dinâmica social e suas possíveis repercussões na seara penal em relação ao crime de estupro, entretanto, essa evolução ainda é tímida. Isso porque, a globalização e os instrumentos digitais eliminam barreiras físicas, geográficas, éticas, entre muitos outros aspectos que dificultam o controle jurídico nesses espaços, além de possibilitar novas roupagens a ilícitos penais, como também o desenvolvimento de novas práticas criminosas. Sendo assim, a ausência de tipificação própria no que tange ao estupro virtual, gera impacto negativo no processo de identificação e punição desse abuso, tendo em vista o princípio da legalidade e intervenção mínima que regem o Direito Penal.

Diante das considerações realizadas, fica evidente que o meio digital não alterou as condutas consideradas ilícitas, apenas ampliou os meios para o seu cometimento, como verifica-se no estupro virtual, cada vez mais recorrente na sociedade da era digital. Assim, impõe-se reconhecer que a mera reinterpretação do artigo 213 em associação ao artigo 214, no intuito de introduzir os atos libidinosos igualmente como elementos caracterizadores do crime de estupro, bem como o projeto de lei nº 3.628/2020, que trata da temática de forma restritiva, apenas relativa aos sujeitos vulneráveis, não são suficientes para conferir uma tutela protetiva adequada, haja vista que as duas iniciativas se encontram efetividade limitada. No primeiro caso, pela consequente redução da pena, e no segundo, ao delimitar o estupro virtual ao contexto de vítimas que são caracterizadas como vulneráveis, o que gera lacunas a devida tutela de grupos que não se enquadram nesse rol, apesar de permanecerem sujeitos a essa prática criminosa.

É nesse sentido que a decisão proferida no último dia 4 de abril pela 8ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [5] merece destaque pela oposição ao conservadorismo legislativo, de forma a atuar como precedente sólido de argumentação em prol do reconhecimento da modalidade virtual nos casos de estupro, em específico para levantar a importância de se debater a questão, enquanto não se verifica a formulação de tipo penal que discorra sobre a problemática, suas condutas caracterizadoras e sanções específicas. 

Ainda nesse quadro, é importante o desenvolvimento de políticas públicas que visem o compartilhamento de informações, sob uma ótica formativa, sobre essa prática criminosa junto à sociedade civil e especialmente nas escolas para fomentar iniciativas de conscientização com oficinas e atividades educativas a fim de conscientizar as crianças a identificar atos que possam ser enquadradados como estupro virtual, além de integrar os pais na supervisão das redes.

Nessa perspectiva, também se mostra como fundamental a formação continuada dos operadores do Direito, já que a desinformação impacta igualmente o meio jurídico, na medida em que muitos agentes do poder judiciário sequer consideram a possibilidade do estupro virtual, por desconhecer as possibilidades e implicações das relações firmadas em ambiente virtual e assim descredibilizam ações voltadas a regulamentação do tema. É com base nesses direcionamentos que a construção da tipificação penal específica para o estupro virtual se faz necessária enquanto contributo para uma tutela efetiva de prevenção e repressão de tais condutas abusivas.

 


Referências

MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. O estupro e suas particularidades na legislação atual. 2014. Disponível em: <O estupro e suas particularidades na legislação atual (jusbrasil.com.br)>. Acesso em 17 abr. 2023.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.628, de 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2256711. Acesso em: 09 abr. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 10 abr. 2023.

BRASIL. Lei Nº 12.015, de 07 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940  Código Penal, e o artigo 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do artigo 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 11 abr. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n° 593. O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, [2017]. Disponível em: https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2017_46_capSumulas593-600.pdf. Acesso em: 08 abr. 2023.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2003.

CAPEZ, F. Curso de direito penal  parte especial. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. vol. 3.

CASTRO A. L. C; SYDOW S. T. Sextorsão. Revista Liberdades. São Paulo, edição nº 21 janeiro, p. 12-23, abril de 2016. Disponível em: https://ibccrim.org.br/media/posts/arquivos/26/Liberdades21_Artigo01.pdf. Acesso em: 11 abr. 2023.

Como promotor do RS conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil. BBC, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/04/04/como-promotor-do-rs-conseguiu-primeira-condenacao-por-estupro-virtual-no-brasil.ghtml. Acesso em: 10 abr. 2023.

CORNACHIONI, J. Karina, de Travessia, sofreu estupro virtual: o que é e como denunciar? Marie Claire, 2023. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/violencia-de-genero/noticia/2023/04/estupro-virtual-o-que-configura-o-crime-e-como-a-mulher-deve-denunciar.ghtml. Acesso em: 07 abr. 2023.

GRECO, R. Crimes contra a dignidade sexual. Jusbrasil, 2011. Disponível em: https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819865/crimes-contra-a-dignidade-sexual. Acesso em: 14 abr. 2023.

GRECO, R. Curso de Direito Penal: parte especial. 17. ed. Niterói: Impetus, 2020. 3 v.

Sommacal, C. L., & Tagliari, P. de A. (2017). A cultura de estupro: o arcabouço da desigualdade, da tolerância à violência, da objetificação da mulher e da culpabilização da vítima. Revista Da ESMESC, 24(30), 245–268. Disponível em: https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/169. Acesso em: 12 abr. 2023.

GUIMARÃES, André Santos. Estupro Virtual. Disponível em: http://www.justicadesaia.com.br/estupro-virtual-2. Acesso em 17 abr. 2023.

VALE, L. S. Humilhadas e perseguidas: a violência online contra a mulher no Brasil. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação, 2022. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/download/198634/183453/563213. Acesso em 13 abr. 2023.

 


[1] O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

[2] Concurso de crimes significa a prática de dois ou mais crimes, em que um não representa meio ou fim do outro, sendo cabível o somatório das penas.

[3] As maiores vítimas de violência online no Brasil são meninas e mulheres de 14 a 35 anos de idade, correspondendo a 75% das vítimas de violência na internet, sendo que deste número, 45% são estudantes.

[4] SILVA, D. Primeira prisão por estupro virtual no Brasil é decretada no Piauí. Tribunal de Justiça do Piauí, 2017. Disponível em: https://www.tjpi.jus.br/portaltjpi/tjpi/noticias-tjpi/primeira-prisao-por-estupro-virtual-no-brasil-e-decretada-no-piaui/. Acesso em: 15 abr. 2023.

[5] Processo Nº: 70080331317 que tramita em segredo de justiça. CAVALHEIRO, P. C. Confirmada condenação de universitário por estupro virtual contra menino de dez anos. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2020. Disponível em: Confirmada condenação de universitário por estupro virtual contra menino de dez anos – Tribunal de Justiça – RS (tjrs.jus.br). Acesso em: 15 abr. 2023.

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