Processo Novo

Liberdade, responsabilidade e transparência na internet: o que está em jogo?

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

26 de abril de 2023, 8h00

Os provedores de aplicações de internet devem ser responsabilizados por conteúdos gerados por usuários?

Spacca
O assunto, polêmico e complexo, ganhou contornos ainda mais graves em razão de eventos recentes relacionados a atentados ocorridos em escolas e da aparente omissão de plataformas de redes sociais quanto a evitar que conteúdos que façam apologia a ações criminosas de tal natureza sejam publicados.

As soluções para o problema são disciplinadas no Marco Civil da Internet e em outras leis, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil etc.

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) prevê, em seu artigo 19, que os provedores somente serão responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se não o tornar indisponível após ordem judicial específica. Isso se dá, segundo o texto legal, "com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura". Assim, como regra geral, a responsabilidade civil do provedor é tida por inexistente, salvo se houver descumprimento de ordem judicial específica.

Há exceção a essa regra. O artigo 21 do Marco Civil da Internet prevê que o conteúdo de natureza sexual de caráter privado deve ser tornado indisponível após o recebimento de notificação de seu participante. Nesse caso, portanto, a medida independe de ordem judicial.

Essa estrutura, é fácil perceber, acaba por atribuir ao Poder Judiciário a incumbência de controlar o que pode ou não ser veiculado em redes sociais.

Os provedores têm seus termos de uso e, com base neles, realizam alguma moderação ou restrição. No entanto, muitas publicações acabam escapando de tal controle. E mais: as regras de moderação estabelecidas pelos provedores podem ser excessivamente fracas, permitindo a publicação de conteúdos que atinjam bens fundamentais.

O Marco Civil da Internet não cuida de modo exauriente do tema. Os provedores de redes sociais são um "lugar" em que os usuários publicam conteúdos. Algoritmos bastante sofisticados identificam as características de usuários e definem o que a eles será exibido, bem como a quem suas publicações serão exibidas, podendo não apenas direcionar variados tipos de publicidade, mas, também, enviesar debates públicos. Mas, além disso — ou, talvez até, mais que isso —, as redes sociais não são tão somente ambientes em que se realizam negócios, mas elas próprias são negócios. O usuário pode ser visto também como consumidor de um serviço, embora também possa ser considerado, ele próprio, um produto. Isso atrai a incidência de outras regras normativas, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor ou do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Certamente haverá uma margem em que será difícil discernir, com bastante nitidez, se o conteúdo merece ou não permanecer publicado. Mas há hipóteses bastante preocupantes que têm escapado de moderações realizadas pelos próprios provedores. Os graves e recentes casos que têm sido noticiados na mídia sobre planejamento de ataques em escolas encaixam-se muito claramente no extremo.

A dúvida que se coloca, assim, está em se saber se é possível impor aos provedores esse dever de moderação mais forte, a ponto de responsabilizá-las caso não o observem.

Rigorosamente, a atual redação do Marco Civil da Internet não dá respostas satisfatórias a essas perguntas, e alguma reforma parece inevitável.

Certamente parte das dificuldades está no fato de que a natureza e as características dos direitos que se encontram em tensão nesses casos terem sido estabelecidas há bastante tempo e à luz de estruturas que não existem mais. Não faz sentido falar em liberdade de expressão nos contextos das variadas redes sociais hoje disponíveis na internet, bastante complexos, refinados, diversificados e de alcance mundial, à luz de conceitos que foram formulados para uma época em que havia apenas a mídia escrita e impressa em papel, de alcance bastante restrito.

Reformas legislativas bastam para resolver o problema? Há grandes chances de novas soluções normativas rapidamente ficarem desatualizadas. As próprias redes sociais encontram-se em mutação. As que hoje existem podem desaparecer em poucos anos, e novas, que não se ajustem às formas que hoje conhecemos, podem surgir a qualquer instante. Mas isso é próprio do momento histórico em que estamos inseridos e se manifesta também em outras áreas, em que conflitos sociais acabam sendo objeto de disciplina legislativa com algum atraso, como que a reboque de algo extraordinário ou que cause comoção. No entanto, é inevitável que seja assim, e nossos legisladores devem se preparar para dar conta desse desafio.

Ao menos no contexto brasileiro, a reação dos órgãos legislativos mostra-se bastante lenta. Desde 2020, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.630, que tem por finalidade instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A demora do Poder Legislativo em tratar de tema tão urgente acaba servindo de justificativa para a atuação mais incisiva de outros órgãos do Estado.

A inação legislativa é frequentemente recordada como a mais importante causa do ativismo judicial. Em casos como o aqui analisado, acaba se ampliando o âmbito de atuação do Supremo Tribunal Federal.

O ativismo do Supremo Tribunal Federal vem sendo criticado por muitos segmentos da comunidade jurídica — e nós mesmos o fazemos, em nossos comentários à Constituição [1]. É inegável, no entanto, que essa postura conta, se não com a absoluta complacência, ao menos com a tolerância dos outros órgãos do Estado. Não raro, por exemplo, integrantes do Poder Legislativo tomam a iniciativa de provocar a atuação do Supremo através de ações constitucionais que têm por objeto atos do próprio Legislativo.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet, neste momento, é objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, que discute sobre a constitucionalidade da "necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros". Nesse caso, o Supremo analisa a compatibilidade dessa disposição com várias regras constitucionais, inclusive aquelas relacionadas à tutela de direitos fundamentais do usuário, considerado consumidor na relação que tem com tais provedores.

Não se descarta, por exemplo, que o Supremo dê "interpretação conforme à Constituição" (prática comum na jurisprudência do tribunal, prevista no artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/1999) aos dispositivos do Marco Civil da Internet, a fim de estender as exceções previstas no artigo 21 da referida lei (relacionados à publicação de conteúdos de natureza sexual, como se mencionou acima) a outras hipóteses em que sejam colocados em risco direitos fundamentais previstos na Constituição. Ao julgar o referido Tema, o Supremo poderá aprovar tese nesse sentido, o que inevitavelmente ampliaria a responsabilização dos provedores de redes sociais. Uma decisão assim proferida, ainda que exarada sob as vestes da técnica "interpretativa" da "interpretação conforme à Constituição", talvez possa ser considerada mais que isso, inserindo-se entre o que doutrina e jurisprudência têm reconhecido como uma decisão "manipulativa", forma atípica de controle de constitucionalidade que vem ganhando espaço na prática da jurisprudência do Supremo [2], sobretudo diante da inércia dos demais órgãos do Estado.

A demora do Legislativo em disciplinar a matéria acaba abrindo espaço também para a atuação de órgãos do Poder Executivo. Exemplo: Recentemente, foi editada a Portaria nº 351 pelo Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública "para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais" (publicada no Diário Oficial da União de 13/4/2023). De acordo com essa Portaria, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) deverá "instaurar processo administrativo para apuração e responsabilização das plataformas de rede social, pelo eventual descumprimento do dever geral de segurança e de cuidado em relação à propagação de conteúdos ilícitos, danosos e nocivos, referentes a conteúdos que incentivem ataques contra ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores". A Senacon também deverá "requisitar que as plataformas de redes sociais avaliem e tomem medidas de mitigação relativas aos riscos sistêmicos decorrentes do funcionamento dos seus serviços e sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos". A portaria dispõe, ainda, que a avaliação de riscos sistêmicos deverá considerar os efeitos da propagação de conteúdos ilícitos, tais como o risco de acesso de crianças e adolescentes a conteúdos inapropriados para a idade, bem como o "risco de propagação e viralização de conteúdos e perfis que exibam extremismo violento, incentivem ataques a ambiente escolar ou façam apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores".

O principal fundamento da portaria, como se percebe, assenta-se no Código de Defesa do Consumidor. Assim, não se pode descartar que, como desfecho de processo administrativo que venha a ser instaurado, conclua-se no sentido da suspensão dos serviços da atividade desenvolvida por algum provedor, em razão da "inadequação ou insegurança do produto ou serviço", nos termos do artigo 58 da legislação consumerista.

De certo modo e em alguma medida, a Portaria nº 351 do Ministério da Justiça avança em aspectos que, a rigor, haveriam de ser disciplinados no contexto do Projeto de Lei nº 2.630/2020. Não se descarta que a própria aplicação da Portaria sofra resistência por parte dos provedores, que acabarão por "judicializar" também a sua incidência em casos como os que vêm sendo noticiados.

Não existe vácuo de poder. Se o Legislativo não disciplinar a matéria — inclusive alinhando-se ao que já vem sendo previsto em leis de outros países —, acabará por justificar a atuação dos Poderes Executivo e Judiciário, os quais, por sua vez, se também se mantiverem inertes, virão a justificar que o assunto seja cuidado pelos próprios provedores, cada um a seu modo, como se cada um desses ambientes fosse regido por "lei" própria. Mas isso é injustificável e intolerável em um Estado que se pretende Democrático e de Direito e que se ocupa com a realização de direitos fundamentais. E é assim que, enquanto não se vê chegar a atualização legislativa, estamos a assistir uma atuação mais ativa de órgãos do Executivo e do Judiciário, mesmo que num primeiro momento de modo imperfeito, ainda que necessariamente deva se submeter a uma constante atualização e correção de rumos. Mas isso é inevitável, em se tratando de ambientes novos, dentro dos quais surgem dilemas de certo modo inéditos, para cuja solução os antigos e tradicionais princípios já não funcionam de modo suficiente ou satisfatório, e os princípios que haverão de disciplinar essas relações ainda estão sendo construídos.

 


[1] Cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (7.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2022, comentário aos artigos 2.º e 102 da Constituição; mais informações: https://bit.ly/obras2023).

[2] Cf. análise que fazemos em Constituição Federal Comentada cit., em comentário ao artigo 102 da Constituição.

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    é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM, ex-visiting scholar na Columbia Law School, em Nova Iorque (EUA), ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, advogado, árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

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