Opinião

Ocupação x invasão: os movimentos sociais e a luta por direitos

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25 de abril de 2023, 17h28

A CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), maior representação dos produtores rurais do Brasil, pretende inibir a atuação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que é o movimento social mais conhecido do país.

A pergunta que fica é: a CNA de fato tem razão ao afirmar que o MST invade terras? É o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

Luciney Martins
Luciney Martins

Dos argumentos da CNA
Em sua petição inicial o CNA afirma o seguinte: "As invasões de propriedades rurais — e sua incitação — são crimes em qualquer contexto (artigo 150; artigo 161, § 1º, II; e artigo 286 do Decreto-Lei no 2.848, de 7/12/1940 – Código Penal)" [2].

Vejamos o que diz cada um desses artigos do Código Penal:

"Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.
Art. 161 – Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa.
§ 1º – Na mesma pena incorre quem:
II – invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório.
Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa."

De antemão, urge frisar que não se aplica aos atos praticados pelo MST nenhum dos referidos tipos penais.

O artigo 150 do Código Penal não se aplica porque os atos do MST não são realizados de forma clandestina ou astuta, mas sim de forma pública como reconhece a própria CNA, com as pessoas sendo chamadas aos olhos de todas e todos para que abracem a luta pela produtividade das nossas terras. Inclusive, após as ocupações, o MST levanta suas bandeiras para que as pessoas possam ver que lá se encontra um movimento social.

Também não há o que se falar em aplicação do artigo 161 do Código Penal em seu § 1º, inciso II, porque não existe por parte do MST o especial fim exigido previsto em lei de "esbulho possessório", pois a finalidade do MST, em verdade, é tornar uma terra improdutiva em uma terra produtiva, garantido, assim, o trabalho para pessoas que não possuem nem emprego nem terra e colaborando com a alimentação de todas e todos, sendo o MST o maior produtor de arroz orgânico do Brasil [3].

Por fim, a partir do momento em que não há crime na conduta do MST, não há o que se falar em aplicação do artigo 286 do Código Penal por total ausência de incitação de crime, uma vez que a incitação do MST, em verdade, é por uma reforma agrária popular [4].

Desse modo, aos que, tal como a CNA, imputam ao MST a prática de crimes, o fazem por confundir dois institutos, quais sejam: a invasão e a ocupação, porém eles representam realidades distintas, tal como será visto no próximo tópico.

Ocupação x invasão
Infelizmente, muitas pessoas tentam criminalizar os movimentos sociais que lutam por moradia dizendo que eles invadem a propriedade das pessoas, mas isso não é verdade, pois não podemos confundir invasão com ocupação.

Invadir é quando você entra sem permissão em uma casa que cumpre sua função social. Assim, se alguém mora em uma casa ou produz em sua terra, nenhum movimento social vai entrar na referida propriedade.

O que o movimento social faz é uma ocupação. E o que é ocupar? É quando se entra em uma casa, prédio ou terreno que não cumpre sua função social, que está abandonado. Assim, o movimento dá uma função social, seja moradia ou produção, para um bem abandonado.

Frise-se que o artigo 5º da Constituição 1988, seguindo a linha existente desde a Constituição de 1967 [5], prevê: "XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social".

Desse modo, no mesmo momento em que assegura o direito de propriedade, a Constituição de 1988 afirma que ela deverá ter uma função social, com a possibilidade de o poder público desapropriar as propriedades improdutivas [6], não sendo o direito de propriedade um direito absoluto, mas sim relativo e condicionado [7], exigindo que os proprietários deem alguma utilidade para suas propriedades. Assim, quem comete um ilícito não é quem ocupa uma terra improdutiva para produzir, mas sim quem abandona uma terra sem morar ou produzir nela, sendo o Brasil um dos países que mais possui terras improdutivas no mundo [8].

Logo, os movimentos sociais de moradia cumprem um papel importantíssimo para a nossa sociedade garantido teto e trabalho para as pessoas, que é, como afirma Jorge Miranda, uma das dimensões da dignidade humana [9], sendo muito melhor para todas e todos um terreno abandonado virar uma moradia ou um local de trabalho produtivo do que continuar como foco de doenças e de outras mazelas.

Conclusão
É uma pena que até a presente data ainda tenhamos políticos, empresários e pessoas influentes buscando a criminalização dos movimentos sociais.

Os movimentos sociais representam a luta por direitos que, diretamente ou indiretamente, beneficiam todas e todos. Para se ter uma ideia, durante a pandemia o MST doou mais de sete toneladas de alimentos para pessoas com fome [10] e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) possui o projeto Cozinha Solidária [11] para garantir alimentos para quem tem fome.

No mais, basta comparar o antes e o depois de uma propriedade ocupada por um movimento social para se perceber que onde havia degradação e abandono sempre passa a existir vida, felicidade e produção.

Enfim, que o STF não acolha os pedidos da ação judicial da CNA e que possamos ter outro olhar para o MST e para todos os movimentos sociais ao reconhecer que a luta deles é coletiva e em benefício de todas e todos, pois, como afirmava Paulo Freire, "ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão" [12].

 


REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 58ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ªed. São Paulo: Malheiros, 2004.

MIRANDA, Jorge. Direito Fundamentais, 2ª ed. Coimbra: Almedina, 201

 


[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p.168.

[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p.194.

[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34ª Ed. São Paulo: Atlas, 2020. p.847

[9] MIRANDA, Jorge. Direito Fundamentais, 2ªed. Coimbra: Almedina, 2018. p238

[12] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 58ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. p.7.

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