Opinião

As joias de Bolsonaro, o público e o privado no Brasil contemporâneo

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25 de abril de 2023, 13h29

Para entendermos o recente caso das joias sauditas que por pouco não adicionadas ao patrimônio do ex-presidente Jair Bolsonaro (as joias de que temos notícia), é essencial que analisemos as nuances dessa relação entre público e privado que o fez se sentir autorizado a agir de tal maneira.

A palavra que vem à mente quando falamos dessa confusão entre coisa pública e bens individuais é a mesma há mais de meio século: patrimonialismo. Mas esse é um conceito complexo e em constante disputa, razão pela qual devemos ir além da compreensão tradicional, para entendê-lo à luz dos fenômenos políticos de nossa época e da própria ideologia bolsonarista.

Para isso, precisamos entender o que se quer dizer por "patrimonialismo" no Brasil contemporâneo. Originalmente, a ideia de patrimonialismo remete a uma forma pré-moderna de dominação política a partir da confusão entre formas de governo do público e formas de controle do espaço privado, ou uma relação de semelhança entre o Estado e o particular que sobre ele tem algum controle.

Esse conceito weberiano será utilizado pelos sociólogos brasileiros para explicar as nossas próprias relações políticas de dominação com alguns ajustes. Raymundo Faoro opunha o patrimonialismo ao capitalismo moderno das sociedades industriais e o relacionava a um certo "capitalismo" de Estado vicioso e arcaico. A elite burocrática controlava a coisa pública como se fosse sua, o que gerava a manutenção de privilégios que não deixava a burguesia florescer adequadamente, o que por sua vez prevenia o desenvolvimento de uma democracia liberal clássica.

O patrimonialismo seria, portanto, um vício da sociedade manifestado em sua relação pouco republicana (no sentido literal da palavra) com o governo. A ausência do mercado na equação do patrimonialismo de Faoro gerou críticas de Jessé Souza, por exemplo. Para ele, é impossível explicar as nossas relações de poder a partir do conceito, vez que é frágil, a-histórico e pouco ou nada crítico às relações entre Estado, mercado e indivíduo comuns ao capitalismo, bem como ao papel das elites econômicas brasileiras nesse processo de dominação.

Todos os estados têm, em maior ou menor grau, uma relação viciosa com interesses privados. Esses interesses não deveriam conformar a coisa pública, mas o fazem mesmo assim. No entanto, mesmo que outras formas de conluio entre público e privado possam existir em outros lugares, a nossa forma é específica e historicamente posicionada. Ela é responsável, por exemplo, pela permanência autoritária apoiada por uma elite burocrática que apenas se enfraqueceu com a constituição de 1988 e a posterior reforma operada pela Emenda Constitucional nº 19/1998.

A presença desses privilégios ainda pode ser sentida em qualquer casa de qualquer um de nossos poderes. Não caberia, portanto, dizer que o patrimonialismo é um fenômeno inexistente, embora deva ser em muito repensado como fato e conceito. Ele de fato está longe dos exemplos trazidos por Weber inicialmente e não se encaixa completamente no seu uso por Faoro: a transposição do termo para a realidade brasileira ocorre a partir de uma historiografia hoje datada e se situa em um período anterior aos anos 60. Portanto, não dá conta dos processos políticos complexos que experimentamos nas décadas desde então e nem das diferenças entre a herança patrimonialista portuguesa e as características específicas da experiência brasileira — Lilia Schwarcz, por exemplo, coloca o patrimonialismo e o personalismo como elementos de nossa permanência autoritária. Devemos repensá-lo, portanto, à luz das experiências autoritárias recentes e a partir de algumas de suas muitas dimensões:

Primeira: a primeira dimensão patrimonialista é a da corrupção como entendida tradicionalmente, o desvio de recursos públicos para o patrimônio privado e para fins pessoais. Essa é a mais popular entre os canais de mídia e o que mais chama atenção da opinião pública.

Escândalos recentes incluem as já mencionadas joias; a utilização de aviões da Força Aérea Brasileira para transporte de drogas; e a utilização do cartão corporativo para pagamentos suspeitos de altos valores a pequenos estabelecimentos, bem como para alimentar — literalmente — motociatas.

Segunda: o uso do monopólio da força pelo Estado para fins privados, o que efetivamente faz com que o Estado abra mão desse monopólio, uma vez que, na prática, são os indivíduos privilegiados que assumem o controle da força estatal. É o caso das milícias, por exemplo: grupos armados e organizados cuja principal força provém do próprio Estado, que oferece pessoal (policiais, bombeiros, membros das forças armadas), armas (desviadas de quartéis e depósitos) e recursos financeiros (também fruto de desvios).

As milícias mantêm relações próximas a elite burocrática e a elite financeira do país, auxiliando na manutenção de seu campo de influência enquanto recebem proteção política e privilégios, em um esquema próximo à tradicional troca de favores que associamos ao patrimonialismo clássico.

Terceira: a política, caracterizada pela penetração de razões privadas na formulação de políticas públicas. O já antigo domínio dos discursos religiosos sobre o campo do discurso público se fortalece e impede o debate racional sobre assuntos de grande relevância política, em geral temas relacionados a direitos fundamentais. É o caso de soluções religiosas para problemas de saúde ou segurança pública, fenômeno que, nos últimos anos, tem gerado algo como um fundamentalismo de Estado.

A essa dimensão pertencem a multiplicação de comunidades terapêuticas para acolhimento e tratamento de usuários de drogas ou a abordagem pouco técnica adotada pelo Ministério da Saúde ao afirmar, em cartilha de junho de 2022, que "todo aborto é crime", ignorando o conceito de "excludente de ilicitude" aplicável às hipóteses do artigo 128 do Código Penal.

É possível que razões religiosas ou conservadoras disputem espaços com outras vozes. É comum que um discurso se sobreponha ao outro e isso faz parte do jogo democrático. O inviável em um modelo republicano é a afirmação de superioridade dessas razões sobre os discursos científicos ou jurídicos já comprovados ou legitimados social e politicamente.

Quarta: A escolha de ministros e integrantes da alta administração por razões exclusivamente pessoais. Podemos chamá-la de personalista por melhor representar esse traço político que muito se destacou nos últimos quatro ou cinco anos. No caso do governo Bolsonaro, os interesses pessoais guiaram a maior parte das escolhas políticas relevantes. De Damares como ministra dos direitos humanos a um diretor-geral da Polícia Federal que fosse fiel às vontades do presidente ou evitasse investigar a sua família. São todas decisões estratégicas que apenas o beneficiaram pessoalmente.

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ReproduçãoJoias apreendidas pela Receita Federal

Em outra chave, a escolha de seus filhos e apadrinhados para cargos importantes do executivo transformou a administração pública na casa de Bolsonaro, algo que poderia muito bem ser tema de reality show nos moldes de The Osbournes.

Aqui, as decisões políticas de alocação dos recursos humanos e de preenchimento de cargos de chefia obedecem à lógica da troca de favores e dos laços afetivos/de interesse, estabelecendo um "modelo" de governabilidade em que pouquíssimas decisões serão tomadas por razões práticas legítimas, e que poucas das autoridades tomadoras de decisão são, de fato, preparadas para isso.

Quinta: Por fim, precisamos nos perguntar qual o amálgama que mantém todos esses patrimonialismos unidos e operantes no Brasil. Aqui retomamos Jessé de Souza para tratar do mercado. É impossível entender a união entre público e privado no Brasil contemporâneo sem entender que a elite "burocrática" é, em verdade, condicionada pelos privilégios de classe, raça e origem. Isso significa dizer que não é qualquer agente privado que tem o poder de tornar sua a coisa pública.

Para isso, ele precisa de um suporte que só existe quando se alia o poder político ao econômico. E para aliar-se ao poder econômico, ele deve mobilizar seus privilégios e dialogar com as expectativas dessas elites que estão inseridas em uma lógica econômica neoliberal. Não é à toa que percebemos uma aproximação entre setores da economia brasileira, como o agronegócio, e o executivo ou o legislativo.

O patrimonialismo de Faoro era estamental, pré-moderno e impedia o florescimento de um capitalismo que orientasse uma nascente democracia liberal exatamente porque a burguesia não conseguiria participar do espaço político personalista, voltado em sua quase totalidade para a manutenção de privilégios e a troca de favores entre uma elite já formada.

Já o patrimonialismo brasileiro contemporâneo é voltado à manutenção e expansão de privilégios econômicos das classes dominantes que muito herdam das antigas elites, mas conjugam interesses nacionais e internacionais em seu campo de influência. Esse acoplamento dos grupos economicamente dominantes ao sistema político, marca do capitalismo neoliberal, encontra um terreno fértil na dinâmica patrimonial brasileira e age como mecanismo de manutenção da desigualdade, do racismo estrutural e da vulnerabilidade de determinados grupos sociais, especialmente aqueles cujos interesses conflitam diretamente com os de grupos econômicos poderosos — como é o caso dos indígenas que se opõem às atividades extrativistas em suas terras.

A confusão entre público e privado, portanto, é algo que vai muito além da incorporação de presentes à nação ao patrimônio do ex-presidente. A completa identificação entre Bolsonaro-pessoa e Bolsonaro-presidente indica que ele, seus seguidores e os setores políticos e econômicos que se aliaram ao bolsonarismo enxergam apenas um Brasil, não o Brasil público, de oportunidades e espaços democráticos de desenvolvimento econômico, social e individual; mas um Brasil que serve aos interesses privados, aos desejos de alguns e às expectativas econômicas de grupos historicamente privilegiados, hoje abarcados por um capitalismo que soube se adaptar às aspirações patrimonialistas e personalistas dessas classes.

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