Processo Familiar

A partilha de bens na união estável no registro civil das pessoas naturais

Autor

  • Mário Luiz Delgado

    é doutor em Direito Civil pela USP mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco professor de Direito Civil na Escolas da Magistratura e da Advocacia diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) ex-assessor na Câmara dos Deputados da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.

23 de abril de 2023, 10h22

A Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, ao regulamentar o artigo 236 da Constituição, dispôs sobre os serviços notariais e de registro, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Não se confundem as figuras do notário ou tabelião e do oficial de registro ou registrador, não obstante sejam ambos profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.

Spacca
O artigo 6º da Lei 8.935/94 prevê, entre as atribuições dos notários, "formalizar juridicamente a vontade das partes” e "intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade". Na prática, sempre foi da alçada desses delegatários a elaboração das escrituras declaratórias de reconhecimento e dissolução de união estável e partilha de bens.

A moldura normativa e as incumbências do RCPN (Registro Civil das Pessoas Naturais), por sua vez, encontram-se previstas nos artigos 29 a 113 da Lei nº 6.015/73 e nos artigos 9º e 10 do CC e dizem respeito aos atos de registro, de averbação e de anotação relacionados a fatos jurídicos que repercutam nos atributos da personalidade da pessoa natural, entre os quais o nascimento, o casamento, a constituição de união estável e o óbito.

A Lei nº 14.382/22, que instituiu o Serp (Sistema Eletrônico dos Registros Públicos), acrescentou o artigo 94-A à Lei de Registros Públicos, tipificando entre os instrumentos de formalização da união estável, passíveis de registro no RCPN, além da sentença judicial e da escritura pública, um instrumento particular a que denominou "termo declaratório de reconhecimento e dissolução de união estável".

O dispositivo acrescentado esclarece que "os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento e dissolução, bem como dos termos declaratórios formalizados perante o oficial de registro civil e das escrituras públicas declaratórias e dos distratos que envolvam união estável, serão feitos no Livro E do registro civil de pessoas naturais em que os companheiros têm ou tiveram sua última residência".

Vê-se que o legislador fez explícita distinção entre as escrituras públicas e os termos declaratórios, deixando claro não se tratar de instrumentos equivalentes ou equiparados. O termo declaratório é um instrumento particular a que a Lei excepcionalmente permitiu o ingresso no registro civil, mas que, de maneira nenhuma, lhe conferiu os atributos de instrumento público.

À guisa de regulamentar a Lei 14.382, foi editado, pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o Provimento nº 141 de 16 de março de 2023, alterando o Provimento nº 37 de 2014, para "tratar do termo declaratório de reconhecimento e dissolução de união estável perante o registro civil das pessoas naturais e dispor sobre a alteração de regime de bens na união estável e a sua conversão extrajudicial em casamento"[1].

O § 6º do artigo 1-A do Provimento 37 passou a fazer expressa referência aos "termos declaratórios de reconhecimento ou de dissolução da união estável no caso de envolver partilha de bens", enquanto o artigo 9-A, § 3º, menciona a hipótese em que "no requerimento de alteração de regime de bens houver proposta de partilha de bens", ao passo que o artigo 9-B exige, para a instrução do procedimento, "conforme o caso, proposta de partilha de bens".

A regulação do Serp pelo Provimento 141 abriu espaço para uma nova celeuma no âmbito do direito notarial e registral, atinente à pretensão de registradores civis de acrescer disposições sobre a partilha de bens, tanto no termo declaratório de dissolução da união estável, como no requerimento de alteração do regime de bens perante o RCPN.

Penso, no entanto, que a aplicação sistemática do Provimento 141, em consonância com o Código Civil e com a LRP, não permite essa interpretação.

No que se refere à partilha de bens decorrente da dissolução da união estável, entendo que ela não pode ser formalizada por meio de termo declaratório, pois haveria violação direta ao artigo 108 do Código Civil[2], sempre que a partilha abarcasse imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País, casos em que a escritura pública constitui requisito de validade, enquanto que a Lei nº 14.382 não alterou o dispositivo codificado, nem estabeleceu a equivalência entre os dois títulos (escritura e termo).

E, ainda que se admitisse a inclusão da partilha no termo declaratório, no caso de imóveis de valor inferior a trinta salários mínimos, de qualquer forma seria juridicamente impossível o ingresso posterior do ato na tábua registral imobiliária. A LRP, mesmo com os acréscimos da Lei do Serp e as modificações no Provimento 37, só possibilita que sejam levados a registro no RI os títulos elencados no artigo 221[3].

Sob o aspecto da legalidade estrita, o termo declaratório, que constitui instrumento particular, não está elencado entre aqueles títulos qualificados, não podendo ser tomado como sinônimo ou equivalente a nenhum deles. Instrumentos particulares com caráter de escritura pública são apenas aqueles contratos autorizados por Lei e celebrados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário. O termo declaratório, repita-se, não foi equiparado à escritura pública pela Lei nº 14.382.

Assim, interpretando o Provimento 141 à luz do Código Civil e da Lei nº 6.015, é de se concluir que a proposta de partilha de bens inserta em termo declaratório, a que se refere a norma administrativa, somente pode ter por objeto bens móveis, jamais imóveis, pouco importando o valor.

No que tange especificamente à partilha por ocasião da modificação do regime de bens, o artigo 9º-A, acrescentado ao Provimento 37, permite "o processamento do requerimento de ambos os companheiros para a alteração de regime de bens no registro de união estável diretamente perante o registro civil das pessoas naturais", aludindo, expressamente, que se houver proposta de partilha de bens no requerimento, "os companheiros deverão estar assistidos por advogado" (§3º) e que  "o novo regime de bens produzirá efeitos a contar da respectiva averbação no registro da união estável, não retroagindo aos bens adquiridos anteriormente em nenhuma hipótese, em virtude dessa alteração(…)" (§4º).

Explicando melhor: supondo um casal de conviventes que se submetia a um dos regimes comunitários (comunhão parcial ou universal de bens) e decide migrar para o regime da separação convencional. Os bens que se comunicaram até a data da mudança não sofrerão os efeitos do novo regime e serão objeto de partilha, que pode ser feita concomitantemente com o requerimento de alteração.

A questão que se coloca é se essa partilha poderia constar do próprio requerimento perante o RCPN, em razão do que dispõe o artigo 9º-A, acrescentado ao Provimento 37 pelo Provimento 141 do CNJ.

A resposta aqui comporta duas alternativas, a depender de a união estável encontrar-se ou não formalizada por escritura pública ou termo declaratório assentado no Livro E. Se havia formalização anterior, pode-se incluir a proposta de partilha no requerimento desde que envolva exclusivamente bens móveis.

Do contrário, ainda que abrangendo a partilha apenas bens móveis, não caberia fazê-lo no próprio requerimento, diante da impossibilidade de registro. Isso porque a Lei do Serp só permitiu que fossem levados ao RCPN as escrituras públicas, os termos declaratórios e as sentenças judiciais.

O requerimento de alteração de regime não foi mencionado no art. 94-A da LRP, não podendo ser tomado como sinônimo ou equivalente ao termo declaratório, em que pese sejam ambos instrumentos particulares.

Observo, por fim, que a justificativa, em forma de "considerandos", do Provimento n. 141 enaltece o “poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário dos atos praticados pelos serviços notariais e de registro".

Em outras palavras, a própria norma (regulamentar) afirma que pretende, tão somente, normatizar lei ordinária (Lei nº 14.382), que disciplinou a coleta do termo declaratório de reconhecimento e de dissolução de união estável, mas, em momento algum, dispôs sobre a possibilidade de se incluir a partilha de bens no bojo desse instrumento, muito menos no mero requerimento de alteração de regime, nem equiparou esses títulos, que são instrumentos particulares, à escritura pública.

Talvez o CNJ venha a esclarecer esses pontos em futuros provimentos, não se podendo deixar de elogiar a feliz iniciativa de simplificar a formalização da união estável.

Entretanto, não se pode olvidar que os provimentos são atos normativos de efeito interno, não possuindo força de lei. São editados pelo CNJ no exercício de atribuições administrativas com intuito de regular matéria de sua competência específica, não podendo contrariar ou invadir o domínio dos atos legislativos típicos. A sua interpretação deve ser feita sempre em harmonia com a legislação vigente.


[1] O Provimento define o termo declaratório como sendo a “declaração, por escrito, de ambos os companheiros perante o ofício de registro civil das pessoas naturais de sua livre escolha, com a indicação de todas as cláusulas admitidas nos demais títulos, inclusive a escolha de regime de bens”.

[2] Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

[3] Art. 221 – Somente são admitidos registro: I – escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros; II – escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes, dispensados as testemunhas e o reconhecimento de firmas, quando se tratar de atos praticados por instituições financeiras que atuem com crédito imobiliário, autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública; III – atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, legalizados e traduzidos na forma da lei, e registrados no cartório do Registro de Títulos e Documentos, assim como sentenças proferidas por tribunais estrangeiros após homologação pelo Supremo Tribunal Federal; IV – cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo. V – contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social, dispensado o reconhecimento de firma.

Autores

  • é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco, professor de Direito Civil nas Escolas da Magistratura e da Advocacia, diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFam, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), autor e coautor de livros e artigos jurídicos, advogado, parecerista, tendo atuado como assessor, na Câmara dos Deputados, da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro.

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