Direito Eleitoral

Imunidade de vereadores no Twitter: um caso de mutação constitucional?

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  • Isaac Kofi Medeiros

    é doutorando em Direito do Estado pela USP mestre em Direito pela UFSC sócio do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados pesquisador visitante na Sapienza Università di Roma membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep) e político.

18 de abril de 2023, 15h35

Quando a atual Constituição foi feita e aprovada, apple era só uma fruta para a maior parte dos brasileiros, a internet estava saindo da pré-história e vigia o Código Civil de 1916, segundo o qual mulheres eram civilmente incapazes. Como dialogar com as regras criadas por gerações anteriores? De lá pra cá, algumas coisas ficaram pelo caminho. A sociedade e suas tecnologias mudaram. No caso, o passar do tempo pode ter colocado em xeque o sentido do inciso VIII do artigo 29 da Constituição, que limitou a imunidade material para vereadores à circunscrição do município.

Enquanto estiver jogando em casa, o vereador é inviolável em suas opiniões, palavras e votos proferidos no exercício do mandato. Diferentemente de deputados e senadores, aqui a imunidade é condicionada por um critério territorial. Se cruzar a divisa, pode ser processado. O que acontece, porém, se a opinião do vereador é colocada, por exemplo, no Twitter, e viraliza, alcançando audiência estadual ou nacional? Segundo uma decisão recente do ministro Alexandre de Moraes, avanços tecnológicos podem ter redesenhado os limites da Constituição. Vamos por partes.

A jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) é relativamente clara, apesar de pontos fora da curva. A corte entende que as imunidades materiais de deputados e senadores podem ser invocadas em duas ocasiões: (1) quando o discurso estiver relacionado com o mandato (critério temático), ou (2) quando o parlamentar estiver, fisicamente, no Congresso Nacional (critério espacial).

Para vereadores, o STF fixou a tese de que "nos limites da circunscrição do município e havendo pertinência com o exercício do mandato, garante-se a imunidade ao vereador" (Tema 469, Repercussão Geral). A jurisprudência também confirma que, estando em plenário, o vereador tem imunidade. Em março deste ano, o ministro Alexandre de Moraes proferiu uma decisão que talvez jogue novas luzes sobre esses entendimentos. O vereador Afrânio Boppré, de Florianópolis, foi processado pelo então prefeito da capital, Gean Loureiro, por conta de uma publicação em rede social. O ex-prefeito alegou que a publicação era ofensiva e, mais importante, ultrapassara os limites da circunscrição municipal ao ser publicada na internet. O Tribunal de Justiça catarinense deu razão à Gean Loureiro, nos termos abaixo:

"In casu, a imunidade material resta afastada porquanto a manifestação não ocorreu em plenário ou na circunscrição municipal, mas para além dela, pois foi proferida em rede social e por meio da rede mundial de computares (internet), de modo que sua divulgação e circulação certamente extrapolou a localidade municipal, atingindo áreas ilimitadas (nacional e até mesmo internacional)."

O acórdão determinou a retirada da publicação e multou Afrânio. O ministro Alexandre de Moraes cassou o entendimento do Tribunal de Justiça (Recurso Extraordinário com Agravo 1.421.633/SC). A decisão do ministro dá prevalência ao critério temático em detrimento do espacial, para afirmar que, tratando-se de vereador de oposição fazendo críticas ao então prefeito, não seria possível restringir a imunidade por razões puramente geográficas. Num comentário curto, o ministro enfrenta o que me parece ser o X da questão:

"Ou seja, nos dias atuais caracterizados por avanços tecnológicos em que a internet se tornou um dos principais meios de comunicação entre os mandatários e o eleitor, não é mais possível restringir o exercício parlamentar do mandato aos estritos limites do recinto da Câmara Municipal."

Esse trecho, ainda que modesto, confessa uma mutação constitucional? Bom, mutação constitucional ocorre quando há mudança de contexto sem mudança de texto. Alterações da realidade tornam difícil ou impossível a aplicação literal do dispositivo constitucional, por razões sociais ou técnicas. Palavras talhadas em granito se tornam obsoletas. É como se partes da Constituição insistissem em funcionar em VHS. Para alguns pode ser vintage, mas no geral só atrapalha.

Por exemplo, de acordo com a jurisprudência do STF, o inciso XII do artigo 5º da Constituição protegia os dados de comunicação telefônica, mas não o registro de dados (HC 91.867, de 2012). Precisou acontecer uma Cambridge Analytica para o STF afirmar, num caso qualquer, que o dispositivo sofreu mutação de modo a estender essa proteção aos dados em si (HC 168.052, de 2020). O § 3º do artigo 226 da Constituição, escrito em 1988, reconhecia a união estável entre o homem e a mulher. O STF atualizou o contexto da regra para incluir uniões homoafetivas, logo, realizando uma mutação constitucional (ADI 4.277).

No Direito Constitucional comparado, dentre as constituições que mais sofreram mutações, destaca-se a norte-americana em função da sua longevidade. Tirando as emendas, é gramaticalmente a mesma desde 1787. Para que coubesse nessa roupa, juízes tiveram que fazer ajustes de interpretação de texto. Isso explica porque o mesmo princípio constitucional da igualdade serviu de fundamento para legitimar (doutrina separate but equal, no caso Plessy v. Fergusson) e deslegitimar (Brown v. Board of Education) a discriminação racial nos EUA. A primeira decisão é de 1896 e a segunda de 1954. O tempo mudou o contexto, mas não o texto, da Constituição dos Estados Unidos.

Trazendo ao nosso caso, precisamos entender a cabeça do constituinte de 1988. Na hierarquia política dos cargos legislativos, vereadores ocupam o primeiro degrau e têm uma atuação altamente localizada. Faz sentido que a imunidade tenha sido recortada para caber somente no território municipal, sobretudo à época dos primeiros telefones portáteis. A lei estaria concedendo um privilégio sem fundamento caso estendesse a imunidade para outros níveis da federação, pois essa prerrogativa em nada acrescentaria ao Poder Legislativo municipal.

Mas estamos falando de tempos analógicos, 1988, quando a militância política era presencial ou impressa. Assim, a limitação à circunscrição do município tinha um resultado positivo que atendia à finalidade da norma constitucional, de garantir oposição efetiva ao Executivo municipal sem conceder poderes exorbitantes aos vereadores.

Hoje, em larga medida, a política é guiada pelas redes sociais e vice-versa. A única dúvida sobre o papel delas na política é se vieram para fortalecer ou degradar a democracia, mas não há dúvida de que vieram. Pessoas são eleitas sem sair de casa. A internet faz o papel de mediação política tanto ou mais que os partidos. A oposição critica e denuncia o Executivo em praça pública digital.

A massificação da informação por meio das redes sociais impõe uma dificuldade tremenda em apoiar uma interpretação literal da imunidade dos vereadores. Fosse o caso, a manifestação política não-presencial estaria limitada a panfletos e veículos de imprensa de circulação local — e ainda assim com a condição de o conteúdo permanecer no município. No caso do vereador Afrânio, a publicação atravessou a ponte e alcançou uma audiência maior. Isto é apenas um efeito colateral inevitável do desenvolvimento das redes sociais, que não retira o caráter municipal da publicação. Seria muito diferente se o conteúdo publicado provocasse uma autoridade federal, por exemplo, circunstância em que a intenção de nacionalizar o debate seria evidente e, portanto, passível de repreensão judicial.

Além disso, se as redes sociais fossem sempre interpretadas como circunscrição extramunicipal, um vereador pensaria cinco vezes antes de tweetar uma crítica ácida ao prefeito. O custo de advogados e indenizações entraria na conta. Retirar a imunidade de vereadores nas redes sociais pode acarretar um chilling effect indesejável para a democracia. Levando em consideração que o fundamento das imunidades é deixar o parlamentar tranquilo para exercer sua função, teríamos um incentivo oposto.

Uma solução possível para essa encruzilhada entre o passado e o presente é reconhecer que o inciso VIII do artigo 29 da Constituição sofreu mutação. O Twitter e outros aplicativos se tornaram a nova praça pública e, a partir de agora, o termo circunscrição municipal deve incluir a abordagem de assuntos do município nas redes sociais. Fora desse eixo temático, não há imunidade. Essa interpretação garantiria fiscalização do Executivo pelo Legislativo sem concessão de privilégios desnecessários.

Claro que qualquer mutação constitucional deve ser reconhecida com prudência e moderação, sem embarcar em jornadas ativistas de interpretações excessivamente criativas. Não se trata de novilíngua; dois mais dois sempre será igual a quatro. Contudo, do jeito que é habitualmente entendido, do ponto de vista apenas geográfico, o inciso VIII do artigo 29 da Constituição não cabe no universo que foi aberto pelas redes sociais. O passado é uma roupa que não nos serve mais, disse Belchior.

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  • é doutorando em Direito do Estado pela USP e mestre em Direito do Estado pela UFSC. Advogado, professor universitário e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).

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