De acordo com o artigo 227 da Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à profissionalização.
Apesar de a CF/88 estabelecer que seria possível o trabalho de pessoa maior de 14 anos na condição de aprendiz (artigo 7º, XXXIII), foi só em 2000 que ocorreu a publicação da Lei nº 10.097/2000, que ficou conhecida como a Lei da Aprendizagem.
Essa lei define o que é aprendizagem e, com vistas a fomentar e regulamentar o acesso dos jovens ao mercado de trabalho, estabelece diretrizes para o cumprimento do artigo 428 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Segundo Bertaiolli, o diploma normativo
"preceitua a aprendizagem ser pacto de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 e menor de 24 anos, inscrito em aprendizagem, formação técnico profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar, com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação" (BERTAIOLLI, 2021).
A Consolidação das Leis do Trabalho estabelece os parâmetros para o cumprimento da cota, e dispõe que "os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional".
De acordo com a lei, todas as funções que demandem formação profissional estão incluídas na base de cálculo para o cumprimento da cota de aprendizagem.
Contudo, nota-se que diversos empregadores, tendo como base o poder diretivo (Rabelo, 2018), alegadas dificuldades no cumprimento da cota mínima e divergências quanto ao cálculo da cota legal, buscam reduzir essa base de cálculo, restringindo o alcance da política pública. Para tanto, acabam se valendo de negociações coletivas para tentar flexibilizar o cumprimento da cota legal de aprendizagem.
A aprendizagem é política de ação afirmativa que busca evitar a exploração desmedida e promover a inserção no mercado de trabalho com a proteção e garantia dos direitos dos adolescentes como pessoas em desenvolvimento. A inclusão social por meio do contrato de aprendizagem traz, além de formação profissional e inclusão qualificada no mercado de trabalho, renda para a subsistência do adolescente ou do jovem e sua família (Torzecki 2022, p. 6).
Para além desses aspectos, é de suma importância apontar que a aprendizagem profissional consiste em uma estratégia para a erradicação do trabalho infantil, além de promover a quebra do ciclo de exclusão social e facilitar a qualificação profissional (Sá, Souza e Correa, 2021, p. 121). Consiste, por isso, em importante ferramenta para a concretização da cidadania plena de jovens em situação de vulnerabilidade social.
Atualmente, a aprendizagem profissional é a única política pública de profissionalização para adolescentes em vigor no Brasil, restando clara a sua caracterização como medida de proteção legal do adolescente.
Já há estudos que concluíram pela grande relevância que o Programa Aprendiz Legal teve na vida de jovens pesquisados:
"Quase a totalidade se referiu ao programa como fator determinante na construção de suas vidas profissionais. Eles destacaram, em suas respostas, as oportunidades oferecidas a partir do programa de aprendizado. Citaram a conquista do primeiro emprego, a aquisição de experiência, a inserção no mercado de trabalho, a nova visão da vida profissional, a melhora na qualidade de vida (do ponto de vista financeiro), o crescimento pessoal, o 'ganho' de responsabilidade, entre outras. Eles perceberam que o Programa Aprendiz facilitou a entrada no mercado de trabalho e que essa inserção, sem o programa, poderia ter sido mais difícil" (Graebin, 2019).
Entretanto, tais vantagens na empregabilidade de jovens aprendizes encontram um limite na resistência do cumprimento da cota legal por parte das sociedades empresárias.
Diante dos obstáculos alegados pelas empresas, nota-se que o Brasil não atinge todo o potencial de contratação de aprendizes. Caso a lei fosse efetivamente cumprida, o número de aprendizes contratados no país poderia ser o dobro, já que, em abril de 2021, havia déficit de 53,5% de contratos ativos de aprendizagem (Sá, Souza e Correa, 2021, p. 125).
Tais números demonstram a resistência de implementação da cota legal, o que acaba esvaziando a efetividade da política de inserção dos aprendizes no mercado de trabalho.
Da base de cálculo para a cota legal de aprendizagem
O artigo 429 da CLT determina que a porcentagem de aprendizes deve ser calculada tendo em vista as funções que demandem formação profissional.
Já o Decreto nº 9.579/2018, no seu artigo 52, determina que, para a definição das funções que demandem formação profissional, será considerada a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho e Previdência.
O Decreto nº 11.061/2022, que modificou a lei de aprendizagem, incluiu os parágrafos 1° e 2° no artigo 52:
"§ 1º. Ficam excluídas da definição de que trata o caput: (Redação dada pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
I – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de nível superior, exceto as funções que demandem habilitação profissional de tecnólogo; ou (incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
II – as funções que estejam caracterizadas como cargos de direção, de gerência ou de confiança, nos termos do disposto no inciso II do caput e no parágrafo único do art. 62 e no § 2º do art. 224 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943. (Incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
§ 2º. Deverão ser incluídas na base de cálculo: (Incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
I – as funções que demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos de idade; (Incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
II – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de técnico de nível médio; e (Incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022)
III – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de tecnólogo" (Incluído pelo Decreto nº 11.061, de 2022).
De acordo com o disposto, o cálculo da cota se faz por todas as funções que demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos de idade.
A Instrução Normativa nº 146/2018, que dispõe sobre a fiscalização do cumprimento das normas relativas à aprendizagem profissional, determina como deve ser feito o cálculo:
"§ 6º. É incluído na base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados o total de trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional, utilizando-se como único critério a Classificação Brasileira de Ocupações elaborada pelo Ministério do Trabalho, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos."
A posição do Tribunal Superior do Trabalho e do Ministério do Trabalho e Emprego, considerando o disposto na legislação, é a de que a Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada pelo Ministério do Trabalho, é o critério a ser utilizado para a correta aferição da base de cálculo do número de jovens aprendizes a serem contratados.
Da flexibilização da cota legal de aprendizagem
Tendo em vista a natureza de algumas atividades desenvolvidas pelas empresas, alguns instrumentos coletivos passaram a conter cláusulas específicas que preveem a exclusão da base de cálculo da cota de algumas funções.
Há também casos em que os empregadores citam inúmeras dificuldades em encontrar trabalhadores aprendizes para suprir a cota legal, o que faz com que sindicatos acabem acatando tal alegação e pactuando instrumentos coletivos prevendo a flexibilização da reserva legal.
Na prática, a fiscalização do trabalho entende que o que não está excluído pela CBO deve ser incluído como base de cálculo para a aprendizagem. Dessa forma, faz caber na base de cálculo das cotas de aprendizes todas as mais diversas situações encontradas no dia a dia dos estabelecimentos. Assim, os empregadores alegam não que não há critério quanto às funções desempenhadas pelos aprendizes que perpasse pela análise cuidadosa da natureza das atividades efetivamente desempenhadas (Cebrasse, 2022).
Com a justificativa de melhor adequar o cálculo da cota de aprendizagem com a realidade, o número final de vagas que devem ser preenchidas por aprendizes é reduzido drasticamente.
Entretanto, a flexibilização por meio de instrumentos coletivos não se coaduna com os mais recentes julgados do Tribunal Superior do Trabalho, ápice do Judiciário trabalhista, que tem declarado a nulidade de cláusula contratual que exclui as funções de vigilantes, faxineiros, motoristas, dentre outras, da base de cálculo.
Todos os acórdãos mais recentes do TST têm adotado esse posicionamento, encampado pela Seção de Dissídios Coletivos (como exemplos: ROT-514-56.2020.5.17.0000; ROT-21697-80.2019.5.04.0000).
Imperioso observar que o Supremo Tribunal Federal entende que a obrigatoriedade da aplicação legal de cota destinada à aprendizagem profissional de jovens não guarda estrita relação com o Tema 1.046 de repercussão geral. A possibilidade de negociação da cota de aprendizagem não se encontra abarcada pela tese firmada no Tema 1.046, que decidiu que "são constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis".
De acordo, então, com o entendimento amplamente dominante, as políticas públicas de ações afirmativas não podem ser objeto de negociação coletiva que reduza ou restrinja seu conteúdo, por retratarem interesse difuso e indisponível de toda a sociedade brasileira.
Portanto, as cláusulas inseridas nas negociações coletivas que pretendam flexibilizar ou reduzir a cota de aprendizes são ilícitas e, portanto, inválidas, de acordo com o artigo 104, I e III, do Código Civil Brasileiro.
O objeto das cláusulas que buscam reduzir ou flexibilizar o cálculo da cota de aprendizes não diz respeito aos interesses coletivos da categoria de empregados, mas alcança matérias afetas a interesses transindividuais de toda a sociedade. Logo, aos sindicatos faltaria a legitimidade para consentir acerca de tais cláusulas, o que violaria o artigo 104, I, do Código Civil ("a validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz").
Além disso, o artigo 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho, ao estabelecer que constitui objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho a supressão ou a redução de medidas de proteção legal de crianças e adolescentes (inciso XXIV), teria vedado a alteração da cota de aprendizagem, que, como visto, trata-se de direito fundamental de crianças, adolescentes e jovens.
Esse entendimento também é encampado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho. No artigo 2º da Instrução Normativa 146/2018, consolidou-se que:
"§ 6º. É incluído na base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados o total de trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional, utilizando-se como único critério a Classificação Brasileira de Ocupações elaborada pelo Ministério do Trabalho, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos.
§ 7º. Em consonância com o art. 611-B, XXIII e XXIV, CLT, a exclusão de funções que integram a base de cálculo da cota de aprendizes constitui objeto ilícito de convenção ou acordo coletivo de trabalho."
Diante dos argumentos elencados, depreende-se que não há razão para que os sindicatos possam inserir em instrumentos normativos a previsão de que as empresas podem descumprir a obrigação legal de contratação de aprendizes no número determinado pela lei.
Para o integral cumprimento da cota, poderia o empregador contratar aprendizes maiores de 18 anos para laborar nas funções que sejam consideradas proibidas para menores, ou, ainda, com base no art. 66 do Decreto 9.579/18, valer-se da cota social como meio alternativo de cumprimento.
Deve-se ter em mente que a aprendizagem, caso efetivamente cumprida, é benéfica para o aprendiz e para as sociedades empresárias, podendo ser um valioso instrumento de inclusão de jovens em situação de extrema vulnerabilidade e de transformação social.