Opinião

O parecer consultivo de mudanças climáticas na corte da ONU

Autor

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

12 de abril de 2023, 15h28

Pode a Corte Internacional de Justiça (CIJ) pronunciar-se significativamente sobre as obrigações dos estados em relação às mudanças climáticas?

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O território de Vanuatu fica na Oceania
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Essa é a aposta dos 105 Estados copatrocinadores (numa iniciativa liderada pela República de Vanuatu) de um pedido de opinião consultiva aprovado por consenso no dia 29 de março de 2023 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

Este artigo visa a analisar o pedido de opinião feito pela Assembleia Geral, destacando a formulação das questões e a estratégia empregada pelos estados para obter uma pronúncia autoritativa do principal órgão judiciário da ONU. Brasil não foi um dos copatrocinadores originais mas outros Estados latino-americanos foram como Chile, Colômbia, Costa Rica e outros.

Após uma série de modificações e negociações internas entre os co-patrocinadores num longo período de cunhagem dos termos das perguntas — que efetivamente ambicionam direcionar uma resposta efetiva da Corte e evitar uma resposta ampla que pudesse ser redimensionada — a Resolução A/77/L.58 formulou as seguintes questões à CIJ:

a) Quais são as obrigações dos Estados sob o direito internacional para garantir a proteção do sistema climático ("climate system") e de outras partes do meio ambiente contra as emissões antropogênicas de gases de efeito estufa (GEE) para os Estados e para as gerações presentes e futuras?

b) Quais são as consequências jurídicas dessas obrigações para os Estados que, por suas ações e omissões, tenham causado danos significativos ao sistema climático e a outras partes do meio ambiente, em relação a:

1) Estados, incluindo, em particular, pequenos Estados insulares em desenvolvimento, que devido às suas circunstâncias geográficas e nível de desenvolvimento, são prejudicados ou especialmente afetados ou são particularmente vulneráveis aos efeitos adversos da mudança climática?

2) Povos e indivíduos das gerações presentes e futuras afetados pelos efeitos adversos das mudanças climáticas? [1]

Não seria exagerado afirmar que cada termo e construção frasal do pedido de opinião foi cuidadosamente escolhido e que possui uma específica finalidade. Antes de analisar os pedidos em si (B), e brevemente especular sobre o eventual significado da pronúncia da Corte (C) é necessário frisar alguns elementos contextuais que podem lançar luz às normas internacionais envolvidas no processo de pronúncia da Corte (A).

Quais normas podem estar envolvidas no pedido de opinião?
Se a maioria das obrigações internacionais positivadas diretamente endereçando mudanças climáticas impondo condutas a Estados encontram-se na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), o Protocolo de Kyoto, no Acordo de Paris de 2015 e nos compromissos posteriormente assumidos também nas declarações das contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), existe um conjunto de outras normas internacionais que podem se provar particularmente relevantes para responder ao questionamento da Corte.

Diferentemente da Opinião Consultiva de 1996 sobre a Legalidade de Ameaça ou Uso de Armas Nucleares em que uma lacuna jurídica existia e uma celeuma em relação ao conteúdo do direito dividia os Estados, a formulação da primeira parte da pergunta no Pedido de Opinião sobre Mudanças Climáticas é razoavelmente mais amplo. Não por acaso a maioria dessas normas foram referenciadas nos parágrafos introdutórios da própria opinião: os principais tratados multilaterais ambientais foram mencionados (Convenção da Biodiversidade, Desertificação, Proteção da Camada de Ozônio, entre outros), bem como as principais convenções envolvendo direitos humanos.

A inserção das obrigações de direitos humanos parece constituir uma novidade na medida que a prática recente dos órgãos internacionais (principalmente a Assembleia Geral e o Conselho de Direitos Humanos) tem conectado os impactos da degradação climática e ambiental ao gozo de direitos humanos. O reconhecimento do direito humano ao meio ambiente saudável desempenha um papel particularmente importante na resolução e no debate na medida em que grande parte do seu conteúdo ainda está por ser definido pela prática internacional.

O pedido de opinião parece sugerir que, ao responder a "(a) quais são as obrigações dos estados sob o direito internacional para…" uma leitura holística desses instrumentos possa oferecer esclarecimentos sobre o atual cenário de obrigações que Estados possuem tanto em relação a outros Estados como também em relação a seus indivíduos (pergunta b, 2). Mais do que isso, uma parte do pedido de opinião enfatiza a importância de "princípios relevantes e obrigações relevantes do direito internacional consuetudinário (…) para a conduta dos Estados ao longo do tempo em relação a atividades que contribuem para a mudança climática e seus efeitos adversos". Nesse ponto, a maneira como a Corte identificar as obrigações costumeiras do direito internacional presentes na Declaração de Estocolmo e na Declaração do Rio e sua aplicação no contexto de mudança climática pode constituir efetivamente inovação na matéria, em especial se conectada com os deveres de diligência devida já estabelecidos em sua jurisprudência (e.g. casos Pulp Mills e Costa Rica v Nicaragua/Nicaragua v Costa Rica).

Ao se considerar as obrigações de diligência e algumas obrigações de conduta presentes no Acordo de Paris, como o dever de não-regressão, por exemplo, a Corte poderia chegar ao detalhamento de obrigações presentes em diferentes tratados internacionais, conectando regimes jurídicos hoje em isolamento exceto por princípios gerais.

De uma certa forma, a lógica interpretativa que parece guiar os solicitantes da opinião é que a emergência climática declarada cientificamente pelos Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas e reconhecido na Resolução da Assembleia Geral "Proteção do clima global para as gerações presentes e futuras da humanidade" (A/RES/77/165) de 14 de dezembro de 2022 poderia gerar uma nova interpretação dos instrumentos jurídicos já existentes no cenário internacional. Uma interpretação do gênero não ocorrerá sem alguma divisão dos estados (e provavelmente Organizações Internacionais) durante as fases escrita e oral que possivelmente se seguirão após o recebimento do pedido de Opinião pela Corte.

O que os estados desejam juridicamente esclarecer?
Se a primeira parte da pergunta parece exigir como resposta uma lista de obrigações e sua aplicabilidade num contexto de mudanças climáticas, em especial as obrigações de caráter costumeiro, a segunda parte da pergunta entra num ponto em que parece existir efetiva controvérsia entre diferentes stakeholders da comunidade internacional. Isto porque ela é voltada às consequências jurídicas, por ação ou omissão, de estados que tenham causado dano significativo ao "sistema climático e outras partes do meio ambiente". Ou seja, fala-se de responsabilização internacional.

Nesse ponto, as idealizadoras da pergunta foram particularmente felizes para não incluir unicamente o regime de alterações das características da totalidade da atmosfera, hidrosfera, biosfera e geosfera e suas interações (artigo 13, UNFCCC), mas também seus impactos em outros regimes ambientais anteriormente reconhecidos internacionalmente. Desse modo, caso a CIJ responda a essa pergunta, poderá se manifestar sobre um regime de responsabilidade internacional tanto difuso ("sistema climático") quanto concentrado ("biodiversidade", por exemplo). Ou seja, a depender do conteúdo da opinião da Corte, não será apenas uma opinião sobre o direito internacional das mudanças climáticas, mas uma opinião consultiva sobre o direito internacional ambiental como um todo.

A pergunta não é desprovida de problemas para a definição da Corte como, por exemplo, o que seria um "dano significativo" ao sistema climático. Esses problemas porém podem constituir uma oportunidade para a CIJ, sem avançar demais no campo da legislação judicial, clarificar conceitos já utilizados no campo da responsabilidade internacional anteriormente desenvolvidos pelos Estados, como por exemplo no âmbito da Comissão de Direito Internacional.

Além do potencial de esclarecer as consequências de eventuais violações de Estados por ação ou omissão de obrigações internacionais relativas à proteção do sistema climático e outras partes do meio ambiente a gerações presentes e futuras, a subramificação da questão (b) é particularmente relevante na medida em que identifica dois grupos especiais para os quais os formuladores da pergunta parecem identificar consequências especiais. Em primeiro lugar, os Estados insulares. Mas não apenas. A lógica parece ser de que Estados insulares "devido às suas circunstâncias geográficas" e "nível de desenvolvimento", acabam por ser "prejudicados ou especialmente afetados ou são particularmente vulneráveis aos efeitos adversos da mudança climática".

Ao tecer consequências a essa categoria de estados, a Corte poderá contribuir efetivamente à noção de justiça climática e, utilizando-se do princípio costumeiro de responsabilidades comuns mas diferenciadas refletido no Princípio 7 da Declaração do Rio, identificar como o conteúdo desse princípio impõe ou não responsabilidades especiais dos estados desenvolvidos para os estados em desenvolvimento.

A segunda subramificação da questão (b) diz respeito às consequências jurídicas para povos e indivíduos (de gerações presentes e de gerações futuras). Também aqui os formuladores do pedido de opinião pareceram particularmente bem sucedidos em pedir esclarecimentos das consequências numa dimensão individual e coletiva, para além da dimensão interestatal. Com essa pergunta, a Corte poderá não apenas concentrar-se nas obrigações recíprocas dos Estados entre si, mas nas obrigações que Estados possuem com indivíduos e grupos de indivíduos no interior de sua jurisdição e, dada a própria natureza da questão climática, também extraterritoriais.

Pode a CIJ pronunciar-se significativamente?
Existem dúvidas sobre a Corte Internacional de Justiça, tradicionalmente percebida como um tribunal internacional estadocêntrico e, em muitos casos, de profícua contenção judicial, pronunciar-se significativamente sobre os questionamentos a ela colocados. Embora pouco fundada, existe a possibilidade que a Corte altere o conteúdo da questão (como já fez no passado, por exemplo na Opinião sobre Kosovo) ou delimite o escopo da pergunta apenas à identificação das regras existentes, sem avançar qualquer interpretação nova sobre responsabilização, deveres dos Estados em desenvolvidos em relação aos estados em desenvolvimento sobre cooperação e tecnologia para adaptação e mitigação das mudanças climáticas.

Certamente a Corte está ciente de que sua pronúncia nesse momento, apesar de não obrigatória, será dotada de grande autoridade e utilizada em casos contenciosos futuros em diversas instâncias. Isto porque opiniões consultivas são autoritativas pelo conteúdo do direito que identificam, não pelo receptáculo jurisdicional que as involucram. Seja como for, se os dois polos possíveis da Corte se mover é o ativismo judicial — em que avança interpretações sobre as regras existentes de maneira a transformar os regimes climáticos em instrumentos vivos de proteção e litigância — e a autocontenção judicial — em que meramente identifica obrigações — há muitos fatores que irão influenciar a posição da Corte.

Uma pronúncia significativa dependerá significativamente da manifestação dos Estados e eventualmente de organizações internacionais (em recente procedimento envolvendo Israel, a Corte permitiu a participação da Liga dos Estados Árabes e a Organização da Cooperação Islâmica a participar). Se 103 Estados dispuseram-se a participar do pedido de opinião consultiva, e dada à generalidade das perguntas feitas, é possível esperar uma alta participação. Essa participação poderá variar entre questões procedimentais e materiais.

Nas questões procedimentais, pode-se esperar manifestações envolvendo a formulação da pergunta, a discricionariedade da Corte em responder à opinião ou ainda a competência da Corte para se manifestar sobre temas em constante negociação pelos Estados. Desnecessário afirmar, há Estados que não desejam uma pronúncia troppo elaborada da CIJ e a melhor maneira de evita-la e fazer com que jamais exista. A Corte teria poder para declinar a resposta à pergunta — mas nunca o fez. Em verdade, em sua recente jurisprudência, é possível notar uma leve expansão na própria percepção da função consultiva da Corte. Sobre esses pontos procedimentais, talvez pese o fato de que a resolução foi adotada por consenso e patrocinada por um alto número de Estados de diferentes grupos do sistema ONU pese para sua superação.

Nas questões materiais, também é possível esperar um alto número de variações de teses jurídicas formuladas pelos estados. Pode também existir alguma divisão entre estados desenvolvidos e em desenvolvimento assumindo interpretações diversas em relação aos deveres de reparação e eventualmente, reproduzindo as lógicas que divisão assistidas nas conferências das partes dos acordos climáticos. Como de costume, a Corte sopesará a força desses argumentos e sua contundência. Ao Brasil, mais uma vez apresentar-se a ocasião de participar ativamente numa opinião consultiva, aumentando seu perfil de rulemaker através de procedimentos judiciais.

Corre contra a causa o fato de que os tempos não são abundantes. Na última opinião consultiva emitida pela Corte envolvendo uma grande questão como a autodeterminação dos povos sobre as Consequências Jurídicas da Separação do Arquipélago de Chagos, a Assembleia Geral adotou a resolução em junho de 2017 e em 1 março de 2018 Estados tiveram de apresentar suas alegações escritas (após extensão do prazo) em março de 2018 e comentários às outras alegações em maio de 2018. Audiências ocorreram em setembro de 2018 e a Corte emitiu sua opinião em 25 de fevereiro de 2019.

A Corte e seu secretariado terão certamente um desafio para gerenciar essa participação e a eventual participação indireta da sociedade civil na opinião consultiva. Assim como Estados terão o desafio de coordenar seus posicionamentos de política externa jurídica tanto em relação às outras duas opiniões consultivas em curso (perante o Tribunal Internacional do Direito do Mar e à Corte Interamericana de Direitos Humanos).

Responsabilidades comuns mas diferenciadas, equidade intergeracional, direito humano ao meio ambiente saudável. Noções avançadas de direito internacional ambiental que se desenvolveram rapidamente nos últimos 30 anos no interior da ciência jurídica internacional estão diante de um dos maiores e mais emblemáticos casos perante a Corte da Haia. Independente de qual for o resultado desse processo  do ativismo judicial à autocontenção  devido à emergência climática na qual se vive ele parece ter já se inscrito nos anais da história do direito internacional. A depender do quão significativa e autoritativa for a pronúncia da Corte também aumenta-se a sua percepção enquanto ator no combate aos desafios impostos pelas mudanças climáticas à comunidade internacional como um todo.


[1] No texto original da Resolução: a) What are the obligations of States under international law to ensure the protection of the climate system and other parts of the environment from anthropogenic emissions of greenhouse gasses (GHG) for States and for present and future generations?

(b) What are the legal consequences under these obligations for States where they, by their acts and omissions, have caused significant harm to the climate system and other parts of the environment, with respect to:

1) States, including, in particular, small island developing States, which due to their geographical circumstances and level of development, are injured or specially affected by or are particularly vulnerable to the adverse effects of climate change?

2) Peoples and individuals of the present and future generations affected by the adverse effects of climate change?

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador-visitante na Université de Paris I/Pantheón Sorbonne e membro da diretoria do ramo brasileiro da International Law Association.

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