Direito Eleitoral

Fraude a cotas de gênero: inelegibilidade e indeferimento de toda chapa vencedora

Autores

  • Julianna Sant'ana Sesconetto

    é servidora pública do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assessora-chefe do gabinete do diretor-geral do TSE membra-fundadora e coordenadora Executiva da Comissão TSE Mulheres especialista em Direito da Mulher e especializanda em Direito Eleitoral e em Direitos Humanos Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

  • Bruno Andrade

    é doutorando em Direito da Cidade (Uerj) mestre em Direito Constitucional (Unesa) especialista em Direito Eleitoral (Ucam) servidor da Justiça Eleitoral membro da Comissão Permanente de Acessibilidade e inclusão do TSE e da Abradep.

3 de abril de 2023, 14h09

O debate sobre cotas de gênero para ampliar a participação feminina na política brasileira é cercado por uma série de sofismas que se baseiam em senso comum carregado de preconceito e de discriminação experimentados pelas mulheres na sociedade patriarcal que vivemos.

Há argumentos sem qualquer substância ou o mínimo de cientificidade, tais como "mulher não gosta de política" e "mulher não vota em mulher". Tais afirmações são facilmente confrontadas com a realidade do sistema eleitoral brasileiro, bem como pela própria formação social do país, que exercem influência determinante para refrear ou retardar o aumento da participação feminina na política.

De início, pode-se observar que o quantitativo de filiações partidárias femininas demonstra que é uma falácia a afirmação de que mulheres não se interessam por política. Segundo dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), as filiações femininas representam 46% do total de pessoas filiadas no país [1].

De igual sorte, dizer que mulher não vota em mulher é ignorar completamente o desenho do sistema eleitoral brasileiro que dá preponderância cada vez mais à votação personalizada, o que é reforçado pelas agremiações partidárias, que, para se manter o status quo, dá primazia no apoio material às candidaturas masculinas.

De outro lado, a título exemplificativo, nas eleições de 2010 e 2014, momento em que candidaturas femininas à Presidência da República foram impulsionadas estrategicamente, observou-se percentual de aproximadamente 65% de todos os votos válidos dados a essas candidaturas juntas, ou seja, não há falar que "mulher não vota em mulher".

Argumentos do senso comum sobre a baixa participação feminina na política ignoram, deliberadamente (ou não), a estrutura social que atribui exclusivamente à mulher a tarefa de "cuidadora do lar", o que implica em jornadas extenuantes não apenas no mercado de trabalho, mas no seio de seu lar, frequentemente sem qualquer divisão com eventual companheiro do sexo masculino. Ignora-se, por exemplo, a dificuldade em se conciliar atividades políticas com os cuidados com filhos e filhas, que, em sua grande maioria, são realizados quase que exclusivamente pelas genitoras, sem haver uma responsável "coparentalidade".

Desse cenário é que se surge necessidade de estabelecimento de políticas de gênero com objetivo de dar paridade de condições mínimas para que a disputa entre homens e mulheres ocorra de forma substantiva, e não meramente formal.

A racionalidade da ação afirmativa de cota de gênero é, em suma, impulsionar a participação feminina na política, objetivando corrigir um vácuo social de representatividade, e provocar a diligência de todas as instituições e pessoas envolvidas no sistema eleitoral brasileiro. Partidos, Ministério Público e Poder Judiciário devem considerar esse cenário e a exigência de se equilibrar a disputa eleitoral no seu proceder.

Nesse sentido, preocupa-se com a jurisprudência que começa a ser construída quando resta comprovada a utilização de candidaturas fictícias para cumprimento da cláusula de gênero. A faceta mais gravosa, é a de se punir a candidata, tida como fictícia, com inelegibilidade de oito anos, além de cassação, que esta, ao nosso sentir, está adequada. Outro aspecto desse entendimento, também preocupante, é o de cair toda a chapa de candidaturas.

É certo que a utilização desse tipo de artifício tem o condão de macular a própria regularidade do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários, visto que foi elaborado com vício em sua origem. Todavia, ao assim proceder, o Poder Judiciário enfrenta uma série de problemas que ainda não foram equacionados.

Em primeiro lugar, há a questão do devido processo legal. Em geral, nos processos em que há esse tipo de condenação não se oportuniza a todas e todos os candidatos da chapa vitoriosa, participem do processo. Veja que, nesse caso, não se deveria franquear a atuação apenas às candidaturas eleitas, mas igualmente a todas e todos os suplentes que têm a possibilidade de alcançar o mandato eletivo ao longo do período do mandato.

Em segundo lugar, pune-se indiretamente quem não tenha participação, de forma alguma, com a eventual adoção de candidaturas fictícias. Mesmo que fique provada a autoria da ilicitude, não apenas os responsáveis pelo ilícito, mas todas e todos que compuseram a chapa deixarão de ser considerados eleitos ou suplentes.

Em terceiro lugar, há uma interferência direta na escolha popular ao tornar insubsistente os votos dados pelas cidadãs e cidadãos às candidaturas objeto da anulação coletiva. Em geral, tal decisão não faz incidir a regra trazida pelo artigo 224 do Código Eleitoral com a necessária renovação de eleições. Logo, o efeito concreto dessa decisão é a redistribuição das cadeiras com nova totalização. É claro, que as novas e novos eleitos tiveram seus nomes sufragados por parcela da população, porém, a parte que votou na chapa destituída terá sua participação fulminada de forma total, não havendo qualquer tipo de mitigação.

Por fim, a decisão de derrubar toda a chapa, embora possa ter efetivamente um caráter pedagógico para as agremiações partidárias, traz medida que contradiz em vários casos a própria racionalidade para o estabelecimento de cotas de gênero, qual seja, ampliar a participação feminina na política. Isso porque, em vários casos em que a chapa é totalmente punida, haverá dentre as candidaturas eleitas, mulheres que passaram a compor o Poder Legislativo e que, como efeito de tal decisão, deixarão de exercer o mandato eletivo. Somado ao fato anteriormente mencionado de que as agremiações não fomentam substancialmente a participação feminina, há forte probabilidade de que a nova chapa que assuma o lugar da destituída não tenha mulheres em posição de já assumirem o novo mandato eletivo.

Por certo não há solução que consiga equacionar todos os interesses em jogo. Todavia, a atual posição de se derrubar a chapa toda, com inelegibilidade à mulher candidata fictícia, acaba por matar não apenas a doença, mas também o paciente, no caso "a" paciente. Isso agrava ainda mais a situação da mulher que é preterida pelas agremiações partidárias e, ainda, punida pela Justiça Eleitoral quando as greis tomam medidas ilícitas para disputar eleições.

É necessário refletir se tal solução é efetivamente aquela que irá sanar um problema ao invés de agravar o já existente.

Autores

  • é servidora pública do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), assessora-chefe do gabinete do diretor-geral do TSE, membra-fundadora e coordenadora Executiva da Comissão TSE Mulheres, especialista em Direito da Mulher e especializanda em Direito Eleitoral e em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

  • é doutorando em Direito da Cidade (Uerj), mestre em Direito Constitucional (Unesa), especialista em Direito Eleitoral (Ucam), servidor da Justiça Eleitoral, membro da Comissão Permanente de Acessibilidade e inclusão do TSE e da Abradep.

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