Opinião

Resolução do TSE que impede força pública de portar arma no voto é inconstitucional

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30 de setembro de 2022, 9h03

A Resolução 23.708 do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determina, em resumo, que a força armada deverá se conservar a uma distância de 100 metros da seção eleitoral e não poderá aproximar-se do local de votação ou nele adentrar sem ordem judicial ou do presidente da mesa receptora. Em decorrência dela diversos profissionais do Direito afirmam que o policial está proibido de portar arma no momento em que for votar, sob pena de ser preso por porte ilegal de arma de fogo.

Fernando Frazão/Agência Brasil
Fernando Frazão/Agência Brasil

Mas "pode isso Arnaldo"?

Pois bem, a redação do texto partiu do que prevê o artigo 141 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65, assinada por Humberto de Alencar Castello Branco), que diz que "a força armada conservar-se-á a cem metros da seção eleitoral e não poderá aproximar-se do lugar da votação, ou nele penetrar, sem ordem do presidente da mesa". O referido artigo se encontra no capítulo "DA POLÍCÍA DOS TRABALHOS ELEITORAIS", do Código Eleitoral e, portanto, precisa receber interpretação de acordo com sua localização no texto legal, de acordo com razão finalística que motivou a redação e, principalmente, com os parâmetros constitucionais.

É plenamente justificável, e até recomendável, que se proíba às Forças Armadas, como Exército, Marinha e Aeronáutica, ou mesmo integrantes das polícias militares, ou ainda de outras forças policiais uniformizadas, se manterem dentro dos locais destinados à votação. O intuito é evitar qualquer tipo de constrangimento ao eleitor, para que ele possa exercer da forma mais plena possível o direito ao voto livre de acordo com sua consciência.

O local de votação não deve ser ocupado por pessoas fardadas ou uniformizadas ostentando armas, a fim de evitar a criação de uma ambiente com aparência belicista, de guerra, de conflito.

Devemos ter em mente, inclusive, que o Código Eleitoral (e seu artigo 141) foi publicado em 30/7/1965, durante o regime militar, e daí a necessidade de se firmar na Lei que as Forças Armadas não poderiam ocupar locais de votação, procurando garantir a liberdade pessoal de exercício do voto (ainda que formalmente).

Entendido de onde veio a norma, pergunto: o que é Força Armada? Uma única pessoa trajando roupas discretas (que não seja farda ou uniforme) e portando uma arma de forma velada, pode ser considerado força armada? Acredito que somente na letra de Humberto Gessinger seja possível a existência de um "exército de um homem só". Parece cristalino que uma única pessoa, sozinha, jamais pode ser considerada uma força armada, ainda mais se não estiver vestindo uma farda e se não ostentar de forma visível uma arma de fogo.

Imaginemos quantos policiais exerceram seu direito ao voto em eleições pretéritas, portando sua arma de defesa, sem que isso fosse sequer notado pelas demais pessoas que votavam com ele no mesmo lugar. Ninguém sequer nota o policial que carrega sua arma de forma velada na fila de votação. Não há absolutamente nenhum risco de intimidação a terceiros.

Só por isso já seria inapropriada a interpretação de que os integrantes das forças de segurança pública não possam portar arma, de forma discreta e dissimulada, durante o exercício do direito de votar.

Mas não é só isso. As resoluções do TSE devem se limitar a interpretar leis eleitorais, orientando-lhes o sentido de aplicação. O direito dos policiais em portar armas está previsto na Lei 10.826/03, a qual não tem conteúdo eleitoral e, portanto, está sujeita à interpretação da Justiça Eleitoral, ainda mais para lhe restringir os efeitos.

Importante salientar que a Lei 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento, foi altamente restritiva com as hipóteses nas quais é possível alguém portar arma de fogo, concedendo o direito ao porte de arma a pouquíssimas pessoas, como integrantes do sistema de segurança pública, Forças Armadas e outras poucas cuja profissão justifique a necessidade.

Considerando o viés proibitivo do Estatuto do Desarmamento, caso fosse da vontade do Poder Legislativo que ninguém pudesse votar armado, nem mesmo policiais, a Lei deveria então trazer um artigo com esta determinação. Mas não trouxe. Não há nenhuma hipótese de vedação ao direito de porte de arma aos policiais no momento em que estiver votando, o que indica que exercer o direito de voto não impede o porte de arma às pessoas descritas no artigo 6º da Lei 10.826/03.

O Estatuto do Desarmamento foi editado no ano de 2013, após a edição da Constituição da República e, portanto, orientada pelos princípios e regras constitucionais, diferentemente do Código Eleitoral, que já tem 57 anos de idade e foi editado durante a ditadura militar.

Ainda que se admita eventual conflito de normas, o Estatuto do Desarmamento é Lei mais atual em relação ao Código Eleitoral, e mais específica quando o assunto é o direito ao porte de arma, de modo que suas disposições devem prevalecer sobre Lei mais antiga e mais genérica, conforme as regras de hermenêutica jurídica.

Segundo o Princípio da Legalidade previsto na Constituição, "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Esta importantíssima garantia constitucional determina que somente a Lei pode criar ou restringir direitos, com a finalidade de evitar insegurança jurídica e também arbitrariedades por parte do Estado em ditar regras aleatórias conforme a conveniência do momento. Ora, se não há exceção legal ao direito de portar armas por parte dos integrantes da segurança pública, nenhuma resolução do Poder Judiciário pode restringir o direito previsto em Lei regularmente editada pelo Congresso e promulgada pelo presidente da República.

Não podemos criar atalhos para supressão de direitos, sob pena de grave ofensa ao sistema republicano e à harmonia dos Poderes da União. Caso alguém entenda pela necessidade de restringir o direito ao porte de arma no momento da votação, o caminho correto é a elaboração de uma proposta legislativa para que tramite perante a Câmara dos Deputados e o Senado, com a finalidade de alterar a Lei vigente. Somente após edição de Lei Ordinária neste sentido é que o comando teria validade jurídica.

Importante salientar que uma resolução, não importando em qual órgão tenha origem, é ato de caráter administrativo, que jamais pode contrariar dispositivo de Lei com a finalidade de restringir direitos. A única forma constitucionalmente possível de o Poder Judiciário suprimir um dispositivo de Lei, é no uso da função de controle de constitucionalidade no exercício de atividade típica jurisdicional, após provocação de um agente legitimado, mediante devido processo legal, com chamamento ao processo das pessoas interessadas.

É por isso que reputamos que a Resolução 23.708/22 do TSE, quando impede o direito dos integrantes da segurança pública de comparecer ao local de votação portando a arma, é inconstitucional por ofensa aos Princípios da Legalidade e da Separação dos Poderes e, portanto, não é capaz de produzir efeitos no mundo jurídico.

Por fim, é importante salientar que, dentro do regime democrático de direito, os integrantes das forças de segurança pública possuem a responsabilidade de preservar a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio alheio, e quando portam armas, o fazem para exercer a responsabilidade constitucional.

É pela segurança e pelo bem estar alheio, antes de mais nada, que os policiais saem de casa portando uma arma de fogo.

Os inimigos são outros.

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