Opinião

A fake da violabilidade das urnas

Autor

  • Fernando Marques Sá

    é analista judiciário do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de São Paulo e pastor; pós-graduado em Direito Civil e em Direito Processual Civil; articulista da Redesp (Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político) e mestre em Hermenêutica e Pregação.

30 de setembro de 2022, 7h03

Muito se tem comentado ultimamente sobre uma possível fraude ou irregularidade no resultado das eleições em razão da falibilidade das urnas eletrônicas. Contudo, as acusações apresentadas são, no mínimo desarrazoadas.

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Teste de urna eletrônica feita no TRE de SP
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É cediço que toda e qualquer acusação deve vir acompanhada de, ao menos, indícios de provas que sejam capazes de sustentar o libelo acusatório. Até o momento, após um quarto de século de sua utilização, não houve nenhuma comprovação sobre a falha no sistema de coleta e computo de votos.

Os argumentos apresentados nos últimos meses, bem como o procedimento adotado por alguns líderes revestem-se, estão mais vinculados ao jocoso jus sperniandi[1] do que a fatos efetivamente comprovados.

Neste artigo irei abordar três frentes que, muito embora não comprovem a lisura do procedimento, servem, ao menos, para afastar as aleivosas acusações formuladas. Para tanto, lançaremos mãos, de maneira sumária de três argumentos: espiritual, político e constitucional.

Sob a ótica espiritual podemos perceber que alguns líderes religiosos estão fazendo verdadeiras campanhas contra a inviolabilidade das urnas. Há quem chegue até mesmo a orar para que Deus venha tirar as urnas do ar, durante o período das eleições, caso haja alguma mácula no procedimento.

Por graça vivemos em um país livre onde a manifestação do pensamento é assegurada a todos (artigo 5º, inciso IV, da CF) e, portanto, todos podem expressar suas opiniões. Pois bem, assentado nesse mesmo dispositivo legal, gostaria de trazer a baila o versículo bíblico contido em Is 43, 13 que diz: "Agindo Deus, quem impedirá?"

Em outra passagem, Paulo deixa assentado que toda autoridade é constituída por Deus (Rm 13, 1-2). Perceba que quando o apóstolo escreveu isso, o povo judeu, especialmente os cristãos, estavam sob o domínio de Roma e sofrendo toda espécie de perseguições e maus tratos.

Ora, se Paulo reconheceu que mesmo os sofrimentos impostos pelos líderes estavam sob o domínio e abarcados nos propósitos de Deus, por que haveríamos, pois, de orar pedido para que as eleições ou sua apuração apresentassem problemas?

Pelo contrário, devemos orar, segundo Paulo, por todas as autoridades, ainda que não venhamos a concordar com suas decisões (1 Tm 2, 1-4). Orar por qualquer tipo de ocorrência durante um pleito nacional é uma atitude temerária, em especial no tocante a segurança física da população. Ainda, reveste-se de velado questionamento sobre a soberania de Deus. Uma oração sempre é válida, mas somente será atendida quando estiver alinhada com os propósitos divinos (Tg 4,3).

Sobre a ótica política, causa espanto que candidatos eleitos pelas próprias urnas coloquem em xeque a lisura do procedimento quando as pesquisas demonstram uma possível reprovação popular no tocante ao exercício de seus mandatos.

Se eventualmente houvesse uma fraude, o correto seria, juridicamente falando, manter os efeitos dos atos praticados por tais políticos e cassar seus mandatos de imediato, com efeito ex nunc[2], em razão do fato de que, eventual adoção do efeito ex tunc[3] ocasionaria uma imensa insegurança jurídica, tanto interna quanto externamente.

Caminhando um pouco mais no campo das ideias, caso esses mesmos políticos consigam provar a fraude nas urnas, por que não apurar a responsabilidade deles pois, "conhecedores" da verdade, valeram-se de uma fraude para galgar ao poder!

Secular o princípio do nemo auditur propriam turpitudinem allegans[4]. Conclusão logica a que chegamos é que, se quele que sustenta a fraude de um procedimento, mas que também veio a se prevalecer deste mesmo processo, deve ser considerado, em princípio, no mínimo, sujeito passivo de prevaricação[5].

Ainda que se possa, em campos hipotéticos, sustentar que essa disposição não alcança determinados cargos políticos, fato é que a Lei 8.429/92, em seu corpo possui um leque considerável de condutas capazes de abarcar o comportamento das autoridades e servidores públicos em geral, enquanto a Lei 1.079/50 cuida das condutas possivelmente irregularidades praticadas pelo Chefe do Executivo.

Por fim, resta apurar a questão da eventual violabilidade das urnas sob a ótica Constitucional.

Estabelece o artigo 37, caput, da lei maior que toda atividade administrativa deve estar pautada, dentre outros princípios, pela Publicidade.

Pois bem, o processo de preparação de uma eleição é demasiadamente longo, complexo e trabalhoso, portanto, irei me ater tão somente na questão da inseminação de dados das urnas e posterior transmissão das informações.

O processo de preparar as urnas para as eleições, nos cartórios, tem início muito tempo antes da data do pleito, pois envolve manutenção e realização de vários processos simulados para apuração da integridade dos dados.

Aproximadamente, nos dez dias que antecede o pleito, os dados dos candidatos e eleitores são inseminados nas urnas. Este procedimento público pode ser acompanhado por qualquer pessoa.

Posteriormente, mormente nas próximas eleições, ocorre uma fiscalização no tocante a lisura de todo procedimento, tanto por órgãos internos como por exemplo associações, OAB, Ministério Público, ONG's, magistratura etc, quanto também por organismos internacionais.

Diga-se de passagem, mais uma vez, que o procedimento é público e não se encontra restrito a tais órgãos que previamente se cadastraram para tanto.

Durante as eleições, além dos alçados institutos, existe o acompanhamento de fiscais dos partidos e um processo paralelo denominado de auditoria, que neste ano ocorrerá no Centro Cultural de São Paulo, com mais de três dezenas de urnas sorteadas neste dia 1º de outubro, onde serão digitados votos impressos nas urnas e, ao final, será feito o batimento para se verificar se o quantitativo de votos contidos no papel, conferidos aos diversos candidatos, coincide com o quantitativo de votos registrados nas urnas.

Uma vez constatada a igualdade entre os votos impressos e os digitados, decreta-se a lisura do procedimento.

Desnecessário deixar assentado que todo esse processo recebe fiscalização das forças estaduais e federais de segurança.

Por fim, para aqueles que advogam a possibilidade de inserção de algoritmos que maculam o procedimento, há que se destacar que a totalização dos votos nas urnas é um procedimento sem ligação com a internet. Posteriormente, após incontáveis processos de segurança avançada, eles são totalizados no Tribunal Superior Eleitoral.

E como fica a questão do Princípio da Publicidade?

Todo processo é aberto ao público, imprensa e órgãos de controle. Posteriormente, através da soma manual dos Boletins de Urnas, é possível constatar se o que chegou no Tribunal Superior Eleitoral é, verdadeiramente, o que foi registrado nas urnas.

Enfim, todo processo pode ser acompanhado por qualquer interessado.

Posto isto há que se esperar que as pessoas que irão eleger seus candidatos neste dia 2 de outubro tenham consciência de que seus votos serão, verdadeira e imaculadamente, computados as pessoas que o eleitor e eleitora desejam que sejam seus representantes.          

Atente-se, por oportuno, que toda exposição tratada neste artigo caminha tão somente no campo das ideias, com assento na permissiva contida no texto Constitucional e no pleno exercício da tão festejada democracia, sendo que qualquer eventual desdobramento fica a mercê do Congresso.

[1] Expressão jocosa utilizada nos meios jurídicos para expressar a atitude de que não tem mais argumentos e vale-se de argumentos falhos, fracos e desprezíveis.

[2] Diz-se da decisão jurídica cujos efeitos não retroagem

[3] Dis-e de uma decisão jurídica cujos efeitos retroagem até a prática do ato

[4] Princípio do Nemo Auditur Propriam Turpidiinem Allegans, é um vetor que determina que ninguém pode valer-se de um comportamento contraditório. Abordagem de moda aprofundada: www2.senado.leg.br/bdsf/bitstrean/handle/id/486339/noticia.htm?sequence=1

[5] Art.   319 , CP – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

Autores

  • é analista judiciário do TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de São Paulo e pastor; pós-graduado em Direito Civil e em Direito Processual Civil; articulista da Redesp (Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político) e mestre em Hermenêutica e Pregação.

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